terça-feira, 13 de abril de 2010

Desilusões de um americano / O grande jogo de Billy Phelan



* Luíz Horácio



O grande jogo de Billy Phelan e Desilusões de um americano, dois livros, dois autores, duas excelentes histórias bem diferentes, mas com algumas coisas em comum.

No centro das tramas a família. Em O grande jogo de Billy Phelan a família propriamente dita e a família mafiosa. Em Desilusões de um americano as memórias de um pai morto abrem caminho para a família, enfim, se conhecer e se reconhecer. Há outros traços em comum, veremos adiante, mas caso a escolha por um dos títulos for inevitável, caro leitor, opte por Desilusões de um americano, sem a menor possibilidade de arrependimento.

Tanto num quanto noutro estão disponíveis fartas doses de imaginação e criatividade, parece simples, mas não é; tais itens ainda são materiais indispensáveis à arquitetura de uma grande história. Deixam de lado as supostas inovações , tolices que vão dos quebra-cabeças sem sentido de Osman Lins e seu Avalovara, às frases sem pontuação de Saramago onde,nesses casos, a história torna-se aspecto secundário. Formalismos à parte, William Kennedy e Siri Hustvedt contam histórias, sabem contar, de maneira cativante e surpreendente.

Idas e vindas são marcantes nos dois romances. Agregam ficção à vida e com sutileza adentram em questões significativas da existência humana. A relação pai/filho, Billy e Francis; Edward e Martin, na história de Kennedy. Erik, Inga e Lars, pelo lado de Ustvedt. Acrescente-se o tom investigativo, o suspense, as sinuosas pistas oferecidas . Nem sempre confiáveis. O leitor se torna o grande vencedor.

O grande jogo de Billy Phelan é uma tradicional história de gângster, do submundo do jogo e das “peculiaridades” do poder.Nada fora do lugar , porém sem a costumeira previsibilidade que exige a luta do bem contra o mal. Aqui o bem, caso exista, usa disfarce.

Tradição e modernidade não se chocam no texto de William Kennedy, unem-se na tarefa de contar a história de Billy Phelan, o jogador, que vive a dizer: “Billy sempre paga suas dívidas.” E de aposta em aposta a vida de Billy transcorre sem maiores atropelos, no ritmo dos bem quistos. Até o dia em que solicitado a atuar como informante, diz não ao papel. Fecham-se as portas, Billy não tem onde beber e jogar. Resta-lhe a solidão, agora mais acentuada. Não, paciente leitor, você não encontrará cenas de amor, de encontros, O grande jogo de Billy Phelan é um livro seco, frio,sem espaço para remissões. Aqui tudo é contido, impera a tensão, o suspense silencioso.

Exemplo: Charlie Boy, o garoto da família McCall é seqüestrado. A ação não é descrita. Nenhum tiro é disparado, tampouco na libertação onde a aparição, na janela de um carro, de dois canos de uma espingarda, constitui a maior violência.

Aparentemente simples, se ficarmos apenas com a história de Billy, no entanto complexa, precisa, se atentarmos aos aspectos da política, da corrupção e da miséria que cerca a existência humana.

Outros pontos em comum: a presença de imigrantes, noruegueses em Desilusões..., irlandeses em profusão em O grande jogo...o caderno do pai de Martin em O grande jogo... O diário do pai de Erik em Desilusões... A importância dos sonhos nos dois romances. O cunhado de Erik, escritor e roteirista de cinema, o pai de Martin, autor de peças teatrais. Em ambas histórias atrizes desempenham importantes papéis na trama. Hustvedt e Kennedy descrevem o cenário, mas merece destaque a forma como Kennedy o faz, sempre durante caminhadas dos personagens. O movimento não cessa, nem mesmo naquilo que a tradição apresenta como algo estático. As doenças dos pais de Erik e Martin, as recordações, a guerra. Da guerra, a semelhança das cenas, fortes, mas sem apelar para o exagero nas descrições. A ação de O grande jogo ...ocorre nos anos da grande depressão americana, nas memórias de Lars várias referências a essa mesma época em Desilusões...Investiga-se um seqüestro em O grande jogo...procura-se descobrir a identidade da autora de uma carta, em Desilusões...Um pai deixa cair um bebê em O grande jogo...em Desilusões um pai se distrai e a filha cai pela janela do apartamento.

Memória e realidade se fundem nos dois livros, Martin tem muito de Kennedy que também foi jornalista. Hustvedt utiliza anotações de seu pai morto em 2003.

Desilusões de um americano é um romance de idéias, de cunho autobiográfico. Memórias, problemas familiares, o não dito, o não acontecido. Aqui o mal se dilui nas frustrações.

Na trama de Ustvedt o jogo também está em cena, na forma de um quebra-cabeças, ou melhor, de dois quebra-cabeças. A existência de um caderno de memórias do imigrante norueguês Lars, pai de Érika e Inga. Ali encontram-se os relatos de sua chegada aos EUA, de sua participação na segunda guerra mundial, e um mistério. Remexendo os papéis do pai, os irmãos encontram a carta de uma certa Lisa. A mulher pede que Lars silencie sobre a morte de uma pessoa, também desconhecida. Durante o périplo investigativo, Inga e Erik estabelecem diálogos, instigantes ao leitorcurioso, acerca de filosofia, neurociência e psiquiatria. Mais um atrativo de Desilusões de um americano.

Dois passados que precisam ser montados, criados, recriados talvez, o do pai do psicanalista Erik Davidsen, uma morte precisa ser esclarecida, e o do cunhado de Erik, o roteirista Max Blaustein, uma vida- um filho fora do casamento- precisa ser admitida.

Vale chamar a atenção para dois aspectos: Desilusões de um americano é narrado por uma voz masculina. Segundo ponto;personagens femininas, no mínimo estranhas, para não dizer atormentadas.

Inga traumatizada pelo terrorismo do 11 de setembro, tenta seguir em frente após a morte do marido, mas tem uma filha adolescente e seus problemas e não bastasse isso ainda é perseguida por uma jornalista interessada em vasculhar a vida do falecido.Miranda, inquilina de Erik, não consegue cortar os laços com o psicopata pai de sua filha. Mas, em se tratando de mulheres “estranhas” ainda resta uma atriz e o que seria uma drag-queen instantânea.

Mas os personagens masculinos não são nenhum exemplo de equilíbrio; Erik parece não se abalar por nada, emoções não são seu forte, Jeffrey Lane, ex-marido de Miranda, pode ser chamado de psicopata,Max teve filho fora do casamento,Burton e o amor platônico por Inga.
Embora todos esses atrativos citados, o personagem mais marcante de ambos romances é a solidão. Solidão que no cenário de incertezas desenha novas realidades.

A solidão de Martin, o jornalista, a solidão de Billy Phelan, o jogador, abrandada por sua suposta liberdade, independência, desapego.Perder ou ganhar, o importante é jogar.A solidão de Francis, pai de Billy, que abandona a família após deixar cair e morrer seu outro filho ainda bebê. O mesmo Francis que tempos passados matara um condutor de bonde com uma pedrada. Logo fugiu da cidade.Não tardou a voltar e ficar por outros quinze anos. Ao comentar os dois acontecimentos: “É” , disse Billy. “Até dar um jeito de matar outra pessoa.” A solidão de Melissa, a atriz, que, apesar da idade,pode comparar os dotes de Martin e de seu pai, o dramaturgo Edward Daugherty.

A solidão de Francis, a mesma solidão de Billy,igual a solidão de Martin, a solidão de Edward, a solidão do abandono.

A cicatriz da solidão na figura do seqüestrado Charlie Boy.

Em Desilusões de um americano, a solidão de Erik, morte do pai e fim de seu casamento. Sente-se atraído por Miranda, sua inquilina, mas a história não progride. À irmã, Inga, filósofa, escritora; além da morte do pai, a morte do marido Max Blaustein. A fama do marido oprime e isola essa mulher que parece “suportar a vida.” A solidão como testemunho histórico e social.
A ação permanente dos acontecimentos, o que se deu não se desfaz tampouco é esquecido.Como o abandono de Billy, a traição sofrida por Inga, a separação de Erik, o gesto assassino de Francis, cenas que se repetem com a capacidade de tornar cada vez maior a solidão. Como faz comigo a cena da morte de minha filha. Solidão, começo e fim.

Desilusões de um americano, além do prazer da leitura, se presta a estabelecer um debate acerca dos conceitos de auto-ficção, autor implícito, autor criador, autor pessoa. Onde começa um e termina o outro? Existem mesmo, além teoria, essas divisões e subdivisões?



*Escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, Nenhum pássaro no céu, Luísa e a barriga da mamãe (infantil), jornalista, professor de Literatura, mestrando em Letras.
Imagens: Internet