domingo, 9 de dezembro de 2012

Ouro sobre futebol

Ronaldo Correia de Brito


Nunca estudei a matéria porque nunca gostei de futebol. Isso mesmo, confessado e assumido

Preciso escrever um conto para uma antologia, que será publicada por um editor alemão, e lançada na Feira de Frankfurt. Todo mundo está cansado de saber que o Brasil será o país homenageado em 2013 e o mundo literário brasileiro vive o maior agito. Nada mal receber a encomenda de uma narrativa curta, vivo dizendo que nós escritores não diferimos dos marceneiros, também trabalhamos por empreitada. O único trauma é que as antologias possuem temas. Adivinhem sobre o que terei de escrever? Acertaram: futebol.

Frankfurt
Para qualquer brasileiro, principalmente os torcedores do Corinthians, isso seria o mesmo que sortear o único assunto estudado numa prova final. No meu caso, o raciocínio se faz ao contrário: nunca estudei a matéria porque nunca gostei de futebol. Isso mesmo, confessado e assumido. Nem pela seleção brasileira eu torço. Não me finjo de fanático como muitos intelectuais brasileiros costumam fazer, apenas para jogar com a galera.


Quando escrevo minhas crônicas sobre futebol, os leitores me espinafram. Certa vez protestei contra os altos prêmios concedidos aos jogadores, maiores que as premiações do Nobel. Achava injusto, imerecido, porque fazer um gol está numa ordem de grandeza inferior a uma descoberta científica ou à escrita de um livro como A Montanha Mágica. Fui crucificado, sem direito à ressurreição. Os leitores protestaram, recebi quase mil mensagens. Para eles, os jogadores provocam alegrias e emoções bem superiores aos romances de Thomas Mann ou à descoberta da penicilina.





Confessar a dificuldade não diminui minha angústia. Terei de escrever sobre futebol. Mas eu não gosto de futebol, já disse e torno a dizer. No máximo, me interesso pelos escândalos envolvendo jogadores. Como o de Ronaldo Fenômeno e os travestis no motel. Pena que abafaram o caso, por interesse dos patrocinadores e das marcas famosas. Não ficaria bem misturar travecos com chuteiras, embora os coitados vivam pisados. Perdi os detalhes escabrosos, sobrou pouca informação para o meu conto. Afinal, houve ou não houve...? Os americanos se revelaram bem mais liberais no caso Bill Clinton. Fiquei sabendo onde entrou e por onde saiu o charuto. E olhe que se trata de uma sociedade puritana!


Bill Clinton e Monica Lewinsky
Alguém pode me dizer se Edmundo Animal foi preso depois de dirigir bêbado e provocar atropelamento com mortes? E Adriano Imperador – não de Roma, mas das favelas do Rio –, é ou não envolvido com o tráfico? E o goleiro Bruno, do Flamengo, com seu julgamento adiado? Será que vão convocá-lo para 2014? E o outro Ronaldo, o Gaucho? Realmente, que rapazes animados! Quanta alegria e bom exemplo eles dão aos brasileiros! O único que não acha graça em nada sou eu, porque sou um velho mal humorado, enxergo defeitos ao invés de virtudes e não morro pelas cores de nenhum time.




 Decidi contar a história de um jogador fracassado, um paciente do hospital onde trabalho. Depois de tentar a sorte nos piores times de Pernambuco e só dar azar, ele tornou-se alcoolista, um nome para não chamar a pessoa de ‘bêbado’. O herói do meu conto caiu de uma ribanceira e sofreu vários traumatismos. Não vai servir pra mais nada, muito menos jogar bola. Ele já estava encostado, mesmo! Ganhava a vida engolindo moedas na feira. De cinco, dez, vinte e cinco e cinquenta centavos. E no meio dessas pílulas menores, as moedas de um real.


Vocês precisam ouvir a aula de higiene do ex-jogador, narrando como lavou as vinte e oito moedas que havia engolido, depois de botá-las para fora. Como ele revirou as fezes com gravetos, até catar todos os metais. Bêbado, porém higiênico, evitou a cacimba que abastece as casas com água potável e o pequeno açude. Removeu os dejetos do seu pequeno tesouro com água poluída, condenada para uso. Depois de limpas e secas, contadas e recontadas, botou-as de volta no estômago.



Dessa vez, em forma de cachaça.



Ronaldo Correia de Brito - Nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco.
Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Retratos Imorais - Alfaguara / Objetiva, Estive Lá Fora-Alfaguara / Objetiva. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine e coluna no Jornal O Povo (Ceará).

Fonte: Jornal O POVO (Ceará) Imagens: Internet / Acervo pessoal

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