terça-feira, 27 de março de 2012



Ao que minha vida veio 

* Luíz Horácio Rodrigues

   Este aprendiz, quando aluno de mestrado, conheceu um professor que disse, não sem a devida pompa e arrogância, que pesquisava a(s) diferença(s) entre o regional e o universal em literatura. Para ele isso era regional, aquilo universal. É dos tais que separa literatura masculina e literatura feminina. Até quando? Com sua licença, estimado leitor, naquele tempo e atualmente, este aprendiz entende tal preocupação e referida pesquisa como grandes tolices.

Todorov
 Prefiro Todorov: “Literatura não é teoria, é paixão.”
   Desconheço criação, pelo menos no campo das artes, que não traga em sua origem uma grande paixão.
   Cabe deixar bem claro que teoria e paixão podem andar juntas. Desde que, e aqui reside a questão que o tal professor bem que poderia tomar para si, acompanhadas da imaginação.


   Exemplo: ao que minha vida veio..., autor: Alckmar Santos. Narrativa que apresenta uma sintaxe particular, não digo se tratar da fala do homem do povo, ou do caipira, muito menos do trabalhador rural semi alfabetizado, não pretendo ser tão raso.

   O cenário linguistico é outro. O cuidado com a linguagem chega a ser comovente. Não podemos dizer que este ou aquele personagem fale errado. Por mais exigentes que sejamos. Por falar nisso, a linguistica nos impede de fazer essa distinção,certo e errado linguisticamente. Linguisticas à parte; as personagens de Alckmar podem não fazer uso do mesmo léxico que você, erudito leitor, e este aprendiz,no entanto, são incapazes de truncar a recepção, de turvar o sabor dessa requintada trama. Bem diferente de Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto, que exige um dicionário de termos campeiros. O que não extrai o tédio da maioria de seus contos.


   Alckmar conta uma história sofisticada, exige total atenção, mas sem afetações, sem os excessos barrocos de Saramago e seus nefastos imitadores.
   Tio Eli deixou um bilhete: Viva o amor

E pulou do ponto mais alto a que pôde chegar da sapucaieira maior das três que por lá havia

   Ao que minha vida veio... tem seu início lá pelos anos 30 e se estende por quatro décadas de intensa criatividade narrativa onde o privilegiado leitor entra em contato com cenários e um elenco de personagens e acontecimentos, reais e fictícios, suicídio de Getúlio Vargas por exemplo, todos coadjuvantes da trajetória tropeiro Juca Capucho.
   O autor não recorta a realidade para depois colá-la nas páginas do livro, não, a opção é outra, mais arriscada. Alckmar transforma, recria um mundo, experimenta, arrisca, inventa.
   Impossível não lembrar Guimarães Rosa, cenário, personagens, linguagem, a relação do homem com a terra, com a sua terra. Relação que tem tanto poder de fertilizar ingenuidades, mas também pode produzir abjetos jagunços. Embora nestes, em Guimarães Rosa, também se possa notar traços de ingenuidade.
   Mas Alckmar soube equilibrar a questão da linguagem, não impede a fluidez narrativa, com um sutil suspense que perspassa essa brilhante história, um policial/existencialista ambientado em região jamais explorada para tal fim. Quando alguém arrisca, inquieto leitor, gera o inevitável: ciúme. É isso, este aprendiz, terminada a leitura, sentiu uma pontada de inveja envolta em celofane de admiração.
Voltemos ao que interessa, ao luxuoso cerne da questão.

   A convivência harmoniosa da linguagem, erudita e popular, a opção pela rusticidade, sem perder a beleza, das frases, os diálogos repletos de musicalidade da fala dos tropeiro, são suaves gritos de alerta: olha aqui, a literatura não acabou, ainda há o que inventar, vale a pena pesquisar a linguagem...
Ao que minha vida veio é uma carreira em cancha reta. O cavalo, chamado Imaginação, é um ganhador, o jóquei precisa vencer, nem pensa em photo chart. O troféu: conhecer sua origem, descobrir o tesouro mais valioso; nomes de pai e mãe que lhe são negados.
   Caro leitor, ao que minha vida veio... é um livro de se ler e reler.


TRECHO

Daí que esses anos todos, mais de dez, no seguro e certo!,daí é então que esses todos anos se passaram como corredeira de pouca água em enchente de pouca monta. Houve alguns rebuliços no lá-longe de outros. Estados, agitações que a nós até chegavam sujeitas, agora, à intermitência dos reclames e dos noticiosos do rádio na forma de assembleias e golpes e contragolpes e abortadas revoluções, mas é mesmo que nada de nenhuma coisa alguma nos empurrava a atroar algum desacordo ou desacorçoo com o ramerrão da rotina seca e fria a que nos tínhamos. Aldebar e Altair, os tios idos a São-Paulo para os seus estudos, passaram por aqueles anos e escolas, meteram anéis de causídicos e alianças de casados, esmeraram-se em empregos públicos cavados nos tempos e termos de governo de Adhemar Pereira de Barros e nem mais deram caras e vistas na casa-grande, eles também esquecidos, e mesmo talvez mais.A criançada cumpriu seu ofício de ir crescendo e saindo, agora cada vez mais cedo, para os devidos e já esperados estudos no Ginásio Nogueira da Gama de Guaratinguetá e no-depois a partida para São Paulo à exceção das meninas que ficavam é mesmo no curso normal e se formavam mestras-de-escola sem que escola houvesse para elas, voltando então para aquela casa-grande agora cada vez maior e impressionando a pequeneza das gentes a golpes de imensidão enorme!
O AUTOR

Alckmar Santos é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordena o Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL). Foi pesquisador convidado na Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle (2000-2001) e na Universidad Complutense de Madrid (2009-2010). É também poeta, romancista e ensaísta. Autor dos livros Leituras de nós: ciberespaço e literatura, Dos desconcertos da vida filosoficamente considerada (ensaio e poemas, respectivamente Prêmio Transmídia – Instituto Itaú Cultural), Rios imprestáveis (poemas, Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira da revista Cult).