domingo, 14 de março de 2010

A literatura no mundo virtual: falsas autorias



CARLOS DRUMMOND, uma das maiores vozes de nossa literatura contemporânea, sofre, constantemente, deturpações de sua obra IMAGEM MANIPULADA

A internet tem sido uma ferramenta eficaz ao democratizar a publicação de textos literários, mas tem, por outro lado, dado espaço a imbróglios relativos à autoria. Esta pesquisa mostra a profusão de textos apócrifos no mundo virtual, bem como equívocos quanto aos créditos dados em poemas e crônicas de escritores consagrados na literatura universal.

O mundo virtual ampliou os espaços da literatura, facilitou a publicação de textos literários em blogs e sites e, sem dúvida, democratizou o acesso de estudantes e internautas em geral a textos antes restritos aos livros. Essa facilidade, entretanto, não é totalmente benéfica. Pesquisas sérias devem ser feitas em sites sérios, pois a democracia só é positiva quando está na mão de quem tem capacidade e caráter para exercê-la. O espaço virtual é terra de todos e de ninguém.
Há quem se preocupe com a credibilidade do que posta, e cita autorias e fontes; há pessoas mal intencionadas, que utilizam o ócio para fazer confusão; e há os incautos, que recebem e repassam textos sem qualquer preocupação com a autenticidade deles. Claro que ninguém é obrigado a saber de cor a autoria de todos os textos, mas, antes de repassá-los ou utilizá-los em pesquisas escolares e acadêmicas, bem como usá-los em avaliações e provas, deve-se conferir a autoria em livros ou com profissionais da área desse conhecimento.

Das atribuições

Não bastasse a omissão da autoria, que constitui um crime previsto na lei nº 10.695, relativa à violação de direito autoral, os escritores estão sendo vítimas de outro engodo: a atribuição de autoria. Arnaldo Jabor, Luís Fernando Veríssimo, Chico Buarque, Dráuzio Varela e Mário Prata, por exemplo, estão vivos e podem rechaçar a atribuição, embora não possam detê-la. Já Shakeaspeare, Clarice Lispector, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Charles Chaplin, Fernando Pessoa, entre outros, circulam na internet como autores de textos que nunca escreveriam e nada podem fazer. O pior é que pessoas utilizam como fonte de pesquisa sites abertos a contribuições, como o www.pensador.info; qualquer pessoa, por mais ingênua que seja, vasculhando as páginas desse site, percebe que um mesmo texto é postado várias vezes com autorias diferentes, tal como na página da Wikipédia, onde qualquer internauta pode se cadastrar e postar o que quiser. Já foram criados blogs e comunidades no Orkut para esclarecer dúvidas quanto a autorias, contribuindo, assim, para que o espaço virtual não seja apenas um celeiro de engodos, um desserviço ao aprendizado da literatura, mas um espaço legítimo que pode divulgá-la e servir de fonte de conhecimento, com credibilidade.

Drummonds

Carlos Drummond de Andrade, nome consolidado na literatura brasileira, tem estilo discreto e comedido, avesso, entretanto, a todo conservadorismo estético. Deixou uma obra consistente, acrescida dos poemas eróticos, de igual qualidade, desengavetados após sua morte. Não bastassem esses acréscimos, interneteiros insatisfeitos se deram o direito de atribuir-lhe versos que não constam na sua bibliografia, como é o caso do poema "Viver não dói", amplamente postado em blogs e repassado em e-mails e scraps: (Texto I).

Vanessa Lampert, uma das pessoas sérias, no mundo virtual, que estão lutando pelo crédito aos verdadeiros autores, fez uma análise interessante desse texto e deu uma explicação bem embasada. Em seu blog, ela discorre sobre o possível passo a passo da construção do poema, a começar pela crônica "As possibilidades perdidas", de Martha Medeiros, publicada em 20 de agosto de 2002, no site Almas gêmeas.
Ela diz que Martha se inspirou em um verso do poema "Canção", do poeta mineiro Emílio Moura, amigo e contemporâneo de Drummond: "Viver não dói. O que dói / é a vida que se não vive", discorreu sobre a vida e concluiu com uma interrogação seguida de uma resposta: "Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: se iludindo menos e vivendo mais".

A crônica de Martha, transformada em poema, recebeu o acréscimo de um texto da novelista inglesa Mary Cholmondeley : "A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-se do sofrimento, também perde a felicidade." ( Em inglês: "Every day I live I am more convinced that the waste of life lies in the love we have not given, the powers we have not used, the selfish prudence that will risk nothing and which, shirking pain, misses happiness as well."), com o enxerto final pinçado do livro You gotta keep dancin, de Tim Hansel, escrito logo após o acidente que ele sofreu e inspirado nas dores intermitentes que o perseguiram a partir daí. Ele diz que não podemos evitar a dor, mas podemos evitar a alegria: "Pain is inevitable, but misery is optional. We cannot avoid pain, but we can avoid joy." Há muitos outros textos atribuídos ao poeta itabirano. O segundo mais citado é "Conselho de um velho apaixonado": (Texto II)

Leitura consistente

Esse poema não consta em nenhum dos seus livros, nem se sabe ao certo quem é o verdadeiro autor. Também não constam em sua Obra Completa: "Desejo(s) e/ou Síntese da Felicidade" ("Desejo a você/Fruto do mato/Cheiro de jardim/Namoro no portão/Domingo sem chuva´´); "Reverência ao destino" ("Falar é completamente fácil, quando se têm palavras em mente que expressem sua opinião), que vem sempre acrescido dos versos do poema intitulado: "Eterno", de autoria dele; e, também, "Inconfesso Desejo" ("Queria ter coragem / Para falar deste segredo / Queria poder declarar ao mundo / Este amor / Não me falta vontade /Não me falta desejo").

As falsas atribuições ao poeta proliferam na Net como uma epidemia. A ele creditam: "Almas Perfumadas" ( Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daqueles que conseguimos acender na Terra), de Ana Claúdia Saldanha Jácomo; "Máscara", de Dante Milano; a frase "Não sei quando virá o amanhecer, por isso abro todas as portas" ("Not knowing when the dawn will come I open every door."), de Emily Dickinson; "Recomeçar" (Não importa onde você parou,/em que momento da vida você cansou,/o que importa é que sempre é possível e necessário recomeçar) foi, inclusive, lido por Ana Maria Braga em seu programa "Mais você", com com o título "Faxina da alma" e os créditos dados a Drummond.
A criação é, no entanto, de Paulo Roberto Gaefke e, em algumas versões deturpadas, apresenta ainda os versos VII - de "Da Minha Aldeia" no final: (Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer/Porque eu sou do tamanho do que vejo E não, do tamanho da minha altura) que são de Alberto Caeiro, ( "O Guardador de Rebanhos") um dos inúmeros heterônimos de Fernando Pessoa.

Trechos

TEXTO I

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!!

A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos /.../A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.

(Texto II)

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida. Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.


Fonte: Aíla SampaioProfessora da Unifor