sexta-feira, 30 de setembro de 2011

UMA FRAÇÃO DO TODO



* Luíz Horácio Rodrigues




Não admiro tampouco invejo aqueles que alardeiam não ter medo da morte. Não temer a morte é não ter medo de morrer. Essas pessoas me assustam. Temo a morte e as maneiras de morrer. Li e reli Sêneca: “Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu, talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer”. Não funcionou.

Sêneca


Uma fração do todo é um livro descontraído e pretensioso. Descontraído por se tratar de uma comédia, pretensioso por pretender abarcar mais que uma fração do todo, vai de uma análise profunda da solidão ao exame pormenorizado da vida em sociedade. Consegue ser trágico, irônico e engraçado. Ao mesmo tempo. Na dose exata às pretensões do mercado. Tudo bem visível, tudo na superfície. Sim, é ficção, eu sei. Mas de ficção desse teor o inferno está cheio.

Steve Toltz
Uma fração do todo é de ruborizar o livro de Murakami, aquele sobre corrida. Steve Toltz mostra que não brinca em serviço, está bem preparado fisicamente. Recomenda-se o mesmo treinamento aos leitores pois estarão a cada página frente a um novo acontecimento. Tal aspecto aliado a características dos personagens, sobretudo Terry, faz de Uma fração do todo um tardio representante da novela picaresca. Imprevisibilidade é outra característica da obra de Toltz, reviravoltas e mortes que mudam o rumo da história. Sim, o leitor jamais sentirá o tédio tentando lhe seduzir, ao mesmo tempo se perguntará: mas pra que tudo isso?

Optei pela morte, pelo medo da morte. Mas precisava tanto para tão pouco?

Não interprete, freudiano leitor, por favor não interprete.Isso não significa que este aprendiz ame livros sonolentos onde pouco acontece, como Becket e o tédio mor de Clarice Lispector.Nada disso. Toltz escreveu um livro para os irmãos Cohen, fique atento cinéfilo leitor. O trágico e o engraçado referido anteriormente, lembra? Lá no começo.

Irmãos Cohen, irmãos Dean. Martin e Terry Dean. Opostos, extremamente opostos.Martin, filósofo pessimista, Terry, líder da “cooperativa democrática do crime. Martin, o taciturno, a ausência de movimento. Terry,o bandido carismático, a inquietação.

A história é narrada por Jasper Dean, filho de Martin. Jasper é o resultado das influências familiares extremamente opostas. Tudo leva a crer, no entanto, que se as influências viessem apenas de seu pai, o resultado não seria muito animador. “Ele me tirou da escola com a intenção de me educar ele próprio e, em vez de me deixar pintar com os dedos, lia para mim as cartas que Van Gogh escreveu para o irmão Theo pouco antes de cortar a própria orelha”.

Jasper Dean


Jasper é praticamente a cobaia de Martin. Cobaia de filósofo existencialista, convenhamos... O garoto sobrevive, assim como outras cobaias sobreviventes, ostentando sequelas.

Van Gogh

A orelha de Van Gogh é uma das traduções da obra de Toltz, trata-se de uma fração. Ao final da leitura restará ao leitor a possibilidade de optar por uma fração, escolhi o medo da morte. Você tem várias outras: análise engraçadinha sobre a Australia e os australianos, tratado sobre relações familiares,retorno ao ideal quixotesco,pitadas de Policarpo Quaresma, e pasme, reflexões acerca da solitária atividade intelectual. Repleto de novidades, não?

A outra tradução: o inconformismo de Martin. Submeter uma criança ao cansaço dos professores é exigir extrema submissão. Com a palavra Jasper: “...depois de oito meses no jardim de infância, decidiu me tirar de lá, porque o sistema educacional era ‘embrutecedor, emburrecedor, arcaico e materialista’. Eu não sei como alguém pode chamar pintura a dedo de arcaico e materialista”.

Depende, Jasper, depende. Mais uma: o livro traz inúmeros questionamentos, humor, interpretações de inestimável relevância, que beira a auto-ajuda.
Percebeu, exigente leitor, um livro de mil e uma utilidades. Bom proveito.


*Luíz Horácio Pinto Rodrigues








Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e  Mestre na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Atualmente reside em Porto Alegre (RS). Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.

Fotos: Internet

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Brasil também teve campos de concentração


Durante a 2ª Guerra, também tivemos nossos campos de concentração - onde japoneses, italianos e principalmente alemães ficaram confinados. Conheça as histórias dessas pessoas

por Alexandre Duarte



Manhã de 2 de março de 1944. Na Estação Experimental de Produção Animal de Pindamonhangaba, uma fazenda no interior de São Paulo, ouviu-se um som que não era comum no local. Era o choro de uma criança nascendo. Mas não uma criança qualquer. O choro era de Carlos Johanes Braak, o único brasileiro nascido em um campo de concentração - e em seu próprio país. Durante a 2a Guerra Mundial, o Brasil manteve 31 campos de concentração, para onde mandava os cidadãos de países do Eixo - a coligação formada por Itália, Japão e Alemanha. Os pais de Carlos, que eram alemães, estavam entre as centenas de pessoas que viveram esse lado menos cordial da história brasileira. "Era uma fazenda. O estábulo virou um dormitório. Minha mãe ficava numa casa, separada. Foi onde passei os dois primeiros anos da minha vida", lembra Carlos.


O pai de Carlos se chamava August Braak. Sua mãe, Hildegard Lange. Eles partiram de Hamburgo, na Alemanha, em direção à Cidade do Cabo, na África do Sul. Estavam a bordo de um navio chamado Windhuk, no qual August trabalhava como comissário e tesoureiro.

O Windhuk era uma embarcação turística, mas também coletava mercadorias. Quando a 2a Guerra começou, o navio já estava no continente africano - em Lobito, Angola, recebendo um carregamento de laranjas. O navio não tinha como voltar para a Alemanha em guerra, pois estava sendo perseguido por embarcações inglesas. O capitão decidiu fugir para o Brasil. E a embarcação acabou chegando ao Porto de Santos disfarçada de navio japonês, com o nome de Santos Maru, em 7 de dezembro de 1939.
Assim que o navio chegou aqui, ficou evidente que ele não era japonês coisa nenhuma. Mas os alemães foram bem recebidos. August e Hidelgard, bem como os outros 242 tripulantes, viviam em Santos e redondezas. Alguns moravam no próprio barco, outros, em pensões. Todos recebiam salários do governo alemão, e levavam uma boa vida. Em 19 de abril de 1940, os pais de Carlos se casaram numa festa a bordo do navio.
 
Mas, em 1942, tudo mudou. O Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo - cujos cidadãos passaram a ser considerados inimigos. "O governo brasileiro precisava fazer isso [criar os campos de concentração] para se alinhar com as estratégias dos Aliados e dos EUA", explica a pesquisadora Priscila Perazzo, autora do livro Prisioneiros da Guerra (Ed. Humanitas). Alguns estrangeiros foram mandados para presídios comuns - como os de Ilha Grande e Ilha das Flores (RJ). Mas a maioria foi para campos de concentração, organizados pelo Ministério da Justiça.


Os pais de Carlos foram parar num desses campos - a fazenda em Pindamonhangaba, onde ficaram confinados 136 alemães do navio Windhuk. Eles foram presos porque seu navio tinha chegado ao Brasil durante a guerra, coisa que o governo interpretou como uma ameaça.

Os prisioneiros não podiam manter suas tradições. Nada de ler livros em alemão, por exemplo. Mas o clima era relativamente tranquilo. Alguns prisioneiros podiam visitar o centro da cidade aos sábados, aonde iam acompanhados pelos guardas. "Era comum os presos chegarem carregando os fuzis dos guardas, que sempre voltavam bêbados", diz Carlos.
Trabalhos forçados


A outra parte da tripulação do navio foi parar no campo de Guaratinguetá - entre eles Horst Judes, também tripulante do Windhuk, que tinha 19 anos. Quando desembarcou em Santos, foi um dos que ficaram vivendo no navio, até ser preso em 1942. No campo de concentração de Guarantinguetá, o tratamento não era tão bom. "Éramos obrigados a trabalhar no campo", conta o alemão, hoje com 87 anos e dono de uma chácara no interior de São Paulo. A rotina no campo de Guarantinguetá era acordar cedo, pegar enxada e picareta e dar duro. Cada prisioneiro levava um número nas costas. "O meu era 17", conta Horst. O café da manhã tinha dois pãezinhos e uma caneca de café. No almoço e no jantar era só arroz com feijão. Às quintas e aos domingos, era dia de macarrão. Mas a comida nem sempre era suficiente, e os prisioneiros dependiam de padrinhos, geralmente alemães livres, que os ajudavam de diversas maneiras. Alemães livres? Sim. A maior parte dos imigrantes não foi presa. Iam para os campos aqueles que chegavam ao Brasil em plena guerra, ou eram suspeitos de espionagem.

Foi graças a esse apadrinhamento que Horst conseguiu sobreviver depois de ser solto, em 1945. "Saímos do campo sem dinheiro nem emprego. Foram os padrinhos que nos ajudaram. O meu era de São Paulo. Trabalhei como mordomo e até como taxista", conta. Como a maioria desses estrangeiros, ele também constituiu uma família brasileira, e diz gostar do país que adotou de maneira forçada.
Campo de Concentração Tomé-Açú (PA)


Na época, o governo brasileiro fazia de tudo para mostrar que os prisioneiros de guerra eram bem tratados - o que nem sempre era verdade. O tempo de internamento variava. Houve pessoas que ficaram 3 anos presas, mas outras conseguiam ser libertadas mais cedo. Também é difícil definir exatamente o número de presos que foram mandados para os campos de concentração brasileiros entre 1942 e 1945, pois os registros são vagos. Mas existe uma documentação que revela nomes e, em alguns campos, o número exato de prisioneiros que passaram por lá. Os registros comprovam que a maioria era de alemães, seguidos de japoneses em bem menor número, italianos e um ou outro austríaco.

Campo Oscar Schneider (SC)

Juventude Hitlerista



 Poucas pessoas foram tão afetadas com o internamento nos campos quanto Ingrid Helga Koster, cujas memórias registrou no livro Ingrid, uma História de Exílios (Ed. Sagüi). Nascida no Paraná, ela se tornou órfã de pai com apenas 1 ano de idade. Quando tinha 5 anos, sua mãe se casou novamente, com um alemão. Seu padrasto, Karl von Schültze, tinha migrado para o Brasil em 1920, para fugir da crise que castigava a Alemanha depois da 1a Guerra Mundial. Schültze chegou aqui e, junto com outros estrangeiros, começou a trabalhar em uma empresa alemã, a AEG, fazendo instalações elétricas em vários lugares do país. Ele se casou com a mãe de Ingrid no início dos anos 30, em Rio Negro, no Paraná. Pouco depois a família, já com duas outras filhas, se mudou para Joinville, em Santa Catarina, cidade dominada pela cultura alemã. Ingrid se lembra de ouvir no rádio um novo chanceler que assumira o poder na Alemanha, cujo carisma a deixava emocionada. "Eu ficava arrepiada. Ele sabia falar com o povo. Nós não imaginávamos o que estava acontecendo", conta Ingrid. O tal chanceler era Hitler.
 

Então começou a guerra, e o pai de Ingrid pressentiu que as coisas ficariam ruins. Ele proibiu, mais de uma vez, que Ingrid se unisse ao movimento Juventude Hitlerista que existia em Joinville. Na Alemanha, esse grupo foi criado para reunir e doutrinar ideologicamente os jovens de 6 a 18 anos. No Brasil, o grupo assumiu um tom mais brando - servia principalmente como ponto de encontro para os imigrantes alemães. Mas o pai de Ingrid não quis nem saber. E também queimou todos os livros em alemão que tinha em casa. Entre eles o famoso Mein Kampf (Minha Luta), de Hitler.


Até que, em 1942, a polícia bateu à porta. "Eles chegaram procurando pelo meu pai, o levaram e ficamos dias sem notícias. Até que chegou um comunicado dizendo que ele estava preso aqui em Joinville", lembra ela, que depois de algum tempo passou a levar marmitas para seu pai no Hospital Oscar Schneider, adaptado como campo de concentração à época. O governo brasileiro acreditava que Karl fosse um espião nazista. Por isso, o regime de confinamento dele era rígido. Nos dois meses em que ficou em Joinville, nenhum familiar pode visitá-lo. A marmita era entregue aos guardas. Até que certo dia, quando Ingrid foi levar a comida, lhe avisaram que seu pai não estava mais lá: tinha sido transferido para o Presídio da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. "Nosso dinheiro acabou e tivemos que voltar para o Paraná, viver do jeito que dava", diz Ingrid. "Nossa casa era apedrejada, pichavam a suástica nos muros. Nós éramos o inimigo."

Daí em diante, ela só pôde visitar o padrasto uma vez por ano - no Natal. Quando a guerra acabou, Karl foi libertado por falta de provas. Mas seu chefe na AEG, Albrecht Gustav Engels, acabou condenado a 8 anos de prisão por fazer espionagem nazista. "Meu pai nunca falou sobre os tempos em que ficou preso. Mas acredito que tenha sofrido muito, inclusive tortura, porque antes era uma pessoa alegre e depois se tornou calado, triste", conta Ingrid. Ela chegou a perguntar antes de o padrasto morrer, em 1966, se ele realmente espionara. Karl deu uma resposta vaga, e disse apenas que não foi condenado. Então ele era mesmo um espião nazista? "Até hoje não tenho certeza", admite Ingrid.

Mesmo tendo passado por sofrimentos e humilhações, os prisioneiros alemães não quiseram deixar o Brasil depois da guerra. Como o padrasto de Ingrid. "Quando eu perguntava se ele não gostaria de voltar, ele dizia que, apesar de tudo, agora era brasileiro."

Os principais campos de detenção 

 
1. Tomé-Açú (PA)

A 200 km de Belém. Recebeu alemães e japoneses.

2. Chã de Estêvão (PE)

Abrigou empregados alemães da Cia Paulista de Tecidos (hoje conhecida como Casas Pernambucanas).
3. Ilha das Flores (RJ)


Nessa cadeia, prisioneiros de guerra foram misturados com detentos comuns - uma violação das leis internacionais.


4. Pouso Alegre (MG)

O campo de Pouso Alegre reunia presos militares: os 62 marinheiros do navio Anneleise Essberger.

5. Guaratinguetá e Pindamonhangaba (SP)

Fazendas que pertenciam ao governo e foram adaptadas para receber alemães.

6. Oscar Schneider (SC) Hospital transformado em colônia penal.

Fonte: História Viva


Imagens: Internet