quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

REFRÃO DA FOME E PAWANA






Refrão da fome é um romance sem herói, sem heroína, é um romance com sobreviventes. Sobreviver significa vencer a violência. Não importando a forma que esta se estabeleça.
Refrão da fome é uma história de tensão, do início ao fim. Essa tensão aumenta a medida que a menina protagonista cresce, não há trégua. O escritor Jean Marie Le Clézio, vai descascando, camada por camada a violência, algumas de suas nuances, que sobrevivem inclusive à guerra.
Em seu estilo preciso, claro, quase didático, Le Clézio, Prêmio Nobel de Literatura de 2008, pode ser classificado como um memorialista, ele traz à tona retratos, repletos de minucias do passado, para tencioná-los no presente. E quem sabe, também no futuro.

Em Refrão da Fome, o escritor, mais um, examina, sem luvas, mas com delicadeza a ferida incicatrizável causada pela Segunda Guerra Mundial. Vale lembrar que excetuando-se o cenário, de guerra, tal ferida não difere em muito das feridas provocadas pelo homem na atualidade.

Refrão da fome retrata a tragédia de Ethel, da menina inocente aos 12 até seus vinte anos de idade, então sem resquícios da ilusão e ciente do potencial predador do ser humano. Entenda-se, também, por potencial predador o fascínio pelos bens materiais. Fascínio esse capaz de levar o pai de Ethel a roubá-la. Do auge da ilusão ao apogeu da miséria. O período de sofrimento da menina, sua infância e a adolescência, tem início nos anos 30 e perdura até o final da guerra, em 1945. No entender deste aprendiz, Refrão da fome é um romance de formação. Mas por favor, afobado leitor, de formação se objetivarmos a trajetória de Ethel e um romance com rastros biográficos se partirmos para o lado do autor.Entendido? Não, não entendeu? Talvez eu precise dar uma aula sobre autoficção, autor implícito e autor-criador e autor- pessoa. Não farei isso agora. Em outra oportunidade, por que não?


Voltemos a Ethel. Bem nascida, vive em bairro nobre de Paris, gasta sua infância ao lado do tio-avô, Samuel Soliman. Le Clézio descreve a amizade entre eles utilizando um lirismo nada comum. Os passeios, a cumplicidade, a fantasia, o sonho compartilhado com Samuel, o velho comprara um pavilhão indiano na Exposição Colonial de 1931, a idéia de erguê-lo um dia em seu quintal, a expectativa dessa construção que acompanhará Ethel até a frustração pressentida pelo leitor, o futuro desenhado pelo tio-avô, caso você entenda Refrão da fome como um poema, um poema que trará seu último verso na morte de Samuel, você não terá cometido crime algum contra a literatura. Muito pelo contrário. E terá exposto sua sensibilidade, privilegiado leitor de Le Clézio.
Logo entra em cena Xénia, uma imigrante russa, de origem nobre mas devastada economicamente; a russa despertará a amizade e paixão em Ethel. Xénia, no entanto, será mais uma frustração na trajetória de Ethel. Ao desaparecer e logo pariticipar seu casamento e ao reaparecer como alguém extremamente arrogante e com ares de superioridade.

Alimenta um amor burocrático pelo inglês Laurent, militar atuando no front, esse amor atravessará o romance. O único aspecto duradouro, apesar da fragilidade, na vida de Ethel. Vida que desce ao porão sobrio com a debacle econômica da família, a guerra e seus tentáculos implacáveis, um deles, os alemães invadindo a França.


Le Clézio apresenta a desgraça sem exageros ou truques analgésicos, mostra uma família aparentemente tranqüila em sua rotina burguesa de tênues atribulações.

Por falar em burguesia, Le Clézio vai às entranhas da burguesia francesa, representada pela família, e suas relações, de Ethel. Burguesia alienada e, talvez a única escorregadela de Le Clézio, extremamente infantilizada. Ao longo da trama vem a tona assuntos relacionados com as ex-colônias francesas, os imigrantes árabes a "macular" o território francês.

Refrão da fome, insisto, é um romance de formação, é um romance político, é um romance que só poderia ser escrito por um francês. Do mesmo modo que François Truffaut é insuperável ao mostrar a infância no cinema, Le Clézio e Raymond Quenau (Zazie no metrô) são insuperáveis na literatura.

Não se trata de contar uma história edulcorada, só porque tem criança protagonizando, coisa comum entre nossos autores, armadilha que não cai Quenau e tampouco Le Clézio.

A violência está presente em ambas histórias. Em Refrão da fome vestindo alguns disfarces, guerra, miséria, trapaça, ganância, morte....

A violência que cresce, conforme a referência a "refrão"(ritournelle de la faim), o narrador se reporta aos últimos compassos, de estrondoso crescendo) de Bolero,de Maurice Ravel.

"O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma cólera, uma fome. Quando acaba em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes aturdidos". Palavras do narrador.
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Em Pawana Le Clézio, mais uma vez retorna ao passado e deixa bem claro que o ser humano é incapaz de evoluir, o que evolui são seus eletrodomésticos, no homem o que vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo é seu talento de predador, a rapinagem, a inesgotável capacidade de arranhar o mundo e suas criaturas.


Pawana trata da descoberta de uma passagem marinha, que conduz ao ponto escolhido pelas baleias para dar à luz e, ao mesmo tempo, o local onde elas voltam no final de suas vidas.
“Le Clézio conta a aventura obsessiva de Charles Melville Scammon, capitão do navio Léonore. Scammon e o grumete John, este nascido em Nantucket - também cenário de Moby Dick, de Herman Melville. Scammon e Jonh recordam seus dias a bordo do Lénore.



A relação homem/natureza é exposta com a devida crueza. Ambos buscam dinheiro, Jonh encontra algo mais. Talvez venha a modificá-lo.

O Capitão acredita na existência de um local, por enquanto desconhecido, onde as baleias se reproduzem e que retornem àquele lugar quando chegada a época. Incansável em seu objetivo, alcança êxito em 1856, no Golfo da Califórnia, o local secreto de reprodução das baleias, o berçário.

A descrição da chegada da embarcação do capitão Melville à costa oeste do México, maternidade/ berçário das baleias é de uma beleza impressionante. Le Clézio leva o descuidado leitor à beira do precipício enquanto este pensa estar pisando no inocente palco de um singelo, desde que sem a ambigüidade costumeira, conto de fadas. Tudo sob a luz da lua.




Berçário de baleias

Logo o leitor despencará no precipício com a narração do extermínio das baleias. Detalhe por detalhe da matança levam o leitor para o convés da chalupa, assiste de camarote o banho de sangue. Alcançado o objetivo, “o resto é silêncio”. A beleza destruída dói no mais embrutecido ser humano. Scammon acaba se culpando por sua descoberta. A destruição é total, flora, fauna, índios. Anos mais o ambiente se resume à areia e restos brancos das carcaças das baleias. Infelizmente a dor da natureza/beleza destruída é fugaz, não sobrevive ao ato. Logo o homem partirá para outra. Na época o óleo de baleia era combustível precioso usado na iluminação, e hoje qual a serventia? Mas a matança continua, voltem ao começo do texto sobre Pawana. Talve este aprendiz tenha cometido um equívoco; o ser humano evolui, perdoe otimista leitor. Agora ele é DESumano.





Massacre de baleias

Pawana é sensorial, o cheiro do sangue, do mar, o gemido das baleias, tudo isso chega ao leitor, em descrições, por mais absurdo que isso possa parecer, poéticas. A poesia que pode ser verificada na paixão do grumete Jonh por uma índia, escravizada, também dominada como as baleias. A índia presta serviços, anseia por liberdade, empreende várias fugas e é sempre capturada. Até que na fuga derradeira, além de ser recapturada, é assassinada. John que tão somente espionara sua beleza, não conseguira amar a beleza da índia deixa nítida a função dessa novela imprescindível. "Por que os homens matam aquilo que amam?"

TRECHO- REFRÃO DA FOME

Ehel captou o sentido do documento, que dava a seu pai plenos poderes para administrar, gerir e vender o patrimônio dela, inclusive o de construir fosse o que fosse sobre o terreno e o de tomar os empréstimos necessários para a realização do projeto.Embora a fórmula não contivesse ambigüidades, Ethel se lembrará mais tarde de ter acreditado, naquele instante, que o pai decidira continuar com a construção da Casa Malva, com o que sentira uma onda de felicidade.
O tabelião, ao concluir sua arenga, estendeu os papéis a Alexandre para que ele os relesse, rubricasse e assinasse, e em seguida os dois haviam mudado de assunto. Tratava-se de um empréstimo, de uns negócios no banco, talvez também da situação política internacional, mas Ethel não escutava. Estava impaciente para sair dali, da atmosfera sufocante daquele escritório entulhado de papéis, e se livrar da presença daquele homem e de seu bigode, de seus olhos pretos, da falação, de seus perdigotos. Tinha encontro marcado com Xénia diante do liceu, estava doida para ir contar à amiga o que ocorrera, para lhe dizer que em breve a Casa Malva haveria de erguer-se do chão, com seus janelões abertos para o jardim e seu espelho Deágua para refletir o céu do outono. Haveria um quarto para ela, Xénia, que não teria mais de morar no apartamento térreo infecto e sem iluminação da Rue de Vaugirard, naquele “depósito” onde toda a família dormia no mesmo cômodo, sobre colchões.


Assim que se viu na rua, Ethel deu um beijo no pai. “Obrigada! Obrigada!” Ele a olhava em silêncio, com ar de desentendido, como se pensasse em outra coisa. Ia até Montparnasse, passar nos bancos e fazer um almoço de solteiro, como costumava dizer. Ethel correra até a Rue Marguerin sem parar nenhuma vez.Não completara quinze anos e acabava de perder tudo.

TRECHO PAWANA

Ouviu-se um grito de triunfo e o peixe-diabo, uma fêmea gigantesca, mergulhou antes de podermos ver se o arpão a tinha atingido. Pouco antes de afundar,porém, ela deu esse sopro rouco que eu conheço tão bem, esse sopro que homem algum pode esquecer. O cabo se desenrolava a toda velocidade, puxando os freios que batiam como tiros nos bordos da chalupa, e o grumete ia molhando a madeira, para que não pegasse fogo com a fricção. Um instante depois, a baleia ressurgiu na superfície da laguna, num salto extraordinário, que nos deixou sem fala, a todos nós, tão grandes eram a beleza e o vigor daquele corpo erguido para o céu.Por uma fração de segundo ela ficou imóvel, depois tombou num monte de espuma e ficou boiando, meio de lado, e vimos o sangue que tingia a laguna, que avermelhava o vapor das suas narinas. Silenciosamente a chalupa se aproximou da baleia. No último momento, quando um frêmito na água indicou que ela ainda estava se mexendo, o índio lançou o segundo arpão, que cravou fundo em seu corpo, um pouco abaixo da articulação da nadadeira, entre as costelas, e atingiu o coração.No mesmo instante o sangue jorrou pelas narinas, num jato que subiu alto no céu, de um vermelho muito claro, e caiu como chuva sobre nossas e no mar. O corpo imenso estrebuchou, depois se imobilizou na superfície, tombado de lado,mostrando o arpão cravado, enquanto a mancha escura aumentava na laguna, rodeando a chalupa. Curiosamente, os homens não falavam mais nada.

O AUTOR

Jean-Marie Gustave Le Clézio é filho de pais mauricianos e nasceu em 1940 em Nice, no sul da França. Formou-se em Letras e, em 1963, com 23 anos de idade, ganhou o prêmio literário Renaudot por seu livro de estreia “Le Procès-Verbal” (Gallimard). Entre seus livros publicados no Brasil estão “O Africano”, “A Quarentena” e “Peixe Dourado”. Após anunciar a escolha de Le Clézio para o Nobel de Literatura no ano passado (2008), a academia sueca justificou sua escolha classificando-o como “um escritor da ruptura, da aventura poética e do êxtase sensual. É um explorador da humanidade além e por baixo da civilização reinante”.


RESENHISTA

Luíz Horácio Rodrigues

Nasceu em 19 de maio de 1957, em Quaraí, RS. O pai, Alvorino Machado Rodrigues, de Dom Pedrito, e a mãe, Doralina Pinto Rodrigues, vinda do Uruguai, são influências constantes em sua memória e gratidão. Pai de três filhos, Pablo, Thamara e Luísa, e avô de Yago. Luíz Horácio morou por 16 anos no Rio de Janeiro, retornando a Porto Alegre em 2008. Jornalista, professor de Literatura, escritor, autor dos romances "Perciliana e o pássaro com alma de cão"-ed.Conex e "Nenhum pássaro no céu"- Ed. Fábrica de Leitura.
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