domingo, 26 de abril de 2009

DON JUAN



* Luíz Horácio

Madame Bovary é um exemplo de rompimento com o romantismo e opção pela objetividade, pelo realismo; não faltam violência, sexo e fortes doses de melodrama. Anna Karenina não esconde sua paixão, seu encantamento pelo conde Vronski e desfaz seu casamento com Karenin. Diferente de Bovary que escondia suas aventuras, Anna não perdeu tempo, coragem e honestidade a impulsionavam. São dois exemplos de amor, mas não fiquemos restritos a esses, temos um outro tipo de amor em Morte em Veneza, o amor homossexual platônico de um escritor Aschenbach por um adolescente. O Marquês de Sade é o representante maior do sadismo, masoquismo e algumas bizarrices sexuais. E o que dizer da paixão do professor Humboldt, “o coroa”, por uma menina de doze anos?
São formas de amar, são disfarces do amor. E o amor é terreno propício para permitir que medre a hipocrisia e os falsos moralismos. Que cada um ame a seu jeito, de preferência com criatividade.

Pois bem, Don Juan (narrado por ele mesmo) embora o título nos leve a pensar dessa maneira, não é um livro sobre conquistas amorosas. Trata-se de uma narrativa melancólica onde se fazem notar o medo, a tristeza e a permanente ameaça de solidão. O Don Juan de Handke foi um conquistador, no momento não passa de uma vítima de si mesmo, um Don Juan insosso, melhor dizendo. Falta um tanto do sangue dos Don Juans de Lechin, de A gula do beija-flor. Não que este seja um romance dos melhores, mas percebe-se personagens com vida, ainda com emoção, aspecto inexistente em Don Juan (narrado por ele mesmo).


Don Juan é um mito sujeito a inúmeras interpretações, inclua-se nesse rol a que o apresenta como homossexual, creio que não exista país de língua espanhola que não tenha produzido um Don Juan em sua história literária. Grande número de países europeus também têm seu Don Juan. Permita este aprendiz incluir Casanova entre eles. Peter Handke criou o seu, ou melhor inventou um cozinheiro solitário para contar a história do famoso conquistador. A solidão, tema presente em grande parte da obra de Handke, agora aparece duplicada nas pessoas de Don Juan e do cozinheiro.Desconsidere o narrado por ele mesmo. A mesma solidão, personagem irretocável de Tarde de um escritor e assustadora em O medo do goleiro diante do pênalti, em Don Juan, passou da conta e tornou a história tão emocionante quanto um corredor vazio de hospital.

Os libertinos e aqueles que não acreditam no amor fazem disso um jogo, um jogo de xadrez onde cada peça conquistada significa um sopro de vida a mais. Se o sopro é nobre ou medíocre, não me pergunte, amoroso leitor. No romance epistolar de Choderlos de Laclos, Ligações perigosas, os aristocratas se dedicam ao prazer, a intriga, a trapaça. A marquesa de Marteuil escreve ao visconde de Valmont dizendo que “ sentia uma necessidade de enganar tamanha que me reconciliava com o amor, na verdade não para senti-lo, mas para fingi-lo.” Planos traçados, estratégias escolhidas, o estraga prazeres entra em cena: o amor. Está pronta a tragédia. O romance conduz o leitor a uma reflexão sobre o amor e a incapacidade de amar.



Como disse acima, o que não falta é Don Juan na literatura. Temos Don Juan Tenório, de José Zorrilla,, o Don Juan de Tirso de Molina, entre outros, e mais o Don Juan de O regresso de Casanova, de Arthur Schnitzler,(austríaco como Handke) o Don Juan envelhecido. Desses citados, Handke conseguiu manter distância apesar da riqueza de todos Dons Juans, dos contrastes entre Don Juan Tenório e O burlador de Sevilla, ficamos com esses para não alongar o debate. O de Tirso é um sedutor, ateu, imoral, não acredita no amor, no seu entender as mulheres são tão egoístas quanto ele, o de Zorrilla é um demônio transformado em anjo graças ao amor.

Do Casanova , de Schnitzler, de quem o Don Juan de Handke poderia se aproximar, e não lhe faltariam motivos; isso também não acontece pois o personagem de Schnitzler não se rende apesar de sua decadência física, se apaixona por Marcolina, jovem que não ficava devendo nada no quesito malandragem e visão de mundo. Tanto que para lograr seu intento Casanova apela a estratégia nada ortodoxa. O Don Juan de Schnitzler sofre ante ao amor não correspondido somado a consciência da proximidade de sua morte.

Mas vamos ao Don Juan de Hanke, ao quase enredo:

No que sobrou de um monastério em Port-Royal-des-Champs, transformado em albergue, vive um solitário cozinheiro que até então gastava seus dias lendo Racine e Pascal. Um belo dia decide dar um basta nesse hábito. Pois justamente nesse dia aparece no jardim do cozinheiro, Don Juan. O Don Juan que fora de Tirso de Molina, de Zorrilla, de Moliére, Ortega y Gasset, Schnitzler e que dali em diante seria também de Handke.

Ele passa sete dias em Port-Royal, precisava descansar, até mesmo Don Juan cansa de tanto andar mundo afora.

Mas como gastar esse tempo? Don Juan tem a resposta: contando ao cozinheiro, que agora tem motivo para cozinhar, suas mais recentes aventuras. Sete dias, sete país e sete mulheres diferentes.

E Don Juan viaja acompanhado de um serviçal . O que move Don Juan não é o sabor da aventura, mas , acredite viajante leitor, é o luto provocado pela morte do filho único. De luto, entenda essa psicológico leitor, vê-se livre apesar da melancolia para viver o momento e “curtir” uma mulher aqui, outra acolá e assim nessa repetição levar a vida. Não se trata de um sedutor esse Don Juan, tampouco um objeto do desejo das mulheres, ele vive a aventura como nós lemos nossos jornais, mas diferente dele por motivos outros. Responda, lacaniano leitor,o que esperar de um ser movido pelo luto?

Cabe ressaltar a presença do tempo na narrativa, o duplo tempo; o tempo das histórias narradas pelo cozinheiro e a passagem do tempo pelos jardins do albergue em Port-Royal-des-Champs, ambos fazendo o papel de algozes de Don Juan. Tamanha perseguição não esmorece o mito movido pela melancolia e ele abandona albergue e cozinheiro. Na certa alguém estará a sua espera para reinventá-lo.
Don Juan (narrado por ele mesmo) excetuando-se a maestria com que Handke escreve e o brilhantismo da tradução não para em pé. É vazio, não passa de um delicado exercício estilístico. Querem ler Handke, pois busquem os títulos citados anteriormente mais A mulher canhota, Ensaio sobre a fadiga, Numa noite escura, deixei minha casa silenciosa. Esta uma obra prima.

Choderlos de Laclos assim justificava a existência de As ligações perigosas: “Quis fazer uma obra que continuasse ecoando na Terra quando eu já a tivesse abandonado.”

E Peter Handke, almejava o quê? Não, não responda.


TRECHO

Don Juan era órfão, e não em sentido figurado. Há anos, perdera a pessoa que lhe era mais próxima, e não fora seu pai ou sua mãe, mas - ao que me parecia - seu filho, o único. Então, com a morte do filho também era possível se tornar órfão, e como. Ou talvez fosse sua mulher, a única amada, que tivesse morrido?
Ele havia partido para a Geórgia - como para todos os lugares, no mais - sem nenhuma destinação em especial. O que o movia era nada menos que seu luto e desconsolo. Carregar pelo mundo seu enlutamento e descarregá-lo no mundo. Don Juan vivia para isso, como se fosse uma força. Seu luto era mais do que ele, excedia-o. Munido dele, por assim dizer (e não só por assim dizer), ele se sabia - não imortal, isso não - invulnerável. O luto era algo que o tornava indomável, e em contrapartida (ou melhor, de parte a parte), completamente permeável e receptivo para o que quer que acontecesse, e ao mesmo tempo invisível se necessário. Seu luto lhe servia de farnel.Nutria-o em todos os sentidos. Graças a isso ele já não tinha mais grandes carências. Estas nem sequer chegavam a surgir. A única coisa a se repudiar sempre era o pensamento de que, dessa forma, no luto, o ideal da vida terrena se tornaria possível, o que vale também para todas as outras pessoas (vide “descarregar o luto no mundo”). Seu enlutamento, nada episódico, mas desde o princípio, era uma atividade.

Don Juan não mantinha relações com ninguém há anos. O que se dava durante alguma viagem, no máximo, eram contatos casuais, apagados de imediato da memória com o fim do percurso em comum.

AUTOR

PETER HANDKE

Nascido em 1942 na Áustria, renovou a literatura de língua alemã do pós-guerra já com algumas de suas primeiras obras , como Insulto ao público (teatro, 1966) e O medo do goleiro diante do pênalti (1970). O experimentalismo da fase inicial se transformou - ao longo de sua extensa produção como romancista, dramaturgo, poeta e cineasta - em uma reflexão de poeticidade ímpar sobre o processo de escritura e sobre a linguagem como mediadora da percepção.

Resenhista: Luíz Horácio. Jornalista, escritor, autor dos romances "Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão", ed.Conex.2006 e "Nenhum Pássaro no Céu", ed. Fábrica de Leitura, 2008. Professor de Literatura, mestrando em Letras.

Imagens: Internet

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Vasco de Balboa: O mar do Sul




O polêmico Vasco de Balboa, há 495 anos, fez, por terra, a segunda maior descoberta espanhola na América: o oceano Pacífico. Mas morreu decapitado, condenado por traição à Espanha.

Por Fabiano Onça


Do alto da serra, os olhos do conquistador espanhol Vasco Núñez de Balboa miravam o que nenhum outro europeu vira antes. Ele acabara de fazer uma grande descoberta, a maior desde que Cristóvão Colombo chegara à América, 21 anos antes. Tamanho feito não foi capaz, porém, de salvar sua vida. Em 15 de janeiro de 1519, Balboa foi decapitado em praça pública, julgado traidor da causa espanhola. Não que ele tivesse sido apanhado de surpresa. Naquela terra recém-descoberta, onde o ouro e as pedras preciosas surgiam em quantidades absurdas mas a lei da Espanha falhava, a sobrevivência de um homem era feita de força bruta e astúcia. Vasco possuía ambas as qualidades. Foi por causa delas que virou herói. Mas também por causa delas perdeu a vida.




Quando foi condenado à morte, Vasco tinha por volta de 44 anos. Ele nascera provavelmente em 1475, em Jerez de los Caballeros, Extremadura, no sudoeste da Espanha. Seu pai, Nuño Arias de Balboa, era, ao menos no nome, um hidalgo, um nobre, descendente dos antigos senhores do castelo de Balboa, que ficava na região. Na prática, isso não significava muito para o então pequeno Vasco. Suas chances de conseguir qualquer herança do pai eram remotas, já que era o terceiro de uma família de quatro filhos homens. Sua melhor opção era pôr-se a serviço de outros nobres de maior importância. Foi assim que, durante os primeiros anos de sua adolescência, Vasco tornou-se pajem e escudeiro de dom Pedro de Portocarrero, senhor de Moguer. Com ele, Vasco aprendeu a manejar a espada. E, mais importante, teve acesso às notícias fantásticas que chegavam das descobertas marítimas.
Em 1500, a Espanha vivia uma febre de conquistas que só se aplacaria após quase dois séculos. Ela começara em 1492 com Colombo, que, patrocinado pelos reis espanhóis, revolucionara o conhecimento geográfico da época. As expedições posteriores, tendo por base a ilha de Hispaniola (atuais República Dominicana e Haiti), no Caribe, onde Colombo fundou as primeiras colônias, trouxeram mais notícias espantosas. Para além das ilhas de Cuba, existiriam ainda mais terras. A expectativa da coroa espanhola com as novas possessões era enorme.
Por isso, em 1494, a Espanha firmou, sob o patrocínio da Igreja, o famoso Tratado de Tordesilhas – na prática, um freio contra Portugal, o único possível país em condições de explorar as novas terras. Os portugueses haviam conseguido em 1488 contornar a África com Bartolomeu Dias e, novamente em 1500, partiam com uma frota para, ao que tudo indica, apossar-se das terras que já sabiam que existiam no Novo Mundo.
Naquele 1500, enquanto borbulhavam as histórias sobre o Novo Mundo, Vasco, cedendo aos impulsos aventureiros e valendo-se da influência de seu amo, conseguiu uma vaga na expedição do explorador Rodrigo de Bastidas. Um ano depois, a frota partiu do porto de Cádiz com duas embarcações principais (dois navios menores seguiram no ano seguinte) com a missão de mapear o então desconhecido litoral dos atuais Panamá e Colômbia. Vasco tinha cerca de 25 anos.

De gaiato no navio


A expedição de Rodrigo de Bastidas permaneceu ao longo do atual litoral colombiano por quase dois anos. Durante esse tempo, Vasco de Balboa tomou contato com a realidade do Novo Mundo. E aprendeu a regra para os aventureiros espanhóis que exploravam as riquezas da região: o conquistador, na prática, era livre para pilhar o que quisesse – pedras preciosas, ouro, pau-brasil – desde que, ao fim da aventura, deixasse um quinto do que tivesse encontrado junto aos fiscais do Tesouro espanhol. Em 1502, Bastidas encerrou a aventura com seus navios abarrotados de ouro e, depois de pagar o que devia à coroa, ainda foi agraciado com uma pensão vitalícia sobre a renda de algumas das terras recém-descobertas.
Vasco, como membro da tripulação, também recebeu sua parte de ouro, suficiente para comprar uma pequena propriedade em Hispaniola. Ali, tentou ganhar a vida cultivando grãos e criando porcos por sete anos. Mas a única coisa que conseguiu reunir após esse tempo foram dívidas. Os credores se impacientavam. E Vasco não tinha onde cair morto.

Em 1509, outra expedição espanhola, comandada por Martin Fernandez de Enciso, um figurão da corte, aportou na ilha de Hispaniola. Enciso havia fundado um povoado onde hoje se encontra a cidade colombiana de Cartagena das Índias. Mas o povoado estava sob duro ataque dos indígenas da região. Enciso deixara alguns soldados defendendo o local, sob o comando de um tal Francisco Pizarro, e voltou às pressas para Hispaniola em busca de reforços. Para Vasco, a oportunidade de se mandar dali havia surgido. Ele se infiltrou dentro de um dos barcos enfiado num barril – e ainda deu um jeito de levar seu inseparável cachorro, Leoncico. O truque foi percebido apenas em alto-mar. Ao saber do penetra, Enciso ameaçou deixá-lo numa ilha deserta. Entretanto, Vasco de Balboa tinha um trunfo: ele conhecia a região para onde o barco ia, pois a primeira expedição de que participara, oito anos antes, havia explorado aquela área.

Após o golpe, o poder



Os barcos chegaram a tempo de resgatar Pizarro e seus homens, mas não conseguiram evitar a destruição do povoado. Àquela altura, um mês após seu embarque, Vasco, com seu natural carisma, conquistara a simpatia da tripulação. Por outro lado, Fernandez de Enciso colecionava inimigos graças à teimosia em tentar reerguer o assentamento, cujo resultado foram apenas mais batalhas contra os belicosos indígenas.


Vasco de Balboa então convenceu Enciso de que havia um lugar melhor para criar um novo povoado, uma região ao norte, com a terra mais fértil e índios menos agressivos. A viagem para a atual região de Daren, no Panamá, levou alguns meses. Lá, a verdade era menos glamurosa. Logo na praia, os espanhóis tiveram que lutar com o cacique Cémaco, chefe local, e seus 500 homens. Conta-se que Vasco teria feito uma promessa à Virgen de La Antigua. Se os espanhóis vencessem, o povoado ganharia o nome da santa. Eles venceram. E, no local, em setembro de 1510, Balboa, Enciso e os sobreviventes fundaram o povoado europeu mais antigo do continente: Santa María de La Antigua de Darién.

A essa altura, Vasco de Balboa havia consolidado de vez sua liderança junto aos soldados, enquanto o comandante oficial continuava criando inimizades, especialmente depois de ele ter ficado com grande parte da pilhagem nas terras do cacique Cémaco. Era hora de Vasco dar o bote: ele conseguiu que Enciso perdesse o cargo alegando que o poder deste só era válido nas terras mais ao sul, e não lá onde se encontravam agora. O pequeno povoado de Santa María elegeu então Martin Samudio e Vasco Núñez de Balboa como alcaides no primeiro conselho municipal das Américas.

Entretanto, quando o governador da região de Veragua, Diego de Nicuesa, ficou sabendo da malandragem de Balboa, tomou um navio e foi para a vila. Queria desfazer tudo e levar o aventureiro preso. Mas Balboa soube disso e insuflou a população contra o governador. Quando ele chegou, em 1º de março de 1511, foi preso por uma multidão de colonos enfurecidos, que o colocaram, ao lado de seus 11 homens, num bote caindo aos pedaços em alto-mar. Ninguém nunca mais ouviu falar da desafortunada autoridade.

O ouro do mar do Sul

Não foi difícil para Balboa convencer as autoridades espanholas a nomeá-lo governador, afinal Nicuesa estava desaparecido e faltava gente capacitada no Novo Mundo. Seu primeiro ato no poder foi orquestrar o julgamento de Fernandez de Enciso, que foi sentenciado à prisão e teve suas riquezas confiscadas – mas dois anos depois foi exilado para a Espanha.

Vasco de Balboa estava livre para fazer o que sabia melhor: conquistar terras, escravizar índios e, mais que tudo, acumular ouro. Certa vez, numa conversa com Panquiaco, filho do cacique Comagre, ouviu pela primeira vez sobre o tal mar do Sul. De acordo com uma carta que Balboa enviou para os reis espanhóis Fernando de Castela e Isabel de Aragão, o índio teria dito: “Se vocês têm tanta fome de ouro que não se importam de sair de suas terras para assolar a terra dos outros, eu vou lhes mostrar uma província que saciará seu apetite”. Panquiaco discorreu sobre as prodigiosas terras a sudoeste, que davam para o mar do Sul. Nelas, o povo teria tanto ouro que pratos e talheres eram feitos do metal.

Durante muito tempo, Vasco de Balboa tentou convencer o rei a patrocinar sua expedição para o tal mar. Como não obteve sucesso, decidiu partir por sua conta em 1º de setembro de 1513. Levava 190 soldados, alguns guias nativos e uma matilha de cães treinados – Leoncico entre eles. Ao norte, conseguiu com o cacique Careta o apoio de mais mil guerreiros. A expedição então mergulhou na selva fechada. “Algumas vezes eles tinham que avançar através de uma barreira de árvores que se enroscavam umas às outras, outras vezes tinham que cruzar lagos, onde homens e bestas de carga pereciam miseravelmente; então, repentinamente, uma elevação abrupta apresentava-se perante eles; no topo, um profundo e assustador precipício se formava diante dos pés”, escreveu o historiador Manuel José Quintana em Vidas de Españoles Célebres (inédito em português). “E, acima de tudo, existia ainda a falta de provisões, que, junto a um estado de ansiedade e constante perigo, era mais que suficiente para quebrar a força de um homem e deprimir sua mente.”

No caminho, deparou com tribos hostis, onde foi recebido a flechadas. Conforme vencia as batalhas, incorporava os índios derrotados à expedição. Entretanto, muitos dos espanhóis ficaram feridos ou exaustos. Vasco decidiu deixar o grosso de seus soldados descansando na aldeia do cacique Cuarecuá e continuou com 67 homens. Seguindo o rio Chucunaque, caminhou por toda a manhã do dia 25 de setembro, escalando uma cadeia de montanhas. Por volta do meio-dia, do alto da serra, viu o tão sonhado mar.

O historiador Francisco López de Gómara (1511-1566), que escreveu a obra-base Historia General de las Índias (sem versão em português), conta que Balboa, mostrando o mar a seus companheiros, disse-lhes: “Vejam aqui, amigos meus, o que tanto desejávamos! Com o favor de Cristo, seremos os mais ricos espanhóis que estas terras jamais viram; faremos o maior serviço ao nosso rei que nenhum vassalo jamais prestou ao seu senhor; e teremos o orgulho e prazer de, tudo quanto por aqui se descobrir e conquistar, converter à nossa fé católica!”

Frente ao oceano, escreveu Balboa ao rei, as pessoas ficaram muito alegres. O capelão da expedição, Andrés de Vera, teria cantado o hino litúrgico Te Deum, abençoando o momento. “Segundo a definição de descobrimento, porém, é inexato afirmar que os europeus descobriram o Pacífico”, diz a historiadora Marta Herrera Angel, da Universidad de los Andes, na Colômbia. “O mais exato é dizer que a população nativa da área levou os europeus a verem o Pacífico. Isso porque a costa pacífica já era densamente povoada e o oceano, navegado milênios antes.”

Nas ilhas próximas, Balboa encontrou pérolas e ouro, muito ouro. Quando voltou para Santa María, em 19 de janeiro de 1514, declarou uma fortuna de 100 mil dobrões em ouro, algo equivalente a 34 milhões de reais atuais. Mas nem tudo continuaria bem. Seu antigo desafeto Fernandez de Enciso disseminara duras acusações contra Vasco na corte, incluindo sua ligação com o sumiço do antigo governador Diogo de Nicuesa. Os reis designaram um novo governador para o lugar de Vasco, o nobre Pedro Árias de Ávila, ou Pedrarias D’Ávila – graças a seu apetite por pedras preciosas.
Balboa ainda tentou outras expedições frustradas antes de ir novamente para o mar do Sul, em 1517. Lá, construiu navios e singrou por cerca de 70 quilômetros, cartografando a costa. Mas voltou ao receber algumas cartas de Pedrarias, requisitando sua presença imediata em Santa María. Foi preso por soldados comandados por seu velho conhecido Francisco Pizarro, acusado de alta traição à Espanha por tentar construir um reino para si no mar do Sul. Foi julgado culpado em janeiro de 1519 e condenado à morte. Até o último momento, Balboa clamou por inocência. Em vão. Ao ser decapitado, sua cabeça não se separou do corpo logo no primeiro golpe. O carrasco teve de dar mais duas machadadas para cumprir a sentença.

O reconhecimento de seu feito – que influenciou gerações de desbravadores do Pacífico, como Fernão de Magalhães e Francis Drake – só ocorreu muitos séculos depois. No Panamá, hoje, a mais alta honraria do país é a medalha Vasco Núñez de Balboa. A moeda local também se chama balboa e, desde 1903, mantém paridade de 1 para 1 com o dólar. Até na Lua nosso herói ganhou honraria póstuma: uma cratera batizada com seu sobrenome.

O matador de incas



Conquistador do Peru, Pizarro traiu o amigo Balboa para ganhar poder
Um dos primeiros espanhóis a empreender a conquista do continente americano, Francisco Pizarro é mais conhecido por suas sangrentas campanhas contra o Império Inca, na atual região do Peru, Equador e Colômbia. Mas Pizarro começou sua carreira na América como um mero soldado, mais tarde integrante da expedição de Vasco de Balboa que localizou o atual oceano Pacífico – ele era um dos 67 soldados que foram com Balboa até o fim da expedição. Suas campanhas posteriores contra os incas, iniciadas em 1523, só ocorreram por causa de um favor concedido pelo então governador da região do Panamá, Pedrarias D’Ávila. Foi ele quem, em 1519, outorgou a Pizarro o título de alcaide (espécie de prefeito) da recém-fundada cidade do Panamá. Mas o favor tinha um preço. Em troca do cargo, Pizarro deveria trazer preso o antigo colega Vasco de Balboa. Entrega feita, o título foi concedido. E graças à traição (e ao dinheiro que o título de alcaide lhe conferia) Francisco Pizarro angariou os fundos necessários para suas expedições posteriores, que o tornariam escandalosamente rico. Pizarro morreu em Lima, no Peru, em 1541, aos 65 anos, por vingança. Em suas campanhas, ele havia batido de frente com outro conquistador, Diego de Almagro. Em 1538, numa disputa entre os dois pelo poder na recém-fundada Lima, Pizarro matou Almagro. Três anos depois, partidários do filho de Almagro invadiram o palácio de Pizarro em Lima e o assassinaram.



Água de batismo

Em carta para o rei, Balboa usa a palavra "pacífico" para descrever o mar
Vasco de Balboa, como os demais aventureiros que vieram para a América sob a tutela da monarquia espanhola, manteve correspondência com o rei Fernando de Aragão e com a rainha Isabel de Castela. Na primeira carta, escrita em 20 de janeiro de 1513, queria convencer o rei da Espanha a investir em sua expedição ao mar do Sul e enviar pelo menos 500 homens da ilha de Hispaniola para acompanhá-lo. Para isso, aguça a cobiça do monarca, enumerando as riquezas da terra. E afirma que as águas do tal mar eram pacíficas. Foi justamente por causa das águas que os espanhóis julgaram mais calmas que as do oceano Atântico que o Pacífico foi assim batizado. Isso, porém, aconteceu alguns anos depois de sua descoberta pelos europeus: foi em 1520, após a expedição do português Fernão de Magalhães, que atravessou suas águas pela primeira vez.

Saiba mais

LIVRO
Vidas de Españoles Célebres, Manuel José Quintana, Espasa Calpe, 1966
Escrito pelo historiador espanhol do século 19, relata as descobertas de Vasco de Balboa, Francisco Pizarro, Américo Vespúcio e outros conquistadores.

SITE
www.mgar.net/docs/balboa.htm Em espanhol, dá acesso às cartas escritas por Vasco de Balboa sobre sua expedição.

Fonte: http://historia.abril.com.br/
Autor: Fabiano Onça
Imagens: Internet

terça-feira, 14 de abril de 2009

A saga do Santo Graal



A taça usada por Jesus, o prato com seu sangue e até uma pedra. O poderoso artefato cristão já foi retratado de muitas formas - e sua história alimenta a imaginação das pessoas há quase mil anos.

por Reinaldo José Lopes
Perseguido e sentindo a morte iminente, um camponês judeu decidiu celebrar o Pessach, a páscoa judaica, com os amigos. Reuniu os 12 mais próximos e, na festa, serviu-lhes pão e vinho. Dividiu o pão, comeu um pedaço e distribuiu o restante para os convidados. “Tomai e comei, isto é o meu corpo”, disse. Encheu um cálice com a bebida, deu o primeiro gole e passou a taça adiante, pedindo: “Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados”.
A última ceia da vida de Jesus, que morreria no dia seguinte, é hoje a base da celebração cristã da Eucaristia. Sem muitos detalhes, ela foi assim descrita nos evangelhos de Lucas, Mateus e Marcos na Bíblia. E a taça em que ele bebeu com os apóstolos passou de coadjuvante na refeição ao papel principal de um ciclo de lendas que nasceu na Idade Média e perdura até hoje, 2 mil anos depois.

O mito do Santo Graal refere-se, na maior parte das vezes, ao cálice da Última Ceia. Mas as inúmeras lendas criadas em menos de um milênio já descreveram o artefato como a tigela em que Jesus teria cortado o pão na mesma celebração. Em outros escritos, o Graal seria o prato em que um seguidor teria recolhido o sangue de Jesus crucificado, uma vasilha ou uma pedra. Há ainda autores que até acrescentaram elementos da mitologia pagã celta para criar sua própria lenda sobre o Graal.

No meio desse monte de histórias, o que se sabe ao certo é que o mito do Santo Graal foi criado por volta de 1180 por um francês chamado Chrétien de Troyes. Ele foi o primeiro a escrever sobre o artefato que chamou de “graal”, palavra que designava um tipo específico de utensílio de mesa que, até então, não possuía qualquer conotação sagrada. Mais: incorporou o objeto à lenda dos cavaleiros. Algumas vasilhas antigas até chegaram a ser veneradas pelos cristãos como a taça de Jesus, mas nenhuma atraía multidões de peregrinos nem tinha fama mundial. Foi a partir da história do francês que o Graal tornou-se tão influente a ponto de inspirar diversas buscas arqueológicas e fenômenos de mídia do século 21, como O Código Da Vinci.

Taça simples

As mais antigas sementes da lenda do Graal estão na Bíblia, embora em nenhum momento o termo seja usado. A taça da Última Ceia, por exemplo, é mencionada nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. Historiadores afirmam que o mais provável é que os utensílios usados naquela refeição fossem simples, feitos de cerâmica ou madeira, já que eram assim os pratos e copos usados pelas camadas populares da Judéia na época. Dessa forma, é bastante improvável que os apetrechos usados na Última Ceia tenham sido preservados.



Além disso, os próprios Evangelhos dizem que o salão onde a refeição aconteceu foi apenas emprestado a Jesus e seus discípulos. E o hábito de guardar ou procurar “relíquias” das grandes figuras do cristianismo só surgiria bem mais tarde, cerca de um século após a morte de Jesus. Para André Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que estuda as evidências históricas sobre a vida de Jesus, é bem possível que nenhum artefato arqueológico diretamente ligado a ele tenha chegado até nós. “E o mesmo vale para quase toda a primeira e a segunda geração de cristãos. Eram pessoas periféricas, gente muito simples, de origem rural”, diz o pesquisador.

A falta de objetos diretamente ligados a Jesus e aos apóstolos incomodava um bocado os cristãos, mas o próprio texto do Novo Testamento não ajudava muito: as narrativas eram secas, com poucos detalhes. “Insatisfeitos, os cristãos de séculos posteriores começaram a produzir versões mais elaboradas dos Evangelhos”, diz o medievalista britânico Richard Barber, autor do livro O Santo Graal – A História de uma Lenda. Assim surgiram alguns dos chamados evangelhos apócrifos, textos que não foram incluídos na Bíblia canônica (ou “oficial”). Apesar disso, alguns deles faziam grande sucesso, como o Evangelho de Nicodemos, escrito no fim do século 4. O relato dá mais detalhes sobre o papel do judeu José de Arimatéia, que teria recolhido o sangue de Jesus crucificado em um prato e também retirado o corpo dele da cruz e dado ao morto um enterro digno. O Evangelho de Nicodemos narra ainda como um soldado romano, de nome Longino, teria perfurado o tórax de Jesus com uma lança (episódio descrito de forma mais breve no Novo Testamento). Para Barber, esse livro apócrifo ajudou a estruturar a lenda do Graal. Como veremos a seguir, a lança de Longino é um dos objetos que “acompanham” o objeto sagrado nas histórias escritas na Idade Média.

Prato fundo


A pioneira dessas histórias, um poema inacabado de Chrétien de Troyes, levava o nome de Percival ou O Conto do Graal. A obra de Chrétien (coincidência ou não, o nome quer dizer “cristão” em francês) já era um sucesso de público e crítica quando ele começou a trabalhar na nova história – entre outras coisas, ele já havia escrito um livro com as aventuras de sir Lancelote na Távola Redonda. A ambientação do novo livro retomava a famosa corte do lendário rei Arthur e as aventuras vividas por seus cavaleiros.

Ao enviuvar, a mãe do herói Percival decidiu criar o filho longe da civilização, de forma que o rapaz se tornou uma espécie de “bom selvagem”, com dificuldade de entender como a sociedade funcionava. Percival acabou encontrando alguns cavaleiros de Artur na floresta e ficou tão fascinado com eles que decidiu tornar-se um também. A mãe o deixou partir, ele arranjou um mentor e, depois de treinado, saiu pelo mundo em busca de aventuras. Em dado momento, chegou ao castelo de um tal Rei Pescador, que o convidou a se hospedar lá. Percival acabou presenciando o que Chrétien chamou de “procissão do Graal”: pessoas carregando uma lança de cuja ponta caem gotas de sangue, candelabros e, finalmente, “um graal” – vale notar que o autor usa a palavra de forma genérica, “um” graal, não “o” graal.

“Não se trata de um cálice”, afirma José Rivair Macedo, especialista em história medieval da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A palavra mais correta para designar o objeto em português provavelmente é escudela”, diz, referindo-se a uma espécie de prato fundo, aparentemente usado na Idade Média. Nas escudelas eram servidos peixes e carnes – e, no poema, “em vez de carregar salmão” ou outros peixes, o Graal transportava uma hóstia, levada até o pai do Rei Pescador, que se encontrava gravemente ferido.



A partir daí, as coisas ficam cada vez mais misteriosas. Percival ficou intrigado com a procissão do Graal, mas não perguntou ao seu anfitrião o significado de tudo aquilo, pois seu mentor ensinara que um cavaleiro não deveria ser indiscreto. Só que o jovem nobre aparentemente é punido por ter ficado de boca fechada: acordou sozinho no dia seguinte e o castelo estava misteriosamente vazio. Percival vagou por algum tempo, até perder a memória. Finalmente, foi socorrido por um eremita, que explicou (bem, mais ou menos) o que estava acontecendo. O sujeito disse que tanto ele quanto o pai do Rei Pescador eram tios maternos de Percival. Também afirmou que o Graal era “uma coisa muito santa” (tante sainte chose, em francês da época) e que, se Percival tivesse perguntado o significado da misteriosa cerimônia no castelo, teria evitado muitas desgraças. E, de repente, o manuscrito acaba – provavelmente o autor morreu antes de concluir a história.

É bastante possível que a idéia do Graal como sendo o cálice da Última Ceia não tivesse nunca passado pela cabeça de Chrétien. “A minha impressão é de que o autor não pretendia abordar a temática religiosa, mas a questão secular da formação do cavaleiro. Isso está implícito na idéia de que Percival, por ter sido criado longe de tudo, não tem a justa medida das coisas e confunde a necessidade de ser discreto com ficar totalmente calado”, diz Macedo. “Mas a referência ao Graal como tante sainte chose abriu um mundo de possibilidades para os escritores que vieram depois.”

Mitologia celta

Acredite: a expressão “um mundo de possibilidades” não tem nada de exagerada. Ninguém sabe ao certo como Chrétien pretendia terminar sua história, mas o fato é que, apenas meio século após a morte do autor, haviam surgido nada menos que 18 continuações, prólogos ou novas versões da história do Graal – um novo livro a cada 2,7 anos, em média. A maioria dos novos textos foi escrita em francês, mas há também obras em alemão, e não demorou muito para que surgissem traduções para outras línguas européias, como o italiano e o português arcaico, ancestral do nosso idioma.

O mito só fez crescer – e adquirir características completamente distintas – em meio a todos esses textos. Segundo Richard Barber, escritores que vieram depois de Chrétien, como Robert de Boron e o autor anônimo de A Demanda do Santo Graal, fizeram uma espécie de equação entre a lança que sangra (um bocado parecida com a lança de Longino, aquela do Evangelho de Nicodemos) e o Graal que carrega a hóstia. E concluíram que, na verdade, o recipiente só podia ser o prato (ou o cálice) sagrado.

Assim, os sucessores de Chrétien conseguiram uma façanha inédita: juntaram a famosa saga da lendária corte do rei Artur, a mais popular da época, com o lado religioso e místico que também encantava o público medieval. Para chegar a esse objetivo, cada autor adotou uma solução diferente. A mais famosa envolveu criar um novo herói da Távola Redonda: surgiu então Galahad, filho de Lancelote, um jovem cavaleiro casto e puro. Na maioria dos casos, Galahad, Percival e Bors (outro cavaleiro da corte de Artur), juntos, comprometem-se a encontrar o Graal para curar o pai do Rei Pescador e o próprio rei (que se machuca em versões posteriores do conto) e para atingir a iluminação.

Por um lado, a lenda parece ter crescido incorporando alguns elementos das antigas mitologias pagãs européias, em especial a celta. Quando o Graal aparece misteriosamente, nos novos contos pós-Chrétien, é capaz de alimentar todos à sua volta com os pratos mais saborosos. “O chamado caldeirão da abundância de alguns deuses celtas também era capaz disso”, afirma o medievalista Macedo.

No entanto, a simbologia mais forte das histórias do Graal está mesmo diretamente ligada à idéia de que a hóstia e o vinho transformam-se no corpo e no sangue de Jesus – conhecida como Eucaristia. Na versão de A Demanda do Santo Graal, Galahad e seus companheiros, quando finalmente acham o misterioso artefato, são recepcionados numa missa celebrada pelo bispo Josefo, filho de José de Arimatéia. Quando Josefo ergue a hóstia consagrada, eles vêem o corpo de um bebê que representa Jesus. Galahad morre depois de contemplar os mistérios do Graal, e o cálice volta ao céu junto com a alma do cavaleiro.

Sangue de Jesus

A popularidade das lendas do Graal foi muito grande até o fim do século 15, mas sofreu um revés secular com o avanço da Reforma Protestante, que tendia a ridicularizar a velha paixão medieval por relíquias sagradas e milagres. Mas, por volta dos séculos 18 e 19, as antigas teses foram retomadas e o interesse pelo Graal voltou a ressurgir.



Em 1802, um acadêmico de Viena foi o primeiro a juntar o artefato aos cavaleiros templários, ordem criada pelo papa Urbano II no início do século 12 para proteger os cristãos que peregrinavam para a Terra Santa. Segundo a nova tese, Percival estava ligado à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão. Depois dele, muitos outros autores embarcaram na história.

Para chegar a essa associação, os escritores embasaram-se em uma antiga versão da lenda do Graal, datada do século 13 e de autoria do poeta alemão Wolfram von Eschenbach. Em Parzival, o Graal, descrito como uma pedra, é guardado pelos misteriosos “templeisen”. Embora o nome pareça, esses guerreiros não seriam, para o poeta alemão, os membros da Ordem do Templo: a palavra usada em alemão para templários é tempelherren. Além disso, os templários reais eram monges, enquanto os de Wolfram von Eschenbach casavam-se. Mesmo assim, as versões posteriores passaram a fazer relação entre os dois grupos.

Von Eschenbach também inspirou outras obras. Caso do compositor alemão Richard Wagner: com base no poeta medieval, ele criou sua última ópera, Parsifal, terminada em 1882. No mesmo século, com o ressurgimento do interesse no artefato, os arqueólogos, baseados em técnicas mais avançadas, resolveram começar a caçar o tal tesouro. Afinal, se conseguiram até localizar a antiga Tróia, não seriam capazes de descobrir o Graal também?

Nesse quesito, porém, é claro que as decepções foram se acumulando. Foi descoberto, por exemplo, que dois dos supostos “graais”, guardados como relíquias em igrejas de Gênova, na Itália, e Valência, na Espanha, provavelmente haviam sido feitos no Oriente Médio, só que na Alta Idade Média. No começo do século 20, o chamado Cálice de Antioquia, descoberto na Síria, chegou a ser considerado o Graal, até que análises mais cuidadosas mostraram que se tratava de... uma lâmpada a óleo.

Junto com a revolução científica moderna, paradoxalmente, muitas seitas esotéricas passaram a adotar o Graal como objeto de estudo. Os membros da obscura Ordem da Aurora Dourada, por exemplo, acreditavam que as histórias do Santo Graal eram uma espécie de mensagem em código sobre “os verdadeiros segredos místicos” da fé cristã. A versão mais recente desse fenômeno é a teoria dos escritores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln exposta em O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Segundo o livro, o San Greal, usado por autores franceses medievais em referência ao Graal, na verdade é uma corruptela de sang real, “sangue real” em francês antigo. Os autores vão mais longe: esse seria o sangue dos supostos descendentes que Jesus teria tido com Maria Madalena.



Já ouviu uma história parecida? Provavelmente porque o livro inspirou outro, o superbest-seller O Código Da Vinci, de Dan Brown. Que, por sua vez, virou um filme de Hollywood. Esta é exatamente a saga do Graal: uma história inacabada que vai sendo constantemente alimentada não só ao sabor de coincidências e de mitologia, mas também de um tanto de criatividade.

O cálice de um carpinteiro

Que tipo de taça um sujeito pobre da Galiléia usaria?
Os filmes do herói Indiana Jones (cuja quarta aventura, Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, chega aos cinemas no fim de maio) estão cheios de cenas antológicas. Uma das melhores talvez esteja no longa de 1989, Indiana Jones e a Última Cruzada. Nele, o personagem vivido por Harrison Ford descobre a chave para escolher o verdadeiro Graal. A taça certa, percebe ele, é “o cálice de um carpinteiro”, e não as vasilhas suntuosas que estão por ali. Poucas décadas antes do nascimento de Jesus, a Palestina virou um centro importante de produção de vasilhas de vidro, muitas das quais com formato parecido com o de um cálice de vinho moderno. Mas, como esse tipo de recipiente tinha grande aceitação nos meios não-judaicos, é possível que um judeu devoto como Jesus não aprovasse a moda. Nesse caso, as melhores pistas podem vir do sítio arqueológico de Qumran, na região do mar Morto. Muitos pesquisadores acreditam que no lugar moravam membros da austera seita judaica dos essênios, até o ano 70. Entre eles, parece ter predominado o uso de taças simples de cerâmica, sem alças. “O material de Qumran é bem próximo de Jesus espacialmente e temporalmente”, diz Francisco Marshall, da UFRGS.

As grandes relíquias religiosas

Algumas ainda são procuradas. Outras estariam guardadas
O interesse por restos mortais, roupas e outros artefatos ligados a Jesus, a Maria e aos santos deu margem a uma indústria medieval de relíquias. Documentos do fim da Idade Média sugerem a existência de até 18 diferentes prepúcios de Cristo (como bom judeu, Jesus foi circuncidado). Locais tão distantes quanto a Armênia e a Alemanha afirmavam possuir a lança que perfurou o tórax de Jesus durante seu suplício. E a quantidade de supostos vestidos de Maria certamente não se encaixa com as posses de uma camponesa de Nazaré. As relíquias medievais eram famosas não apenas por seus poderes curativos, mas também pela proteção que concediam. Muitos exércitos carregavam-nas ao partir para a batalha. Alguns artefatos religiosos viraram ícones tão fortes que muitos eram incapazes de aceitar que eles talvez estivessem perdidos para sempre – ou mesmo nunca tivessem existido. Conheça sete das relíquias cristãs mais famosas do mundo – algumas ainda procuradas, outras que se acreditam serem as verdadeiras.
Coroa de Espinhos
O primeiro registro da veneração da coroa que Jesus teria usado data do século 5 – igrejas de Jerusalém exibiam a relíquia. Seis séculos depois, com a chegada dos cruzados ao Oriente Médio, o objeto foi parar na França. Hoje, é abrigado na catedral de Notre Dame, em Paris – com pedaços na Espanha, na Itália, na Alemanha...

Vera Cruz

Helena, mãe de Constantino, primeiro imperador romano cristão, teria ido até a Palestina em 312 e desencavado o pedaço de madeira onde Jesus foi crucificado. Ao longo do tempo, a Vera Cruz (“cruz verdadeira”) foi desmantelada em pedacinhos que hoje estão na Espanha, na Grécia, na Bélgica e na França.

Reis Magos

Na catedral de Colônia, na Alemanha, um rico sarcófago triplo, segundo o mito, abriga os restos mortais dos Três Reis Magos, que presentearam Jesus em seu nascimento. Como os ossos só chegaram a Colônia em 1164, é pouco provável que realmente pertençam ao trio.

Santo Sudário

O pano de linho que teria envolvido o corpo de Jesus sepultado foi submetido a uma datação que revelou que sua idade não ultrapassa os 700 anos. Físicos investigam se uma contaminação rara pode ter gerado um erro de data do objeto, conservado na catedral de Turim, na Itália.

Arca da Aliança

A caixa de madeira folheada a ouro guardava, segundo a Bíblia, as tábuas de pedra com os Dez Mandamentos, além de possuir poderes. Oficialmente, ela desapareceu ou foi destruída com a queda de Jerusalém em 586 a.C. No entanto, uma igreja da Etiópia diz abrigar o artefato. Mas ninguém pode vê-lo.

Pegada de Maomé

A mais rica coleção de relíquias muçulmanas está no museu do palácio Topkapi, em Istambul. Além de objetos ligados a personagens bíblicos, o museu abriga até uma suposta pegada do profeta Maomé, o fundador do islamismo.

Arca de NoéNo fim do século 19 e começo do século 20, virou mania vasculhar as montanhas do nordeste da Turquia, em especial a região do monte Ararat, em busca do gigantesco barco que Noé teria, segundo a Bíblia, usado para salvar os bichos do dilúvio por volta do ano 4000 a.C. Por enquanto, porém, a arca não foi achada.

Saiba mais

Livros


O Santo Graal – A História de uma Lenda, Richard Barber, Record, 2007
Levantamento cuidadoso de todas as etapas da lenda do Graal, com trechos das principais novelas de cavalaria e análises da iconografia medieval que inspirou as histórias.
A Demanda do Santo Graal – Das Origens ao Códice Português, Heitor Megale, Ateliê Editorial, 2001Mostra como as novelas francesas foram traduzidas para o português arcaico e inspiraram a literatura de Portugal na Idade Média
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AUTOR:Reinaldo José Lopes

sexta-feira, 10 de abril de 2009

JOHN FANTE TRABALHA NO ESQUIMÓ OU A DOR QUE NÃO IMPEDE O SONHO

*Luíz Horácio Rodrigues



John Fante trabalha no esquimó é um livro violento, quase feroz, afronta a
indiferença, tão comum em nossos dias novelescos e “biguibrodianos”, seus contos retratam experiências nunca dissociadas do homem. Sejam elas cruéis, sejam elas oníricas. A dor não impede o sonho. É isso o livro de Mariel, sonho. O sonho que não queremos que chegue ao seu final e o pesadelo rotineiro de quem, por exemplo, vive na rua e cuja vida está por uma garrafa de álcool e um pau de fósforo. Estimado leitor, o cenário das histórias não é nada colorido, a trilha sonora não inspira amor, paixão, tampouco compaixão; mas o autor não se ocupa apenas em passear por esses escombros humanos, Mariel os apresenta como denúncia, não se trata apenas do esfacelamento da dignidade carioca, mas da que se alastra por qualquer parte onde se possa encontrar, em convívio permanente, uma centena de seres humanos. Estará instituída a degradação, a burla, a opressão, a seguir virá o ato da segregação e na cena final se dará o crime, assassinato, roubo, estupro. Triste é saber que esse espetáculo jamais sairá de cartaz.

O sonho que Mariel encerra nas 76 páginas de John Fante trabalha no esquimó é um sonho barulhento, tem sempre alguém sobre o fio da navalha, alguém que será vitimado pela afiada e inevitável lâmina;o homem que salta do ônibus, marcado para morrer, evita o som do revólver do matador , opta pelo som do corpo batendo na estrada. A gorda implorando para poder comprar companhia, o barulho das bolinhas de papel arremessadas pelo homem que vendia futuros ou o som de um homem sendo torturado.

Importante ressaltar que Mariel, feito poucos, consegue harmonizar o literário com o não literário, sua escrita assim como seus personagens, busca equilíbrio sobre um fio de arame farpado, lá em, baixo o abismo incandescentes. Sobrevive a coragem, a ousadia, os pontos vulneráveis, sim, eles existem, é a fragilidade que exige coragem caso você não saiba; e talvez o maior deles seja exatamente essa proximidade do real. E a realidade nem sempre é uma caricia, no mais das vezes, quer nas ruas, quer na literatura, é pura agressividade. Com precisão e sensibilidade de quem observa a vida com inconformismo, Mariel criou uma mistura instigante, soube cativar o leitor, combinou ingredientes estranhos , o resultado não é doce, tampouco chega a ser ácido ou azedo, no entanto, não evita o incômodo, a náusea por sermos tão parecidos com certos personagens de Mariel, este ácido flaneur carioca.

Sugiro, atento leitor, que você examine algumas fotos do midiático e oportunista Sebastião Salgado e depois leia John Fante trabalha no esquimó. A forma inversa também será aceita, não alterará o produto. A certeza do equívoco da máxima tosca que diz uma imagem valer mais que mil palavras. Feita essa experiência você saberá a diferença exata entre sensibilidade beirando a ingenuidade e oportunismo vislumbrando cifras. Altas cifras.


Mariel sua obra são pura honestidade e denúncia de nossa precariedade.
Seus contos ora são narrados na primeira pessoa, ora na terceira, a variação não implica em perda de intensidade, em John Fante trabalha no esquimó , o leitor observa uma fotografia do Rio de Janeiro, mas o autor evita os cartões postais, não são obras humanas; o que interessa, a matéria prima dos contos de Mariel é o homem, suas atrocidades, a barbárie envernizada, e uma dose mínima de ilusão.
Recomeda-se bater os ingredientes, servir em copo alto e sorver com o canudo da ironia, aspecto presente de forma sutil na maioria dos contos de Mariel. A abertura com Todos os homens são iguais onde o ator Charlton Heston, interpela o presidente de uma organização, protesta contra o espancamento de um homem negro. Em determinado momento o ator recheia seus argumentos apoderando-se de um rifle. Cabe dizer que o ator, o real, é um dos mais fortes defensores do porte de arma aos americanos.
“Atiraria em homens como aquele com um rifle deste tipo? Só porque desejam justiça, que sejam tratados como iguais e não como gado.” A auto-ironia também está presente no conto Orfandade onde o fazer literário é despido de qualquer traço de um suposto glamour. “Quanto ao futuro e a tal unidade de que ele me perguntava, eu disse não me preocupar muito sobre isso, porque todas as coisas ao final falam de uma mesma observação, insistem em se escrever sob formas diferentes, às vezes frágeis, então descartadas, outras, fortes, aí aproveitadas mais na frente em uma idéia que a comporte em seu bojo.”

Antes de encerrar peço sua permissão, paciente leitor, nós, críticos, resenhistas nunca deixamos de ser ranhetas, e mesmo frente a obras contundentes, de extrema relevância, como este livro de Mariel, conseguimos encontrar problemas e não conseguimos desprezá-luz, mesmo que quase insignificantes, como no caso.

Acontece que tais problemas podem vir a contaminar uma obra e por vezes infesta de modo a não permitir cura, uma promissora carreira. Tais problemas ocorrem nos contos Jonas, a baleia e em Por mil demônios. Nesses momentos o autor abandona o cenário por onde se movimenta com elegância e conhecimento e envereda por terras avessas ao seu projeto estético. O fantástico tornou os contos pueris. A baleia de Mariel remete ao inseto kafkiano, com prejuízo para o autor carioca, o demônio, por sua vez, repousava sobre um ombro e carregava em seu ombro um homúnculo, essa duplicidade do inesperado diluiu o impacto, tornou o conto circular. Mas, como alertei, isso também pode ser encarado como ranhetice de critico. Desconsidere se preferir, generoso leitor.

Aspecto bastante louvável é a coragem de Mariel ao remar contra a corrente do personalismo, do individualismo ou da variação romantismo edulcorado e sexo. John Fante trabalha no esquimó traz abordagens políticas, sociológicas, antropológicas, é quixotesco, não é pejorativo não, apressado leitor, tem a ver com a obra máxima Dom Quixote e é baudelairiano, em sua poesia cortante e no passeio critico pela cidade.
Mariel não foi nada modesto. Conseguiu dar cor à realidade e a solidão que ela encerra. Sorte nossa, privilegiado leitor.

Mariel Reis nasceu no Rio de Janeiro em 1976. É escritor e um dos editores da Fósforo. Publicou em diversos periódicos, entre eles o jornal Rascunho e a revista Ficção nº 11. Participou das antologias: Prosas Cariocas: Uma Nova Cartografia do Rio (Ed. Casa da Palavra); Paralelos: 17 contos da Nova Literatura Brasileira (Ed. Agir); Próximas Palavras (Ed.Eduerj). Colabora como editor no site e no blog Paralelos. Lançou recentemente o livro de contos Linha de Recuo (Ed. Paradoxo).












Resenhista: Luíz Horácio
Jornalista, escritor, autor dos romances "Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão", ed.Conex.2006 e "Nenhum Pássaro no Céu", ed. Fábrica de Leitura, 2008. Professor de Literatura, mestrando em Letras.

quarta-feira, 1 de abril de 2009



Nefertiti: uma deusa no comando
por Cláudia de Castro Lima


Provável rosto de Nefertiti

Ela se tornou sacerdotisa de uma nova religião e foi adorada como deusa. No fim da vida, governou sozinha o maior império de seu tempo.Poucas vezes nos quase 10 mil anos da história da humanidade a pessoa mais poderosa do mundo foi uma mulher. No Egito, no entanto, uma bela rainha liderou o maior império do século 14 a.C.
Era uma época de prosperidade e riqueza, graças às relações comerciais com os vizinhos da Mesopotâmia e da Ásia Menor. Era também um tempo de paz, quando a diplomacia egípcia evoluiu a ponto de surgirem inacreditáveis alianças com povos que antes só queriam saber de guerra, como o reino Mitani.

Mas por trás de toda essa calmaria uma tempestade estava se formando.

Aos 16 anos de idade, Amenhotep IV assumiu a co-regência ao lado do pai, Amenhotep III, que já estava no 28º ano de reinado. Em 1352 a.C., com a morte do velho, o rapaz herdou o poder sozinho. Quatro anos depois, sem maiores explicações, o novo faraó pirou. Mandou substituir o culto ao deus Amon-Rá, o mais importante da época, pela adoração ao deus-sol Aton, representado pelo círculo solar. Trocou seu nome para Akhenaton (que significa “a glória de Aton”) e espalhou que ele era o enviado do novo deus à Terra. Ordenou a construção da cidade sagrada de Akhetaton (“o horizonte de Aton”, conhecida hoje como Tell El-Amarna). E para lá transferiu a capital do Egito, para desespero dos sacerdotes e desentendimento geral da nação. Ao anunciar todo esse pacote de mudanças, avisou: “Ninguém, nem mesmo minha esposa, me fará mudar de idéia”.

QUEM É ESSA MULHER



A influente esposa citada nos discursos do faraó – fato raríssimo para a época e que mostra a importância da rainha – era Nefertiti. Não se sabe exatamente quando nem onde Nefertiti nasceu.

Nefertiti (que significa “é chegada a bela”) só passou a existir oficialmente após seu casamento com Amenhotep IV. Ela tinha 14 anos. Foi quando começou a aparecer nas inscrições em estelas e talatats, pequenos blocos de pedra na base das construções egípcias. São comuns estelas nas quais Nefertiti aparece ao lado do marido com suas filhas (eram seis ao todo). Cenas inéditas de carinho e intimidade familiar são mostradas.

O jovem faraó tinha duas esposas, mas a principal, a que possuía o título de Grande Esposa Real, era Nefertiti. Ao longo do tempo, sua influência só foi aumentando. “Na implementação da nova religião, Nefertiti teve um papel fundamental”, diz a historiadora Anna Cristina Ferreira de Souza, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Esse crescimento pode ser visto nas imagens da rainha gravadas nas paredes dos templos em Amarna – que fica a 590 quilômetros do Cairo. No começo, Nefertiti aparece bem menor que Akhenaton. Com o passar dos anos, ela vai ficando cada vez maior, até alcançar o tamanho do marido – uma indicação de que seu status também foi aumentando.

O crescimento atípico da rainha é normalmente associado ao seu papel na nova religião criada pelo marido. Pela primeira vez, o deus egípcio era único. Até então, a religião do Egito era baseada no culto a diversos deuses, cujos representantes na Terra eram os próprios faraós. A origem da crença remonta à Pré-História, quando tribos locais adoravam deuses e animais. Vários deuses eram cultuados, mas um de cada vez – o que era conhecido como monolatria.


Nefertiti e Akhenaton


Quando ainda se chamava Amenhontep IV, o faraó já dava indícios de sua nova fé: começou a levantar templos para Aton na cidade de Karnak, lugar de adoração de Amon-Rá. Até que oficializou o culto ao disco solar e ordenou o abandono do antigo deus. No quinto ano de seu reinado, começou a construção da nova capital, Akhetaton, que ficou pronta três anos depois. A relação com os outros deuses, a partir de então, estava rompida. Seria como se alguém hoje proibisse os católicos de adorar seus santos.

“Nefertiti contava com grande empatia e carisma entre a população, dando alguma popularidade ao culto de Aton, combatido pelos poderosos sacerdotes egípcios, que preferiam os deuses tradicionais”, afirma a historiadora Deborah Vess, da Universidade de Geórgia, nos Estados Unidos. “Sua beleza, combinada com o poder que ela adquiriu, tornou-a uma das mulheres mais importantes da história”, diz. As outras rainhas foram simplesmente rainhas. Nefertiti não: ela virou uma deusa encarnada.


PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA



Nefertiti, Akhenaton e seus filhos


Akhenaton promoveu a si mesmo e sua esposa à posição de deuses vivos. No início, o deus-sol Aton era representado com corpo humano e cabeça de falcão. Com o passar do tempo, essa representação foi substituída por imagens da família real, que estava sempre recebendo sagradas emanações do disco solar. “Houve uma simplificação na hierarquia dos deuses do Egito: só subsistiram as figuras de Aton e do rei, que era o único meio de acesso à esfera divina”, afirma Anna Cristina. “Os cultos passaram a ser direcionados à família real, pois só ela conhecia e podia cultuar o deus.” Nessa nova liturgia, Nefertiti encarnava todas as divindades femininas que os egípcios estavam acostumados a cultuar.

Tudo isso, porém, teve também uma motivação política. O poder do Egito, um reino em que religião e política se misturavam, antes era concentrado nas mãos dos sacerdotes de Amon. Na nova religião, passou a ser exclusivo do casal real. Desde o início, as mudanças atraíram a oposição dos poderosos sacerdotes. “Quem foi esperto e mudou de religião teve seu emprego garantido”, diz o egiptólogo Antônio Brancaglion Júnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Quem não o fez acabou perseguido, preso e banido.”

A insatisfação chegou à nobreza, incomodada pela extrema concentração de poder do faraó e de sua família, e finalmente ao povo, afetado pela construção da nova cidade – o que levou ao aumento de impostos e inflacionou os preços.
Além disso, o faraó não tinha a menor vocação para a guerra ou a política. Durante seu reinado, o Egito perdeu seus territórios na Ásia para os hititas, o que diminuiu a coleta de ouro e de impostos. Diante das críticas, Akhenaton reagiu com mais perseguição religiosa e enviou mensageiros a Tebas e Mênfis para destruir qualquer menção a outros deuses.

VIÚVA E PODEROSA


Esse era o clima em 1336 a.C., quando Akhenaton morreu, provavelmente de causas naturais, aos 34 anos – a média de vida dos egípcios, mesmo entre a elite, era de apenas 35 anos. Nessa época, as imagens de Nefertiti mostram-na usando paramentos típicos de faraó, como coroa e bastões. Para a maioria dos especialistas, o fato sugere que ela teria assumido o trono do Egito – primeiro ao lado do marido e, depois da morte de Akhenaton, como sua sucessora. “Embora o assunto permaneça controverso, atualmente a opinião de que ela tenha governado como rainha única é cada vez mais aceita”, diz Brancaglion.
Gravações em pedra encontradas em escavações no século 19 em Amarna mostram que, após a morte de Akhenaton, o Egito foi governado por um (ou uma) faraó de nome Nefernefruaton – que seria, na verdade, Nefertiti.

Para Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antiguidades Egípcias, não restam dúvidas sobre o poder acumulado por Nefertiti após a morte do marido. “As imagens de Amarna mostram a rainha sozinha, liderando procissões religiosas e até à frente de exércitos, posições reservadas exclusivamente aos faraós”, diz Zahi.
Críticos dessa tese chamam a atenção para o fato de que o sucessor de Akhenaton revogou quase tudo que o faraó fez durante seu reinado – o culto a Aton foi extinto e os antigos deuses foram retomados menos de cinco anos após sua morte. Por que Nefertiti abandonaria a religião do marido?



Anna Cristina tem algumas hipóteses. “Akhenaton deixou o Egito em crise. Após sua morte, vários setores da sociedade se revoltaram contra o trono. O retorno ao culto a Amon-Rá deve ter sido uma forma que a nova faraó encontrou para contar com o apoio do maior número possível de pessoas e pacificar o país”, diz. Isso justificaria o fato de Nefertiti ter trocado seu nome e tentado romper os vínculos com o antigo regime. “Foi uma decisão importante, tomada por uma mulher que tinha exata noção de seu papel na política do Estado.” Brancaglion concorda que a motivação de Nefertiti deve ter sido política. “Ela provavelmente percebeu que a nova religião estava levando o Egito ao colapso”, afirma.

Apesar disso, Nefertiti não conseguiu deter a crise religiosa e social que levou o Egito a um período de instabilidade política. Depois de apenas três anos de poder, ela teria morrido em situação nunca esclarecida. O Egito passou a ser governado pelo jovem Tutancâmon, que assumiu com cerca de 9 anos e morreu aos 19 anos.
Para quem acredita que Nefertiti terminou seus dias como a poderosa rainha do Egito, é difícil aceitar que seu corpo jamais tenha sido localizado – embora uma especialista americana tenha afirmado, em 2003, que achara seus restos mortais. Durante o governo de Tutancâmon, Amarna – provável local do sepultamento da rainha – foi abandonada. Os crentes de Aton foram perseguidos e a maioria dos templos construídos por Akhenaton e Nefertiti foram depredados. Os rostos dos soberanos foram raspados das imagens esculpidas em pedra. É possível que, nessa época, a tumba da rainha tenha sido violada.

Crescendo e aparecendo

Gravações em amarna indicam que a importância de Nefertiti aumentou com o passar do tempo.

À SOMBRA DO REI

No início do reinado do marido, ela aparece em tamanho desproporcional ao dele – o que era comum, pela maior importância política e religiosa do faraó. A arte tinha uma gama limitada de cores: vermelho, amarelo, azul, verde, preto e branco eram as únicas que os egípcios conseguiam obter.

OMBRO A OMBRO

Com o tempo, a imagem de Nefertiti aumenta até ficar da mesma altura que a do marido, sinal de que sua importância atingiu um patamar igual ao dele. Com Akhenaton, as linhas curvas passaram a ser valorizadas para lembrar o círculo solar do rei Aton.

1. DISCO SOLAR


As imagens de Amarna mostram o deus Aton representado pelo círculo solar. Ele geralmente fica no centro do desenho, irradiando raios luminosos sobre as cabeças do casal real. Os cultos se davam em lugares abertos, à luz do dia. A nova religião também era mais branda com os fiéis: quando morriam, eles se livravam automaticamente dos pecados, coisa que não acontecia nos outros cultos.

2. NEFERTITI

A rainha foi retratada inúmeras vezes em situações de família ou em rituais ao lado do rei. Também aparece – mais vezes do que o próprio faraó – oficiando rituais a Aton sozinha. Há na arte de Amarna ainda relevos que mostram seu papel importante na política: Nefertiti aparece golpeando inimigos ou na presença de cativos, atitudes que até então eram relacionadas apenas ao faraó.

3. AKHENATON

Era comumente retratado com cintura de mulher, coxas grossas e seios, enquanto Nefertiti por vezes aparecia com feições masculinas – figuras bem andróginas. Isso intrigava os pesquisadores, que achavam que o faraó tinha a síndrome de Frölich, uma disfunção glandular que deixa o portador infértil. Só depois percebeu-se que, como seres masculinos e femininos, o casal real se assemelhava ao deus-sol.
4. CRIANÇASPela primeira vez na história do Egito – e talvez na de todo o mundo antigo – cenas cotidianas e íntimas da família real foram expostas. O casal de soberanos aparece se beijando em frente às filhas, pegando-as no colo, dando comida a elas, fazendo-lhes carinho. As crianças aparecem brincando ou chacoalhando instrumentos musicais em cultos a Aton.

Rosto mutilado

Povo não perdoou a traição a seus deuses.

Anos após a morte do casal real, a população decidiu se vingar. Destruiu a antiga cidade de Akhetaton e quase todas as imagens do casal. Acusada de heresia por renegado os antigos deuses, Nefertiti teve os olhos de suas imagens riscados – para que não pudesse enxergar o paraíso depois da morte.

Para saber mais

• Deuses, Faraós e o Poder, Julio Gralha, Barroso Produções Editoriais, 2002 - Ajuda a entender a nova religião proposta por Akhenaton• Nefertiti, Egypt’s Sun Queen, Joyce Tyldesley, Penguin, 2000 - Com base em documentos e imagens, a autora recria a corte de Amarna nesta biografia da rainha.

A bela era homem

Pesquisadora disse ter achado a múmia que sumiu.

Um dos maiores mistérios da vida de Nefertiti é o paradeiro de sua múmia. Uma egiptóloga americana, Joann Fletcher, especialista em perucas egípcias (elas são uma forma de identificar as múmias, já que resistem bem à decomposição), fez o maior barulho em 2003 ao afirmar que tinha encontrado a rainha. Com uma equipe do canal Discovery, Joann foi até uma tumba do Vale dos Reis identificada como KV35. Uma peruca parecida com as usadas pelas mulheres da realeza foi achada ao lado de uma múmia mutilada. A mutilação de Nefertiti seria vingança dos seguidores de Amon-Rá. A comunidade mundial de egiptólogos se manifestou prontamente. O resultado de um teste de DNA feito na múmia em 2005 foi devastador. O corpo mutilado da KV35 era de um homem. Foi um vexame.

Fonte: Revista Aventura na História

Fotos: Internet

http://historia.abril.com.br/


Texto: Cláudia Castro Lima

(Na foto, é a 3a. da esquerda para direita)