terça-feira, 26 de maio de 2009

O SEGREDO DOS INCAS (QUÉCHUAS)







Machu Picchu foi descoberta em julho de 1911 pelo historiador americano Hiram Bingham, é considerada patrimônio Cultural da Humanidade. Está localizada a 2 400 metros de altitude sobre o nível do mar e rodeada por uma exuberante vegetação. A área dominada pelo Império Inca foi uma das mais extensas dentre todos os impérios conhecidos. Habitavam a região hoje ocupada pelo Equador, Peru, norte do Chile, Oeste da Bolívia e noroeste da Argentina.Mais de dez milhões de índios haviam se fundido nesta unidade política e cultural que era de elevado nível. Fisicamente os Incas eram de pequena estatura, pele morena, variando do moreno claro ao escuro, cabelos pretos e lisos quase imberbes. A organização dos incas era de forma piramidal, sendo o Inca, o chefe supremo, com poderes divinos. Seus deuses eram os elementos naturais. Seu deus principal era o Sol, seguido da Lua, das Estrelas, do Relâmpago e a Chuva. Isto porque tinham uma organização econômica baseada na agricultura e dependiam destes elementos fundamentais para a fartura. Tinham profundo conhecimento de meteorologia e das estações do ano para saber a época apropriada para plantio e a colheita das várias espécies vegetais. Também eram muito hábeis na manipulação da cerâmica, tecidos e do ouro.




Fundadores míticos de Cusco-Manco Cápac e Mama Ocllo



A primeira organização piramidal da cultura dos incas deu-se por volta de 1250 d.C., com a conquista dos povos que habitavam a região. No entanto, o inicio da expansão imperialista incaica ocorreu com o grande Imperador Pachacutec em 1440, o nono soberano inca. Em 1460 surge o Tawantinsuyu, ou reino das 4 regiões, com a anexação do reino Chimú pelo Inca Túpac Yupanqui.



Pachacutec se atribui a reconstrução total de Cusco em uma grande urbe, para o qual o soberano necessitou aumentar a população local e por conseguinte a produção de alimentos. Para tanto foi obrigado a construir um eficiente sistema de canais de irrigação, aquedutos e armazenamento de alimentos.

Sociedade




A sociedade inca caracterizava-se por três grandes grupos sociais. No ápice da pirâmide temos o grande Inca o qual realizava o culto ao Sol. Os sacerdotes eram responsáveis por sacrifícios, adivinhações e também pela educação de jovens nobres. Em seguida vinham os nobres que geralmente eram membros da família do Inca, ou descendentes dos chefes de clãs que passaram a integrar o império. Foram chamados de orejones pelos espanhóis porque usavam olhereiras. Os yanaconas eram uma espécie de escravos selecionados entre prisioneiros de guerra ou populares que eram encarregados de proteger seus senhores, administrarem terras do Templo do Sol e os armazéns de abastecimento.

Somente altos funcionários e chefes militares podiam ter a seu serviço os yanaconas os quais, é importante lembrar, podiam possuir bens, o que não nos permite confundi-los com escravos. Apenas um dos filhos do yana era escolhido para continuar a atividade do pai. Alguns viviam em meio ao fausto de Cuzco enquanto outros serviam curacas pobres em regiões distantes. Algumas mulheres também eram escolhidas para serem educadas nos monastérios do Sol por mulheres mais velhas e descendentes da etnia dos incas. Algumas tornavam-se esposas secundárias do imperador, outras eram dadas em casamento a quem o imperador desejasse e outras permaneciam virgens para poder participar do culto solar. Ao lado da atividade ritual estas mulheres também se dedicavam a fiar e a tecer.



O número delas por vezes era tão grande (perto de 2000 mil), que permitia uma produção que escapava a política de reciprocidades tradicionais. O mesmo ocorria com a produção dos yana favorecendo a desagregação das antigas formas de solidariedade social. Portanto as relações sociais estavam em transformação indicando uma tendência de transformação do Estado. O povo tinha um papel extremamente importante na sociedade na medida em que era responsável pela sobrevivência alimentar através do cultivo da terra e, também, pelas guerras que faziam parte das formas de controle da produção em uma área bastante extensa. As terras eram divididas em três partes. Os produtos obtidos do cultivo da primeira parte eram oferecidos ao culto do Sol, os da segunda parte para o Inca e os da terceira parte para a comunidade.

Arte, Ciência e Arquitetura







A cultura inca — resultado da mistura das culturas preexistentes na região andina — era muito rica, principalmente no que se refere à arte, intimamente ligada à ciência, à religião e ao cotidiano. A ourivesaria inca possuía caráter funcional e ornamental; o desenho das peças, aspecto de desenhos geométricos. O figurativismo das estatuetas de metal era bem estilizado, tendo a cabeça mais trabalhada que o restante do corpo. A prata era um dos metais mais apreciados para as peças suntuosas, embora se tivesse conhecimento de metais como o ouro. Nessa arte, destacam-se também as facas de sacrifício. As construções arquitetônicas, apesar da austeridade em relação às dos maias e astecas, não possuem hoje ornamentos esculpidos, o que se deve principalmente ao fato de os espanhóis terem extraído os trabalhos de escultura em ouro que revestiam as paredes dos aposentos internos. As construções arquitetônicas incas, apesar da austeridade em relação às dos maias e astecas, não possuem hoje ornamentos esculpidos, o que se deve principalmente ao fato de os espanhóis terem extraído os trabalhos de escultura em ouro que revestiam as paredes dos aposentos internos. Mas o que marcou a arquitetura inca, foi o trabalho com a rocha; obras civis de pouca importância, fortalezas, torres, templos, palácios e edifícios do governo tinham em suas estruturas pedras arduamente trabalhadas e esculpidas pelos trabalhadores incas. Tais pedras eram constituídas do mais puro granito branco e seus vértices esculpidos em diversos ângulos (de até 40 graus) de tal maneira que os blocos se encaixassem perfeitamente uns nos outros sem a utilização de argamassa ou cimento e que o espaço entre um bloco e outro fosse impenetrável mesmo pela mais fina lâmina. As pedras, para que pudessem resistir aos freqüentes tremores de terra, tinham forma trapezoidal e eram tão pesadas que chegavam a atingir três toneladas.Não se sabe o tipo de instrumento utilizado na construção das cidades incas, já que não há vestígios de ferramentas ou rodas. Nativos da região dizem que tais ferramentas seriam feitas de hematita, oriunda de meteoritos. Segundo os cientistas, essa hipótese é um tanto improvável. É incontestável a engenhosidade de certas construções incas, como por exemplo os canais que transportavam água a poderosas cisternas, para que fosse enfim armazenada sem desperdícios, ou mesmo os diversos níveis de terraços, nos terrenos íngremes da região, que permitiram um melhor aproveitamento da terra para a agricultura.

A posição privilegiada de Macchu-Picchu permitiu a execução de profundos estudos científicos e muitos cultos religiosos, principalmente no que se refere ao sol. Por isso, a cidade era considerada um verdadeiro santuário. De seu conjunto arquitetônico, formado por mais de 200 edifícios, destacam-se o Observatório Solar e dois grandes templos: o Principal e o das Três Janelas. No Observatório, encontra-se a Intihuantana (“lugar de pouso do sol”), uma pedra sagrada que tinha como objetivo o culto ao deus Sol (“Inti”), e que servia como instrumento científico para as observações astronômicas e cálculos meteorológicos sobre a forma redonda do céu que ajudavam a prever a época propícia para a colheita. Os conhecimentos de Geometria e Geografia adquiridos pelos cientistas incas foram provavelmente utilizados nas construções de cidades famosas como Macchu-Picchu, Cuzco e Ollantaytambo. Para o posicionamento de determinadas construções, como os prédios da cidadela de Macchu-Picchu, os incas deveriam saber a exata localização dos pontos cardeais e saber o local exato do nascer e do pôr do Sol no horizonte nos dias de equinócios. Como eles poderiam sabê-lo, já que a cidade é cercada pela Cordilheira dos Andes e não se pode ver o sol tocar o horizonte? Talvez o tenham feito através de observações sistemáticas do movimento do sol no céu.

Tumba do Senhor de Sipán










Pouco se conhece de Cuzco, anterior à conquista dos espanhóis. Dizem que foi fundada em torno dos séculos XI e XII d. C. pelo Inca Manco Cápac, segundo uma lenda é proveniente do lago Titicaca. Cidade sagrada e capital do Império Inca do Tawantinsuyu foi o centro do governo das quatro extensas regiões do fabuloso Império Incaico que chegou a abarcar grande parte do que é atualmente o Equador, Peru, Bolívia, Argentina e Chile. Em 1534, Francisco Pizarro fundou sobre a cidade de Cuzco uma cidade espanhola, que se construiu sobre o cimento inca. Cuzco é um exemplo típico de fusão cultural, herdando monumentos arquitetônicos e obras de arte de valor incalculável.

Invasão espanhola

A Morte da Civilização Inca



De acordo com a tradição, todo Inca deveria casar-se com uma mulher de sangue real nascida em Cuzco. Huayna Capac o fez e desse casamento, sem alegria, nasceu Huáscar (“o odiado”), herdeiro legítimo do trono. No entanto, Huayna estava apaixonado pela Princesa de Quito; e desse amor, presenciado com horror pelo Império, nasceu seu querido filho Atahualpa (“filho da fortuna na terra”). Huáscar era odiado pelo pai e amado pelo povo, enquanto Atahualpa tinha o amor do pai e o ódio do povo, isso os fez crescer em constante rivalidade. Arturo Capdevila no livro Los Incas, retrata a situação do Império: “Sombrio ocaso foi a vida de Huayna Capac. Seus filhos rivais torturavam-lhe a consciência com quem sabe quais duras previsões. Sinais nefastos manchavam o céu pátrio. De espanto em espanto, em misteriosa onda de lenda, corria no entardecer de seu reinado a fama dos espanhóis recém-chegados, homens brancos desembarcados um dia com temível desígnio pelo confim setentrional do país. O céu e a terra assinalavam presságios. Meteoros cárdeos rasgavam o firmamento na noite. Uma auréola de fogo dividida em três círculos rodeava o disco da lua. Os llaycas agouravam o Inca: “o primeiro círculo anuncia guerra; o segundo, a queda do sol; o terceiro, o fim de tua raça”. Antes de morrer, Huayna resolvera quebrar a tradição Inca e repartir o reino entre seus dois filhos: Atahualpa, que seria o monarca do Norte, e Huáscar, que o seria do Sul. Decidira também, em fidelidade à esposa amada, ser enterrado na cidade de Quito, junto às múmias de seus antepassados. A divisão do reino preparava obscuramente o império para o triunfo dos homens brancos. Em 1531, os exércitos de Atahualpa e Huáscar se confrontaram numa sangrenta batalha fratricida em Ambato e Quipaypán, da qual Atahualpa se saiu vencedor. Mas isso iria durar pouco tempo, como bem o sabiam os amautas e haravecs, povos de ciência e saber ocultos; para eles, Atahualpa não era na verdade um Inca, um legítimo filho do Sol; era um intruso. Em 1532, Pizarro, conquistador espanhol, foi recebido por Atahualpa em Cajamarca, onde aprisionou o imperador, iniciando a destruição do império. “Mas certo era que a lua havia se mostrado envolta na tríplice sinistra auréola. O invasor já começava a apoderar-se do solo americano e se cumpria, a seu tempo, a palavra profética de Nezahualcoyotl: virão tempos em que serão desfeitos e destroçados os vassalos, e tudo cairá nas trevas do esquecimento…” (Arturo Capdevila, Los Incas).

Senhor de Sipán




É uma pena que civilização de cultura tão rica tenha sido destruída, em muitos campos como agricultura, medicina e astronomia, os conhecimentos dos Incas eram superiores aos dos europeus. Não se pode fazer idéia do que se perdeu, em termos de tratados científicos, organização sócio-política, agricultura, artes e arquitetura, com a destruição do Povo Inca.

Vídeo: "A origem dos Incas" - http://www.youtube.com/watch?v=5JJsDMs5SLo

Editado por Maria Luna para Luna E Amigos.Fontes: Los Reinos Americanos del sol; aztecas, mayas, incas - Victor Wolfgang Von Hagen - Los Incas - Arturo Capdevila - Los Incas del Peru 2 - Roberto Levillier Imagens:http://www.incasinti.hpg.ig.com.br/newfotos/14.htm http://www.geocities.com/educaraver/

Imagens: Internet

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Zorro desmascarado


Embora um tanto diferente do herói da ficção,o famoso cavaleiro existiu em carne e osso: era um irlandês, de pele clara e barba ruiva, que morreu condenado pela Inquisição católica.

por Carlos Biguetti

Uma coisa todo mundo sabe: Zorro sempre foi um sujeito de duas caras. O que ninguém – ou pouca gente – sabe é que ele escondeu por todos esses anos uma terceira faceta. Por trás das proezas do herói da ficção está a biografia de um herói de carne e osso. Sim, o Zorro existiu. Não era mexicano, mas irlandês. Não tinha os traços latinos do Antonio Banderas, que estrela A Lenda de Zorro, mas pele muito clara, barba e cabelos ruivos. Seu nome de batismo era William Lamport. E seu pseudônimo, Guillén Lombardo. O Zorro da vida real nasceu em 1615, na cidade portuária de Wexford, sudeste da Irlanda. Morreu em 1659, na Cidade do México, então capital da Nova Espanha, condenado pela Inquisição. Em apenas 44 anos, no entanto, protagonizou um roteiro de aventuras que não poderia ter tido outro destino senão Hollywood. E, claro, o imaginário de crianças e adolescentes desde 1920, quando o galã Douglas Fairbanks surgiu nas telas em A Marca do Zorro, um dos maiores clássicos do cinema mudo.



Nosso personagem veio ao mundo em um berço de heróis. Desde o século 16, a agrária Irlanda vivia em pé de guerra contra a poderosa Inglaterra, que queria converter os católicos daquela ilha ao protestantismo. O cerco à cidade irlandesa de Kinsale, ocorrido durante o reinado de Elizabeth I, foi um marco da batalha religiosa. Era o ano de 1601 e os rebeldes locais receberam ajuda da católica Espanha para a resistência: o rei Felipe III mandou para a ilha um contingente de 6 mil homens, armas e munição. O monarca esperava que a luta contra os ingleses na Irlanda desviasse a atenção e as forças da Grã Bretanha para fora da Holanda, que se encontrava sob domínio espanhol. O desembarque das tropas cristãs aconteceu no mês de outubro. Parte da frota que transportava munição não chegou ao destino, prejudicando os combatentes. Os reforços não adiantaram e, sitiada pelos ingleses, a cidade acabou se rendendo em 1603. Só que o ódio irlandês aos inimigos permaneceu e atravessou gerações. Como muitas outras famílias, os Lamport, donos de muitas terras e católicos fervorosos, estiveram lá, em Kinsale, para lutar ao lado dos espanhóis.


O mais novo integrante do clã dos Lamport, William, já nasceu sob o jugo inglês, 12 anos após a rendição dos irlandeses cristãos. Depois de alfabetizado, o menino deixou a pacata Wexford rumo à capital Dublin para estudar. Passou pelas mais prestigiadas escolas da cidade e aprendeu latim e retórica com os jesuítas. Aos 12 anos de idade, em 1627, desembarcou em Londres, com a missão de completar sua educação, estudando grego e matemática. Um ano depois, no entanto, o caçula dos Lamport foi condenado à prisão por traição à Coroa britânica. O jovem William tinha escrito um panfleto – em latim, diga-se – rebelando-se contra os mandos e desmandos do governo inglês sobre a Irlanda. Depois de uma misteriosa fuga, foi capturado por piratas e passou a viver e a trabalhar com os ladrões dos mares, atacando, principalmente, navios ingleses. Sua vida na pirataria duraria dois anos. Em 1629, William, então com 14 anos, envolveu-se em sua primeira guerra. Durante o Renascimento, a cidade de La Rochele, no oeste da atual França, havia começado a encampar os ideais religiosos reformistas até se tornar um importante centro para a igreja protestante francesa e seus membros, os chamados huguenotes. Foi contra eles que o jovem William lutou, combatendo ao lado dos franceses para acabar com o domínio dos protestantes sobre aquela cidade, que era um dos principais portos da Europa. Quando o rei católico Luís XIII resolveu acabar com a farra herege, La Rochelle foi isolada por trincheiras de 12 quilômetros de extensão. William abraçou a causa. E a cidade resistiu por apenas 14 meses.


Gaspar Guzmán y Pimentel


Com La Rochele de joelhos, o rebelde irlandês dedicou-se a outra causa. Alistou-se nas brigadas da Irlanda e mudou de lado: desta vez, lutou contra a França, pela Espanha. Terminado o conflito, ele decidiu estudar filosofia em Santiago de Compostela, na Galícia. Depois, migrou para o tradicional monastério El Escorial, a 45 quilômetros de Madri, onde mergulhou na teologia. E, com 25 anos, em 1640, depois de percorrer todo o continente europeu, aprender 14 idiomas e encarar várias guerras, William voltou para a Espanha e resolveu que fincaria suas raízes ali mesmo. Mudou seu nome para Guillén Lombardo e foi agraciado com uma bolsa para ingressar no Colégio Imperial de Madri. A essa altura, o errante irlandês já era conhecido por suas bravatas e caiu nas graças de Gaspar de Guzmán y Pimentel, o conde-duque de Olivares, um dos homens mais importantes de toda a Espanha, braço direito do rei Felipe IV. Nessa época, Lombardo também já ensaiava os primeiros passos para tornar-se El Zorro: dominava a espada com a mesma habilidade com que arrebanhava corações. Sua vítima mais conhecida nessa época foi Ana de Leiva, uma nobre da corte espanhola.

Hasta la vista, baby


O caso do irlandês errante com a rica espanhola terminou no exílio de Lombardo na Nova Espanha, atual México. Como a família dela não aceitou o romance e exigiu a punição severa do forasteiro, Guzmán y Pimentel arrumou um jeito de livrar a cara – e o pescoço – do amigo: propôs a Lombardo um emprego do outro lado do Atlântico. Ele atuaria como espião, a serviço do conde-duque, entre as tribos indígenas que ainda dominavam o novo mundo. Assim que desembarcou na América, o irlandês assumiu seu posto – e sua dupla personalidade. Era, ao mesmo tempo, um pacato professor de latim que namorava a nobre Antonia Turcio e um freqüentador dos proibidos rituais de feitiçaria dos índios. O europeu virou, assim, um aprendiz de bruxo. E, em meio à vida agitada, ainda arrumava tempo para visitar as camas das mais bonitas e cobiçadas damas da Nova Espanha. Só que Lombardo acabou envolvendo-se mais do que devia com os índios. Começou a defender ideais mal vistos pela coroa espanhola, como a reforma agrária e o fim da escravidão. E, em pouco tempo, tornou-se líder de um embrionário movimento pela independência do México.


William Lamport/Guillén Lombardo


Dois anos depois de se instalar na América e abraçar a causa indígena, o irlandês, que havia lutado em defesa da Igreja Católica na Europa, acabou condenado pela Inquisição. Em 1642, aos 27 anos, ele foi preso sob as acusações de trair a Coroa espanhola, de planejar um levante popular, de envolver-se com bruxaria e, claro, de heresia. Lombardo amargou oito anos na cadeia. Na noite de Natal de 1650, no entanto, elaborou uma fuga tão fantástica que espalhou-se o boato de que ele tinha pacto com o diabo. Com 35 anos, o aventureiro virou, então, El Zorro, que, em espanhol, quer dizer raposa – ou, no sentido figurado, homem astuto. O apelido popular serviu como uma luva para o novo Lombardo. Exatamente como o personagem que inspirou mais de dois séculos depois, ele tornou-se um cavaleiro, que, como um fantasma da noite, vagava pelas cidades, fazendo justiça com as próprias mãos. Zorro zombava dos soldados e distribuía folhetos pregando contra a Inquisição. Nos textos que escrevia, denunciava as atrocidades daquele que se intitulava o Tribunal do Santo Ofício.



Mais uma vez, porém, Lombardo caiu do cavalo derrubado pelo seu ponto fraco: as mulheres. Em 1652, ele foi surpreendido na cama da mulher do vice-rei, don López Díaz de Armendáriz. A Inquisição novamente o prendeu. E, desta vez, o já legendário Zorro queimaria no “fogo que purifica”. A execução seria cumprida no dia 10 de novembro de 1659, sete anos depois da prisão. O dia marcado para o espetáculo público amanheceu chuvoso. Na Plaza Mayor, Cidade do México, a multidão acotovelava-se. Os carrascos conduziram Lombardo amarrado, montado no lombo de uma mula. O cortejo seguiu pela rua até chegar ao destino: o convento de San Diego, onde os inquisidores mantinham o quemadero. A fogueira já estava acesa, mas El Zorro não podia ter um fim tão banal. Como se estivesse em um filme, ele agarrou as cordas que o penduravam sobre a fogueira e se enforcou. Uma vez mais, El Zorro zombou de seus inimigos. E virou mito naquelas bandas. Sua luta não foi em vão. Lombardo entrou para a história do México como o precursor da batalha pela proclamação da independência. A Columna de la Independencia, na Cidade do México, tem um mausoléu para os heróis nacionais. No vestíbulo que dá acesso ao memorial, repousa um busto dedicado à memória do herói irlandês.

As pegadas do herói




Livro escrito dois séculos depois damorte de William Lamport foi a base para a criação do personagem mascarado.
Em 1872, dois séculos após a morte de William Lamport, na Cidade do México, o general do Exército Vicente Riva Palacio (1832-1896) escreveu o livro Memórias de um Impostor: Guillén de Lampart, Rey de Mexico, em que conta as aventuras do forasteiro europeu nas terras mexicanas. No romance, baseado em vasto material biográfico encontrado nos arquivos da Inquisição, Lamport ganhou uma alcunha bem ao gosto local: Diego de La Vega. O romance não ficou famoso – e nem atravessou os séculos. Mas, segundo o professor Fábio Troncarelli, da Universidade de Viterbo, na Itália, autor dos livros La Spada e La Croce (“A Espada e a Cruz”) e The Man Behind the Mask of Zorro: William Lamport of Wexford (“O Homem atrás da Máscara do Zorro: William Lamport de Wexford”), inéditos no Brasil, a obra do general serviu para a construção do herói mascarado. O Zorro surgiu em cena pela primeira vez em 1919 na série The Curse of Capistrano (“A Maldição de Capistrano”), escrita pelo jornalista e romancista americano Johnston McCulley e publicada no semanário americano All-Story Weekly. Em 1920, o herói ganhou as telas de cinema, no filme A Marca do Zorro, estrelado por Douglas Fairbanks. Em 1940, o ator Tyrone Power protagonizou a segunda versão de A Marca do Zorro. E, em 1958, a Disney lançou a série de TV mais famosa do personagem, com Guy Williams no papel principal. Em 1998, foi lançado A Máscara do Zorro, com Antonio Banderas e Anthony Hopkins. E, em outubro, estréia A Lenda de Zorro, com Banderas e Catherine Zeta-Jones. Na ficção, o jovem hispânico rebela-se contra a tirania do governo dos Estados Unidos, que acabara de anexar o território californiano, e passa a lutar pela liberdade da Califórnia, usando uma máscara para esconder a sua verdadeira identidade.

Saiba mais

Livros

The Irish Zorro – The Extraordinary Adventures of William Lamport (1615-1659), Gerard Ronan, Mount Eagle Publications, 2004.
Reconstrução da vida de William Lamport, de sua infância à morte na fogueira, com detalhada contextualização histórica.

La Spada e la Croce – Guillén Lombardo e l·inquisizione in Messico, Fabio Troncarelli, Edizioni Salerno, 1999Biografia detalhada de William Lamport com base em vasta pesquisa feita nos arquivos da Inquisição em Dublin, Madri, Vaticano e Cidade do México. O autor é professor de história e paleografia latina da Universidade de Viterbo, Itália.



Fonte: Revista História
Autor: Carlos Biguetti
Imagens: Internet

sábado, 16 de maio de 2009

Ismália

Alphonsus de Guimaraens

Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.




No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...


E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...


E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...



As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...




A Catedral



Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


O astro, glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"



Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"



O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.
E o sino geme em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


Alphonsus de Guimaraens (Afonso Henriques da Costa Guimaraens), nasceu em Ouro Preto (MG), em 1870 e faleceu em Mariana (MG), em 1921. Bacharelou-se em Direito, em 1894, em sua terra natal. Desde seus tempos de estudante colaborava nos jornais “Diário Mercantil”, “Comércio de São Paulo”, “Correio Paulistano”, “O Estado de S. Paulo” e “A Gazeta”. Em 1895 tornou-se promotor de Justiça em Conceição do Serro (MG) e, a partir de 1906, Juiz em Mariana (MG), de onde pouco sairia. Seu primeiro livro de poesia, Dona Mística, (1892/1894), foi publicado em 1899, ano em que também saiu o “Setenário das Dores de Nossa Senhora. Câmara Ardente”. Em 1902 publicou “Kiriale”, sob o pseudônimo de Alphonsus de Vimaraens. Sua “Obra Completa” foi publicada em 1960. Considerado um dos grandes nomes do Simbolismo, e por vezes o mais místico dos poetas brasileiros, Alphonsus de Guimaraens tratou em seus versos de amor, morte e religiosidade. A morte de sua noiva Constança, em 1888, marcou profundamente sua vida e sua obra, cujos versos, melancólicos e musicais, são repletos de anjos, serafins, cores roxas e virgens mortas.(fonte: Itaú Cultural).

Ismália - Publicado no livro Pastoral aos crentes do amor e da morte: este poema, integrante da série "As Canções", foi incluído no livro “Os cem melhores poemas brasileiros do século”, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, pág. 45, uma seleção de Ítalo Moriconi.
A obra de Alphonsus de Guimaraens é composta por:

Poesia

Setenário das Dores de Nossa Senhora (1899);
Câmara Ardente (1899);
Dona Mística (1899);
Kyriale (1902);
Pauvre Lyre (1921);
Pastoral aos crentes do Amor e da Morte (1923);

Prosa

Mendigos (1920).

Poemas
Terceira Dor;

Imagens: Internet

terça-feira, 12 de maio de 2009

Ana Terra: os símbolos de um telurismo

* Jazira Augusto Rodrigues


Partindo da leitura do romance Ana Terra, episódio de importância fundamental dentro da trilogia ´O Tempo e o Vento´, de Érico Veríssimo, será analisada, num primeiro momento, a estrutura interna da narrativa e sua relação com o gênero ao qual pertence, a novela; e, logo após, o papel de algumas personagens dentro da obra, a significação do Tempo e do Vento e a simbologia de alguns objetosO Tempo e o Vento é considerada a obra-prima de Érico Veríssimo.



Nela, o autor atinge o ápice de sua criatividade literária, resgatando a brava saga de uma família e do estado do Rio Grande do Sul, desde suas origens, em meados do século XVIII, até a Era Vargas, duzentos anos depois, no fim de 1945.A obra é dividida em três partes fundamentais, a saber: O Continente (1949), O Arquipélago (1951) e O Retrato (1961), desmembradas, cada uma delas, em capítulos de acordo com a personagem central. A trilogia apresenta nítida coloração épica associada à passagem do tempo e do vento, sobretudo no primeiro volume, em que se encontra a narrativa referente à Ana Terra. Aí o autor destaca um ´tipo humano de grande riqueza interior, sem embargo de seu humilde status´ (MOISÉS, 2002). N´O Continente , Érico Veríssimo transita entre o lírico e o épico; entre o intimista e o histórico. Já nos dois últimos volumes, decai o elemento épico pela sobrecarga de história, sociologia e psicologia.Novela dentro da novelaMassaud Moisés (1978) considera ´O Tempo e o Vento´ uma novela-tipo, ainda que impregnada de elementos romanescos. Devido à sua estrutura típica, é possível pôr em relevo as características principais do gênero novela: o painel cronológico, a linearidade do tom narrativo, a pluralidade dramática, a sucessividade das ações, o predomínio dos fatos sobre as causas e o seu sentido profundo, a linguagem clara, direta, exata, concisa e de instantânea comunicabilidade.Em Ana Terra, a estrutura não poderia ser diferente. Esta, enquanto inserida na trilogia, está longe de ser empobrecida pela extensão da escrita, pois os elos de coerência que estabelece com o conjunto a tornam tão relevante, que vem a ser destacada do todo, como uma narrativa à parte da grande narrativa. O ponto de vista é o da terceira pessoa, o do narrador analítico e onisciente, que vai contando os acontecimentos da história, pintando a figura das personagens e adentrando em seu universo psicológico. O autor faz, também, uso de modo reiterado do discurso indireto livre.Podemos considerar, pois, o episódio Ana Terra como uma novela. Como diz Massaud Moisés (1979), esta possui um relevo menor que o conto e o romance. É um gênero que se detêm no exame da vida, preocupa-se com o pitoresco. Temos então um mínimo de profundidade e um máximo de aventura, daí a relevância presente nas ações.Em ´O Tempo e o Vento´, há uma série de personagens que se revezam na progressão dos episódios. Trata-se geralmente de personagens planas ou bidimensionais. Ana Terra, porém, destaca-se das demais, pois impõe a força do seu caráter diante dos trágicos acontecimentos que a acometem, e luta contra as forças coercitivas, decidindo contrariar o próprio destino e viver, como ela mesma diz, ´por pura teimosia´.O espaço da narrativa é o sertão gaúcho. Primeiramente as ações acontecem na estância onde Ana vivia com sua família; num segundo momento, após o ataque dos castelhanos, esse primeiro espaço é deixado para trás pela protagonista e temos então a província de Santa Fé como novo cenário das ações.



FIQUE POR DENTRO

Tudo sobre Érico VeríssimoÉrico Veríssimo nasceu em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, em dezembro de 1905. Filho de família rica e tradicional que se arruinou repentinamente no começo do século, Érico Veríssimo teve seus estudos secundários incompletos e ocupou-se em empregos de pequena classe média: foi ajudante de comércio, funcionário de banco, e sócio de farmácia.
Atraíram-no nesse tempo leituras irônicas e melancólicas como de Wilde, Shaw, Norman Douglas e Machado de Assis. Em 1930, quando a farmácia faliu, transfere-se definitivamente para a cidade de Porto Alegre, onde resolve tentar as Letras, inicialmente como secretário da Revista do Globo. Sua estréia literária deu-se em 1932, com o livro Fantoches, mas o êxito veio com Clarissa (1933), romance que marca o perfil psicológico de uma adolescente. Esteve por várias vezes nos Estados Unidos, onde lhe surgiu a oportunidade de ministrar Literatura Brasileira em 1943, e em 1953 passa a ocupar o posto de Diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana. Sobre seus contatos com o povo norte-americano escreveu Gato Preto em Campo de Neve e A Volta do Gato Preto.

Elementos estruturais da narrativa

Entrelaçados aos acontecimentos ficcionais de Ana Terra, aparecem os fatos históricos, que se apresentam na narrativa desde as primeiras páginas. No entanto, apesar da linearidade temporal, da seqüência histórica com que os fatos se desenrolam, aparece o tempo psicológico secundariamente.(Texto I)Na linguagem de Ana Terra temos uma extrema sobriedade e simplicidade de acordo com o grau primário de desenvolvimento do clã de Maneco Terra. Daí a coerência do autor em fazer uso de períodos curtos e de diálogos breves, concisos e lacônicos. O primitivismo das personagens impede que a linguagem seja bem desenvolvida e que suas falas sejam longas e bem elaboradas. Por vezes impera o silêncio, as palavras são substituídas por gestos e olhares, numa espécie de compreensão mútua, senão vejamos: ´Não explicou nada. Achou que não era necessário. O índio recebeu a arma num silêncio compreensivo.´ (p. 26) Ou ainda em passagens tais como as em destaque: (Texto II)Do regionalismoÉrico Veríssimo usa comedidamente a linguagem regional. Não há exageros nem excessos. Os regionalismos e coloquialismos são trazidos pelas falas das personagens. Há na narrativa contribuições estrangeiras; palavras de cunho regionalista como chiripiá, guaiaca, sanga e chinoca; e coloquialismos como o uso do ´le´, do ´pra´ e do ´tu´ característico do Rio Grande do Sul, e de expressões como ´cafundós onde Judas perdera as botas´. Um aspecto interessante a ser notado em Ana Terra a respeito das personagens, é a maneira como Érico Veríssimo as constrói, o cuidado com que as relaciona com o meio.É perceptível um processo de embrutecimento físico e moral devido à falta de um contato maior com outras pessoas e com o mundo urbano, civilizado. Veja-se a exemplo o seguinte trecho: (Texto III)Feixes temáticosDentre as temáticas gerais que aparecem na obra, podemos citar a condição dos indivíduos e sua organização de trabalho no final do século XVIII; a condição da mulher, de submissão e inferioridade em relação aos homens; o preconceito racial e lingüístico para com os povos de outras etnias; o regime patriarcal e autoritário; o machismo; o valor dado ao código moral do homem do interior; e a denúncia da injustiça social que sofriam aqueles que não tinham título, posto militar ou que não vestiam batina.A intimidade dos seresAs personagens apresentam vida interior, apesar de seu humilde status e de seu primitivismo; caracterizam-se não apenas pelas descrições feitas pelo narrador ou por seus pensamentos, que o narrador permite conhecer, graças ao recurso do discurso indireto livre, bem como por suas ações, por sua tomada de posição e também por suas atitudes diante dos acontecimentos.A personagem central apresenta um tipo humano de grande riqueza psicológica. Ana Terra apresenta conflitos interiores, conflitos que se exacerbam com a chegada de Pedro Missioneiro, personagem mítico, carregado de mistério, que servirá como elemento perturbador da narrativa (´Desde criança, dizia ter visões e conversar com Nossa Senhora.´, p. 101). A protagonista encontra-se dividida entre o desejo que sentia pelo índio e os valores morais impostos pelo pai, Maneco Terra. (Texto IV)Ana Terra simboliza a força feminina. Ela é a matriarca do Rio Grande do Sul, a fundadora de um povo. Tem um embate entre a sensibilidade e a sabedoria inatas e os golpes violentos que recebe da vida.Estes são determinantes para a evolução da protagonista que, de mulher submissa, resignada, entregue à sua condição, passa a ser uma mulher corajosa e de incrível força e perseverança; uma mulher que, apesar dos acontecimentos trágicos, insiste em viver teimosamente. Pois, ´Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula.´ (p. 71).Dona Henriqueta, por sua vez, é uma mulher conformada com a própria sorte. Símbolo da submissão. Incapaz de enfrentar o marido, ou mesmo de demonstrar-lhe seus desejos, sonhos e vontades: ´Às vezes, quando estava sozinha chorava, mas na frente do marido vivia de cabeça baixa e raramente abria a boca.´ (p. 9). ´E mesmo na tristeza seu rosto não perdia a expressão de resignada serenidade.´ (p. 25)Feminino x masculinoAna Terra e sua mãe Henriqueta são figuras essenciais na luta pela sobrevivência da família. Os afazeres femininos aparecerem como sendo tão sacrificantes quanto os masculinos, ou até mais. Além disso, as mulheres têm de servir aos homens e se submeter a eles. Por isso, quando Henriqueta morre, Ana não sofre, já que tem consciência da vida infeliz que a mãe levara: ´Ana não chorou. Seus olhos ficaram secos e ela estava até alegre, porque sabia que a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava.´ (p. 56)Já Maneco Terra representa o autoritarismo. Sua figura impõe autoridade e uma mistura de medo e respeito. Ele tem a primeira e a última palavra. Todos, mulher, filha e filhos, se submetem a sua vontade.É através desse personagem que perceberemos determinados preconceitos e discriminações para com os índios e, sobretudo, para com as mulheres. Contudo, é interessante notar que é através da figura de Maneco Terra que o autor faz a reflexão sobre o problema da insipiente questão agrária e da injustiça social. Ele representa, também, o desbravador, que assegura a configuração do território brasileiro.


TRECHOS - TEXTO I


Sempre que me acontece alguma coisa, está ventando´, costumava dizer Ana Terra. Mas, entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera a força de mudar-lhe a vida por completo. Mas em que dia da semana tinha acontecido? Em que mês? Em que ano? Bem, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente (p.07).

TEXTO ll

... estava gostando de uma moça, filha dum agricultor do município, e que pensava em casar-se com ela.- Se vosmecê me dá licença... - acrescentou humildemente.Maneco Terra ficou um instante em silêncio e depois respondeu:- Está bom. Vamos ver isso depois. Quero tomar informações da moça e da família dela.E não se falou mais no assunto nos dias que se seguiram. (p.51).

TEXTO III

E, quanto mais o tempo passava, mais o marido e os filhos iam ficando como bichos naquela lida braba (...). Parecia que a terra ia se entranhando não só na pele como também na alma deles. Andavam com as mãos encardidas, cheias de talhos e calos. Maneco à noite deitava-se sem mudar a camisa, que cheirava a suor, a sangue e a carne crua.´ (p. 14).

TEXTO IV

Ana estava inquieta. No fundo ela bem sabia o que era, mas envergonhava-se de seus sentimentos. Queria pensar noutra coisa, mas não conseguia. E o pior é que sentia os bicos dos seios (só o contato com o vestido dava-lhe arrepios) e o sexo como três focos ardentes. Sabia o que aquilo significava. Desde os seus quinze anos a vida não tinha mais segredos para ela. Muitas noites, quando perdia o sono, ficava pensando em como seria sensação de ser abraçada, beijada, penetrada por um homem. Sabia que esses eram pensamentos indecentes que precisava evitar. Mas sabia também que eles ficariam dentro de sua cabeça e de seu corpo, para sempre escondidos e secretos, pois nada neste mundo a faria revelar a outra pessoa - as coisas que sentia e desejava. Pensava nas cadelas em cio e tinha nojo de si mesma. Lembrava-se das vezes em que vira touros cobrindo vacas e sentia um formigueiro de vergonha em todo o corpo.´(p.34).

Os caminhos a serem percorridos pela ficção



Podem-se identificar três diferentes fases na obra de Érico Veríssimo. A primeira delas é a dos romances urbanos, que traz problemas da classe média numa cidade grande. São desta fase os romances: Clarissa, Música ao Longe, Caminhos Cruzados, Um Lugar ao Sol e Saga. Marcando a segundo fase temos a novela épica O Tempo e o Vento, obra-prima de Érico Veríssimo. Nesta fase, o escritor volta-se para o passado histórico do Rio Grande do Sul e resgata a história de sua terra e de sua gente. São três os volumes que integram a novela: O Continente, O Retrato e O Arquipélago. Já na terceira fase temos oschamados romances universais que trazem à tona os problemas do homem e as tensões políticas do mundo de hoje. São desta fase os romances: O Senhor Embaixador, O Prisioneiro e Incidente em Antares.

A simbologia do tempo e do vento

Quanto aos elementos simbólicos que aparecem em Ana Terra, se podem destacar, primeiramente, como elementos de maior relevância, a representação do Tempo e do Vento. Érico Veríssimo demonstra bastante originalidade na forma de tratar o Tempo, não como apego ao passado, tentando recuperá-lo por reminiscências, mas como um tempo a ser esquecido. A protagonista, após a invasão dos castelhanos à estância, busca libertar-se do passado, entregando-se a um futuro incerto e sem respostas. Daí seu êxodo para as terras de Santa Fé, ´[...] e ninguém mais falou das coisas que tinham ficado para trás.´ (p.74).Outro aspecto relevante a se destacar é que, na narrativa, o tempo aparece ligado à evolução e à mudança não apenas dos acontecimentos, mas também das personagens, que adquirem consistência física e psicológica na sua dimensão. A passagem das estações do ano, por exemplo, está intrinsecamente ligada à evolução do romance de Pedro com Ana: é na primavera que eles se conhecem, no verão Ana se entrega a Pedro, no outono, fica grávida e Pedro morre; no inverno, Ana recebe a indiferença do pai e dos irmãos.Faces do ventoA partir do capítulo treze, no entanto, passado o clímax da narrativa, o tempo aparece sempre ligado a algo monótono e circular, associado à vida da protagonista. É o que nos mostra os trechos que vão aparecendo repetidas vezes: ´[...] um dia era a repetição do dia anterior´ [...] (p. 54); ´E era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia [...] as estações iam e vinham´ [...]Também de fundamental importância para a obra é o Vento, tão importante que abre e fecha o episódio, além de permear quase todas as páginas. Ele aparece personificado, comparado a um ´eterno viajante que passava pela estância gemendo ou assobiando, mas nunca apeava do seu cavalo [...]´ (p. 8). O vento é o elemento enunciador de presságios. Ana Terra quase podia entender o que ele diziaem seu passar. (p. 99)O vento aparece metaforizado na narrativa. Segundo Teyssier (1995): ´O que o vento exprime é o mistério, o medo, a asfixia, a morte. Mas o Vento é também a voz do Tempo, esse tempo que não pára de passar, esse tempo das longas esperas nas solidões desse fim de mundo. [...] o Vento é a expressão dessa dor de viver que a condição temporal do homem ocasiona.´ Elementos não naturais, mas também simbólicos na narrativa são a roca de Dona Henriqueta, a tesoura de podar e o punhal que Pedro Missioneiro dera a Ana antes de morrer. Zilberman (2004) fala brevemente da simbologia desses elementos na narrativa. Segundo ela, a roca é um símbolo ligado ao trabalho. Era na roca que Dona Henriqueta trabalhava e que, mesmo depois de morta, continuava a fiar nas noites, como se estivesse eternamente ligada ao trabalho sacrificante. Em uma passagem do livro temos: ´Em outras madrugadas Ana tornou a ouvir o mesmo ruído. Por fim convenceu-se de que era mesmo a alma da mãe que vinha fiar na calada da noite. Nem mesmo na morte a infeliz se livra de sua sina de trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar...´.O movimento da roca nas madrugadas aliado ao uso do pretérito imperfeito do indicativo, tempo predominante em toda a narrativa, corporifica o ar de lenda, deixa aberto o espaço à imaginação do leitor que, em conformidade com o caminho franqueado pelo ficcionista, supre com os dados subjetivos as reticências do texto.A tesoura de podar é um símbolo de ordem feminina associado, desde D. Henriqueta, às mulheres que dão à luz; à vida. Na obra, este elemento está intimamente ligado ao povoamento da cidade de Santa Fé, que tem em Ana Terra uma espécie de matriarca: ´Muitas vezes por ano Ana Terra saía apressada sob o sol ou à luz das estrelas com a tesoura debaixo do braço. E gente nascia, morria ou se casava em Santa Fé.´ (p. 96/97)O punhal, por sua vez, é um símbolo de ordem masculina, associado à morte e aos homens nas guerras.

O feminino e a estrutura patriarcal

Em Ana Terra, o narrador, em terceira pessoa, onisciente e onipresente, inicia o percurso do romance, registrando deste uma das imagens-chave, pois traz forte carga simbólica: ´Sempre que me acontece alguma coisa, está ventando´, (p.07).O simbolismo do vento implica vários aspectos: remete, por exemplo, por conta de sua agitação, a instabilidades, a inconstâncias; se a imagem do vento aparece num sonho - ou mesmo num estado de vigília -, anuncia que um evento importante está para acontecer, que uma mudança ocorrerá.Ana Terra surge, na narrativa, aos 25 anos e com a esperança de casar-se: ´Não que sentisse muita falta de homem, mas acontecia que casando poderia ao menos ter alguma esperança de sair daquele cafundó, ir morar no Rio Pardo, em Viamão ou até mesmo voltar para a Capitania de São Paulo, lugar onde ela nascera. (p.8)Ana morava em uma estância, acaçapada num ermo, distante das cidades, em quase absoluto isolamento; o pai via, com reservas, o ser humano, considerando este mais perigoso do que uma onça. Ali, naquele lugar enterrado num longe sem fim, só sofriam a ameaça dos castelhanos (dominaram o Continente por uns treze anos), que, de quando vez, atacavam em bandos ou o perigo dos ataques dos índios.Mas tudo muito raro, pois, havia épocas em que por ali não surgia uma cara nova, e Ana vivia ao redor de quatro pessoas: o pai, a mãe e os irmãos. A vida na estância é muito dura: tão-somente um trabalho árduo, dividido entre os membros da família, consoante os papéis bem definidos: os homens - a lida no campo; as mulheres, as prendas domésticas. Só à época das colheitas é que as mulheres também partiam para o campo.Ana deseja coisas miúdas: um espelho barato, por exemplo. À beira do rio, Ana, vendo-se no espelho das águas, lembrava-se de um homem que falava da sela do cavalo: o guerrilheiro Rafael Pinto Bandeira, já figura lendária, e que lutava para livrar a gente do Continente do pesado jugo dos castelhanos.Ele chegara numa manhã de ventania (sempre o vento!). A família o recebeu. Ana ficou meio desconcerta em meio a tantos homens barbudos. O guerrilheiro elogiou-a: - ´Vossa mercê tem em casa uma moça mui linda.´ (p.10) Atrapalhada, deixou cair a faca na mão. Já em partida do guerrilheiro, os irmãos de Ana manifestaram o desejo de juntar-se também às tropas, principalmente Antônio, o mais velho, pois este via o guerrilheiro como um herói, ao que o pai retrucava: - ´Patriota? Ele está mas é defendendo as estâncias que tem´ (p.11)Lavando roupa, Ana teve a sensação de que não estava sozinha. E, quando deparou um corpo de um homem estendido junto da sanga, apanhou uma pedra. Mas o homem não se movia. Ela correu em direção ao pai e aos irmãos. Muito aflita foi para casa ao encontro da mãe, enquanto eles foram fazer averiguações. A mãe de Ana, d. Henriqueta, surge aos olhos do leitor, e, através da variação do foco, pelo discurso indireto-livre, conhecemos-lhe a intimidade, o seu sentimento de exílio: casara-se com Maneco Terra, na esperança de que viveriam em São Paulo; mas o avô do marido fora bandeirante, entrara pelo continente, e Maneco crescera com a idéia de ir viver no Rio Grande, para plantar e criar gado.Aí estava, agora, a família - pareciam todos uns bichos, entranhados na terra: ´Maneco à noite deitava-se sem mudar a camisa, que cheirava a suor, a sangue e a carne crua. Naquela casa nunca entrava nenhuma alegria, nunca se ouvia uma música, e ninguém pensava em divertimento´ (p.14).Homem e natureza como um todo.

SAIBA MAIS

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. - 35ª ed. - São Paulo: Cultrix, 1997MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: Prosa. - 3ª ed. - São Paulo: Cultrix, 1978

OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Centenário de Érico Veríssimo: Um escritor que universalizou o sul do país. Discutindo Literatura, São Paulo, n. 5, p. 34-35, 200.

VERÍSSIMO,Érico. Ana Terra. - 3ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

TEYSSIER,Paul. ´O Continente´ ou le livre des origines. Nova Renascença, Porto: Fund. Eng. António de Almeida, n. 57-58, primavera-verão 1995

Autora: Jazira Augusto Rodrigues
(Colaboradora**Do Curso de Letras da Uece)
Fonte: Diário do Nordeste
Fotos: Internet

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Que Fim Levou?
Os óculos de Lampião
...



Cangaceiro os usava para esconder a cegueira em um dos olhos
( Betina Moura)
Nos primeiros dias de agosto de 1925, o bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1898-1938), fazia uma de suas muitas incursões pelo sertão pernambucano. Os cangaceiros foram surpreendidos por agentes do governo e começou um tiroteio. Um dos membros, Livino – o irmão mais novo de Lampião –, foi atingido. O líder reagiu. No confronto, um soldado atirou em um cacto e a bala da escopeta fez com que um espinho fosse parar no olho direito de Lampião.


Livino acabou morrendo. Lampião, levado à cidade de Triunfo, perto do campo de batalha, foi atendido por um médico que retirou o espinho, mas não conseguiu salvar o olho do cangaceiro. Resultado: ele ficou cego de um olho. “O bom humor o impedia de esconder o problema, e ele brincava dizendo que não adiantava nada ter dois olhos, pois é preciso fechar um deles para atirar”, diz o pesquisador Antonio Amaury Correa de Araújo, autor de dez livros sobre a história do cangaço. O incidente transformou o cangaceiro em canhoto – ao menos na hora de atirar –, mas não atrapalhou sua fama de justiceiro. E o levou a usar óculos até o fim da vida. “Os óculos, que aparecem em quase todas as fotos, escondiam a deficiência de quem não a conhecia e protegiam os olhos do sol escaldante do sertão”, diz Antonio. Há notícia de pelo menos três óculos diferentes – sobre um deles há a história, nunca confirmada, de que os aros eram de ouro.

Dois dos óculos de Lampião, simples, redondos, de aro comum, foram deixados por ele nas casas de pessoas que o abrigaram durante o chamado “ciclo de Pernambuco”, antes de os cangaceiros cruzarem o rio São Francisco em direção à Bahia, em agosto de 1928. Há cerca de oito anos foram doados por essas pessoas à Casa de Cultura de Serra Talhada, em Pernambuco, onde se encontram até hoje.
Sobre os óculos que usava quando morreu, tudo indica que foram entregues para a polícia de Alagoas, que expôs as cabeças dos cangaceiros mortos após dizimar o grupo de Lampião numa emboscada na gruta do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. No ataque-supresa, 11 cangaceiros foram mortos – entre eles, Lampião e sua mulher, Maria Bonita. A própria polícia promoveu a rapinagem do tesouro do bando. Ficaram com eles jóias, dinheiro, perfumes e tudo o mais que tivesse valor – inclusive os óculos.

Fonte: Aventura na História
Autora: Betina Moura
Imagens: Internet

terça-feira, 5 de maio de 2009

O SIGNIFICADO ARQUETÍPICO DE GILGAMESH

Um moderno herói antigo



Rivakah Schärf Kluger


Este texto faz parte do livro "O Significado Arquetípico de Gilgamesh" de Rivakah Schärf Kluger. Agradecemos a Paulus Editora pela permissão de reproduzirmos este capítulo aqui na Rubedo. Conheça mais sobre este e outros livros da Paulus acessando a Revista de Literatura.



1. Os mitos são "assunto da alma"
A Epopéia de Gilgamesh, obra-prima da literatura mundial, é considerada uma das mais antigas epopéias do mundo. Ela é chamada epopéia, porém, como veremos, trata-se realmente de um mito. Para poder compreender um mito, a meu ver, é necessário ter um ponto de vista histórico a partir de duas perspectivas, por assim dizer, uma perspectiva exterior e uma perspectiva interior. A perspectiva exterior diz respeito à necessidade de compreender a forma histórica em que aparecem os arquétipos, o fundo histórico ao qual está relacionado o mito - em nosso caso, a cultura e a religião babilônica. O aspecto interior se refere aos problemas essenciais do tempo, com os quais essa época específica se envolveu conscientemente, ou nos quais a mesma época estava inconscientemente envolvida. Embora esta seja tarefa principalmente científica, acredito que, não obstante isso, se trata de um assunto de necessidade imediata para podermos entender esses documentos humanos em relação à nossa própria vida, pois todas as épocas históricas vivem em nós, e nós não podemos realmente nos entender a não ser que conheçamos as nossas próprias raízes espirituais.

Que época particular e que conteúdos espirituais em nós pelo inconsciente é, até certo ponto, questão de destino individual. Uma vez que a cultura ocidental se baseia em grande parte no judaísmo e no cristianismo, a cultura babilônica como uma de suas raízes pode ser considerada um interesse psicológico imediato para todos nós. Os arquétipos residem em seu domínio, além do tempo e do espaço. Isto constrói a ponte do entendimento entre os homens de todas as eras, e torna possível perceber que nós mesmos, com nossos problemas essenciais, estamos ligados inseparavelmente à continuidade dos problemas eternos da humanidade, como os mesmos são visualizados nos mitos. Mas a forma em que aparecem os mitos, a sua roupagem, por assim dizer, depende das condições históricas: os símbolos em que aparecem se alteram. No ser humano, essas mudanças correspondem ao desenvolvimento da consciência humana. No desenvolvimento de meu trabalho em torno deste tema significativamente rico, esta conexão se projetou cada vez mais em minha mente, de modo que eu desejaria defini-la como a idéia fundamental, como o ponto de partida da minha tentativa de explicar este mito.



Foi somente em 1872 que os estudiosos pela primeira vez se conscientizaram deste mito, quando o assirólogo inglês George Smith publicou "O relato caldeu do dilúvio", como ele intitulou sua tradução da décima segunda tabuleta da epopéia. Escavações feitas em Kouyunjik, a antiga Nínive, desenterraram muitos fragmentos, que foram em seguida enviados para o Museu Britânico de Londres. Descobertas posteriores, naquela região e em outros lugares, chamaram a atenção dos estudiosos na Europa e na América. Gilgamesh, Rei de Uruk - a Erech bíblica - foi pela primeira vez identificado com o caçador Nimrod, a cujo domínio, segundo o Gênesis 10.10, pertencia Erech (Arac). Somente depois é que se tornou claro, através das descobertas de material sumério mais antigo, que não se tratava exatamente disso. Como demonstrou o sumeriólogo americano Samuel Noah Kramer, a epopéia contém e combina elementos de mitos sumérios anteriores, que integram o material anterior isolado num único bloco. Os fragmentos sumérios mais antigos, descobertos nas cidades da Mesopotâmia de Nippur, Kish e Ur, remontam ao quarto milênio a.C.. O nome Gilgamesh mostrou ser sumério, e não semita. Os sumérios eram os mais antigos habitantes da Mesopotâmia que conhecemos. Até agora, sua linguagem não foi vinculada a nenhuma outra. Eles foram os inventores da escrita cuneiforme (em forma de cunha), que foi assumida pelos seus sucessores, os babilônios e os assírios, juntamente com toda a cultura suméria. Mas esses dois povos imprimiram na cultura suméria a sua própria marca particular, e as concepções semitas típicas foram igualmente inseridas na Epopéia de Gilgamesh.

A epopéia como tal é criação dos babilônios semitas, e os seus primeiros fragmentos pertencem aos assim denominado período babilônico antigo, isto é, durante a dinastia de Hamurabi, na primeira metade do segundo milênio a.C. Mas esta versão babilônica é muito fragmentária. Felizmente, cópias posteriores e elaborações ulteriores desses fragmentos foram encontradas nas escavações efutuadas em Nínive, na biblioteca de Assurbanipal, o último grande rei assírio, que reinou no 7º século a.C. A versão mais recente está escrita em doze tabuletas de argila e é o resultado de pelo menos 1.800 a 2.000 anos de trabalho sobre a epopéia.


Fragmentos posteriores a partir de então vieram à luz, os quais encerram valiosas adições ao texto danificado e incompleto. Entre os mesmos, encontram-se também translações para o idioma hitita e hurriano. Um fragmento acadiano datado em torno do 14º século a.C. também foi encontrado em Meggido, Canaã, consequentemente, anterior à colonização israelita nesta área. Essas descobertas mostram como estava difundida a Epopéia de Gilgamesh, desde o sul da Babilônia até a Ásia Menor, e em que alta estima a mesma era tida.


Podemos supor que, da mesma forma como outros mitos e lendas populares, a Epopéia de Gilgamesh foi originalmente transmitida aos povos por via oral, recitada por rápsodos, como está indicado pelo seu estilo e pelas suas freqüentes passagens repetitivas, que imprimiam a mensagem na alma dos diferentes povos, onde a mesma passou por desenvolvimento e por transformações posteriores.

Exatamente que fontes particulares foram coletadas, e de que forma, não me parece ser mera questão casual. O autor ou os autores desta composição devem ter tido a sensação de que isto fazia sentido, como fizeram aqueles que a aceitaram dessa forma através de séculos. O fator combinante pode ser encontrado no incosnciente criativo daqueles que trouxeram os materiais diferentes em conexão uns com os outros. Assim, buscar uma interpretação psicológica desta epopéia antiga, tão plena de significado, parece ser um empreendimento justificado. Os mitos são "assunto da alma", assim como os sonhos, e requerem interpretação simbólica e uma tradução.
A partir da descoberta de Jung do inconsciente coletivo e de seus conteúdos, os arquétipos (as formas típicas básicas do pensamento e sentimentos humanos e as reações subjacentes e determinantes da variedade ilimitada de experiências individuais), uma nova luz incidiu na essência dos mitos. Ao descobrir motivos mitológicos que emergem dos sonhos do homem moderno, Jung reconheceu que os mitos, da mesma forma que os sonhos, são manifestações do inconsciente. Tornou-se evidente, na prática, que apresentar paralelismos mitológicos como uma amplificação de sonhos arquetípicos não só aprofunda o entendimento desses últimos, mas também leva a um entendimento psicológico mais profundo do mito. A sua obra que abriu caminho neste sentido, Symbols of Transformation (Símbolos de Transformação), lançou os fundamentos para um campo mais vasto na pesquisa psicológica sobre os mitos e a sua relevância para o homem moderno.

2. Os mitos e o crescimento da consciência humana


Quanto à sua origem, da mesma forma como os sonhos, os mitos são expressões espontâneas do inconsciente. Como demonstrou Jung, da mesma forma como os sonhos estão relacionados, numa forma compensatória, ao estado atual da consciência do indivíduo, assim também os mitos, podemos presumir, estão relacionados ao estado coletivo da consciência de determinada era da história. Poderíamos presumir que seja o ego coletivo da tribo ou daquele povo, isto é, as crenças e as atitudes sustentadas em comum, a consciência coletiva. Entretanto, isto leva a outra questão, que é importante para a interpretação de um mito assumido como sonho coletivo: não existe ego individual ao qual se possa apelar para associações que ajudem a estabelecer um contexto em que ocorre o sonho. Como podemos interpretar um mito sem o aspecto particular de referência que temos para os sonhos individuais na pessoa daquele que sonha? Neste caso, o único contexto disponível é a cultura daquela época em que surgiu e foi avaliado o mito. Os mitos, por conseguinte, são como reflexões ou imagens de espelho de certas situações culturais da humanidade, e, assim como grandes sonhos arquetípicos individuais, eles contêm intuições e previsões profundas de desenvolvimentos posteriores, e, assim, eles podem ser considerados marcos miliários no desenvolvimento da consciência humana.




Quando interpretamos um sonho individual, podemos olhar para as figuras que nele ocorrem (além da figura do próprio indivíduo que sonha, que geralmente representa seu ego) sob o aspecto do seu assim denominado significado objetivo ou subjetivo, este último referindo-se ao aspecto interior e em grande parte inconsciente da personalidade daquele que sonha. Quanto mais coletivo e arquetípico o sonho, tanto mais se insinua o nível subjetivo da interpretação. Isto vale ainda mais para o caso do sonho, no qual, para começar, não existe um ego individual de um sonhador ao qual se referir. Mas existem indivíduos, divinos e humanos, que aparecem e agem no mito, e os mesmos podem ser interpretados como aspectos da totalidade projetada da psique humana, seja ela individual ou transmitida pela comunidade, a coletiva. No caso do mito do herói, em particular, existe um caráter, o herói, que é o autor numa seqüência contínua de eventos. O herói pode, portanto, ser considerado a previsão de um desenvolvimento da consciência do ego, e a sua atuação no mito, uma indicação do processo de movimento rumo à totalidade que está implícita e inata na psique; no indivíduo, o processo de individuação. Esta é, aparentemente, a razão porque os sonhos arquetípicos ocorrem com freqüência em momentos cruciais de nossa vida, em estados de transição. Mitos antigos podem então tornar-se não apenas amplificações valiosas para tais sonhos, mas a própria chave para a sua interpretação. Pois nós, consciente ou inconscientemente, estamos vivendo ou sendo vividos por padrões arquetípicos, e são as imagens mitológicas as que geralmente estão por trás das experiências mais profundas de significado em nossa vida.

Não parece ser mero acaso o fato de que, nos tempo modernos, tenham-se multiplicado publicações em torno da Epopéia de Gilgamesh, não só no campo da assiriologia, mas também nas obras poéticas, nas composições literárias e nas representações artísticas. É como se o nosso tempo tivesse que encontrar o seu próprio entendimento de buscar o significado ou o lugar específico da nossa própria era histórica, no processo de uma amplificação crescente da consciência, que é o sentido último e a meta última do mito. Como afirmou Jung em sua introdução à "Psicologia do arquétipo infantil" (part. 267):
"... nunca podemos legitimamente nos desligar dos nossos fundamentos arquetípicos, a não ser que estejamos preparados para pagar o preço de uma neurose, assim como não podemos nos desfazer do nosso corpo e dos seus órgãos sem cometer o suicídio. Se não podemos negar os arquétipos ou, de outra forma, neutralizá-los, nos defrontamos, em cada novo estágio de diferenciação da consciência à qual chega a civilização, com a tarefa de encontrar uma nova interpretação apropriada para esta etapa, a fim de conectar a vida do passado que ainda existe em nós com a vida do presente, que ameaça fugir da mesma. Se esta união não se realiza, surge uma espécie de consciência sem raízes, não mais orientada para o passado, consciência que sucumbe impotente a toda forma de sugestões e, na prática, é susceptível a uma epidemia psíquica."




Até que ponto "a vida do passado ainda existe em nós", iremos descobrir à medida que continuarmos a nossa investigação psicológica da Epopéia de Gilgamesh. Por causa do estado fracionado e danificado das tabuletas, o texto apresenta muitas lacunas, o que deixa muitas questões em aberto, cuja solução precisa aguardar a descoberta dos fragmentos adicionais da epopéia. Mas o fascínio exercido pela Epopéia de Gilgamesh, radicado em sua profundeza psicológica, supera todos esses obstáculos. Ele requer apenas a fantasia e a intuição para preencher essas lacunas, pois subsistiu um texto suficiente para imprimir sentido de continuidade significativa aos acontecimentos da história e da totalidade de um processo interior por trás do mito.

Ao trabalhar com o material, fiz uso de todas as traduções disponíveis em alemão, francês, holandês e, em inglês, da tradução poética em hexâmetro inglês de R. Campbell Thompson, da tradução E. A. Speiser, em Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (textos antigos do Oriente Próximo relativos ao Antigo testamento) e The Gilgamesh Epic and the Old Testament Parallels (A Epopéia de Gilgamesh e paralelismos do Antigo testamento), de Alexander Heidel. Este último é o texto que irei seguir em grande parte. Heidel apresenta boa e ampla introdução ao texto, e introduz na íntegra o paralelismo da Antiga Babilônia e os textos hititas, onde aparecem lacunas na versão padronizada. Não concordo com suas idéias a respeito dos paralelismos do Antigo Testamento, e esta parte foi de modo geral criticada, porém, quanto ao texto e à sua publicação, ambos são considerados de boa qualidade, muito bem processados e confiáveis.


Lamento dizer que meu estudo sobre a linguagem acadiana e sobre os escritos cuneiformes não tenha avançado o suficiente para me possibilitar basear minha pesquisa sobre o texto original. Considero também que tenho passado por alto alguns fatos psicológicos que poderiam ter-se revelado apenas para alguém que possui conhecimento mais profundo sobre a linguagem. Devo, portanto, pedir a indulgência do leitor a esse respeito. Entretanto, o número relativamente elevado de traduções cientificamente valorizadas parece ter-me garantido a tentativa para uma explicação psicológica.

Fonte: Revista de Literatura
Autor: Rivkah Schärf Kluger
Imagens: Internet