quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Para onde estão me levando?
Ronaldo Correia de Brito

Rio Capabaribe

A Rua da Aurora, no Recife, contorna o rio Capibaribe, aquele que os pernambucanos falam de gozação que se junta com o rio Beberibe para formar o Oceano Atlântico. Manuel Bandeira, no poema de evocação, lembra que "Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... ...onde se ia pescar escondido". E mais adiante, nesse mesmo cais, a ponte do Limoeiro, de onde se avista Olinda, de longe parecendo a mesma velha Olinda de Duarte Coelho, a que não se apalpa e é só beleza, como escreveu Carlos Pena Filho, outro poeta.

Rua Aurora


Tento viver o Recife com o encantamento dos dezessete anos, quando cheguei por aqui com uma mala de couro e uma caixa de papelão cheia de livros, atrás de estudar medicina e me fazer na vida. Aos olhos do adolescente, Recife parecia a cidade mais linda do mundo. Dizem os pernambucanos bairristas que era mesmo.
Há três semanas, contornava de automóvel o Cais da Aurora, me perguntando os motivos de as pessoas não estarem passeando por ali, curtindo a brisa do Capibaribe e a paisagem deslumbrante do mangue. No semáforo da ponte do Limoeiro, de onde podemos seguir em frente para Olinda ou dobrar à direita para o Bairro do Recife, as quatro saídas das ruas foram repentinamente bloqueadas por uma dezena de motos policiais.
De metralhadoras apontadas para nós, os policiais se moviam insanos, falando através de rádios. Ninguém compreendia nada, porque nada fora explicado. Perplexos e apavorados, aguardávamos o tiroteio como se fôssemos barricadas. Cinco minutos de pânico e terror. Da mesma forma que chegaram, os soldados partiram. E, depois deles, não consegui enxergar mais nenhuma beleza ou poesia no rio, no cais, no manguezal, nem mesmo em Olinda, edificada entre nuvens na lonjura de um monte.

Uma semana depois, a mesma cena se repetiu igualzinha, só que agora no cruzamento que separa o bairro de Apipucos - onde morava Gilberto Freyre -, do bairro de Dois Irmãos, umas das últimas reservas de mata atlântica do Recife. Soldados chegaram em motos, armados de metralhadoras, fecharam todas as vias do trânsito e nos mantiveram reféns por alguns minutos aterrorizantes. Como se fossem assombrações do Recife Antigo, registradas num livro de Freyre, eles partiram do mesmo jeito que chegaram, sem prenúncios, almas penadas envoltas na fumaça dos escapes.


Hoje, a assombração apareceu em pleno bairro do Parnamirim, num epicentro comercial de supermercados, shoppings, lojas de luxo e cinemas. Dessa vez, eram viaturas policiais tocando sirenes, em desembestada velocidade. Imagino que perseguiam alguém. Na loucura do engarrafamento, as viaturas tentavam passar, obrigando os motoristas a manobrarem seus carros à deriva. Os corpos projetados para fora das viaturas, os policiais seguravam revólveres fazendo mira. Por alguns segundos, me vi a um metro de um revólver, apontado para minha cabeça como se fosse estourar meus miolos.
Quando eu era menino, vivia a lembrança aterrorizante dos cangaceiros, no sertão onde nasci e na fazenda de minha avó, lá no Ceará, que nem possuía bandos de cangaço. Quando cheguei ao Recife, em 1969, um ano após o Ato Institucional Número 5, que aboliu as liberdades civis, conheci o braço pesado da ditadura e a luta clandestina da esquerda. Mas todas essas vivências se apequenam se comparadas ao atual cenário de violência das cidades brasileiras. Deprime, dá vontade de fugir.
Para onde?

Uma paciente de um hospital psiquiátrico do Recife repetia em meio ao delírio: "Louca, eu? Juro que não sou. Sei pra onde estou indo, só não sei pra onde estão me levando". O poeta português José Régio, no seu Cântico Negro, escreve: "Não sei por onde vou,/Não sei para onde vou,/Sei que não vou por aí!" E eu, um brasileiro apavorado, não sei para onde estão me levando, nem se quero ir por aí.
Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara.  Retratos Imorais- Alfaguara / Objetiva. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.
Imagens: Internet

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Drácula: o filho do dragão

Herói e tirano, destruidor dos turcos, algoz de seupróprio povo, líder impiedoso. Conheça as muitas facesde Vlad Drácula, o príncipe romeno do século 15 que emprestou seu nome às lendas de vampiros

por Reinaldo José Lopes


Vlad III

A cena é horripilante, sem dúvida, mas até um cego, incapaz de vê-la, conseguiria sentir a dimensão da atrocidade perpetrada ali. Ou melhor, farejá-la: 20 mil corpos humanos apodrecem ou agonizam diante da cidadela abandonada, uma floresta de empalados capaz de atemorizar até o líder do maior império do planeta. O sultão turco Mehmed II, conquistador de Constantinopla e veterano de muitas guerras, diz para quem quiser ouvir que não é possível enfrentar um inimigo que se dispõe a tal ato. Deixa o comando de seu exército e volta para a segurança de seu harém.

Esse inimigo implacável, que no século 15 deteve o avanço do Império Otomano, envergava com orgulho uma alcunha hoje mundialmente famosa: Drácula. Ele era Vlad III da Valáquia, embora seus conterrâneos e inimigos tenham usado também o sinistro apelido de Tepes, “o Empalador”, em romeno. Por uma série de acasos literários, esse príncipe virou sinônimo de vampiro sem ter nenhuma ligação com as criaturas da noite, mas o verdadeiro caráter do Empalador é quase tão misterioso quanto os desses seres: herói nacional, tirano sanguinário ou uma mistura improvável das duas coisas?


Empalamento

Talvez a resposta para o dilema seja difícil de achar porque Vlad viveu num dos períodos (e lugares) mais complicados da história européia. A região que mais tarde se transformaria na Romênia não passava de um aglomerado confuso de principados minúsculos, esmagados entre gigantes. A noroeste, havia o Sacro Império Romano-Germânico, senhor da Alemanha e da Itália e maior potência da Europa Ocidental. Em torno de si (como num abraço mortal), o reino da Hungria começava a ter papel preponderante como campeão da cristandade contra a ameaça turca, ao sul, onde o Império Otomano reduzira os mil anos de poderio Bizantino a um território nanico na Grécia e no Bósforo, onde Constantinopla ainda resistia heroicamente – mas não por muito tempo.

Com tantos grandes brigando entre si, povos mais fracos às vezes conseguiam um espaço para respirar e tentar a independência. Foi o que ocorreu com os ancestrais dos romenos, diferentes de todos os outros povos dos Bálcãs por falarem uma língua latina, assim como o português, herança da antiga colonização romana. A Valáquia, no sul da atual Romênia, escapou do domínio húngaro e passou a ser governada por Besarab, o Grande, em 1330. Dele descendia Mircea cel Batrin (ou Mircea, o Velho), avô de Drácula e príncipe dos valacos de 1386 a 1418. O novo país parecia consolidado, mas bastou que Mircea morresse para que seu filho Vlad tivesse de enfrentar a rebelião de seu primo Dan, apoiado pelos boiardos (os nobres do país).




Dan proclamou-se voivoda (príncipe) e Vlad teve de se retirar para a Transilvânia (então parte do território húngaro). Foi lá que nasceram seus três filhos (Mircea, Vlad e Radu) na cidade de Sighisoara – aliás, essa é a única verdadeira associação do futuro Empalador com a famigerada Transilvânia, já que ele nunca foi conde do lugar. Acredita-se que Vlad filho veio ao mundo em 1431 – ano em que o famoso apelido do príncipe valaco teve sua origem. O imperador germânico Sigismundo convocou Vlad pai a Nuremberg e nomeou-e para a Ordem do Dragão – um grupo de cavaleiros dedicados à defesa do imperador e da cristandade contra a ameaça turca. Vlad parece ter gostado tanto da honraria que adotou o título de Dracul, “o Dragão” (“drac” é dragão em romeno, enquanto “ul” equivale ao nosso “o”). Quando adulto, seu filho do meio também entrou para a Ordem do Dragão e se tornou Draculea ou Drácula – “Filho do Dragão”.




Há quem acredite que o termo também tem a conotação de “demônio” em romeno, mas o fato é que, pelo menos no nome, ambos os “Vlads” (pai e filho) eram guerreiros de Cristo.
Em 1436, Vlad Dracul (o pai) conspirou para assassinar Alexandru I, o governante dos Danesti (a facção de Dan), e tornou-se Vlad II da Valáquia. Apesar de seu juramento de fidelidade à Ordem do Dragão, Vlad Dracul logo percebeu que aquela não era a hora de bancar o cruzado. Os turcos estavam cada vez mais poderosos e, numa tentativa de apaziguá-los e conseguir um pouquinho de independência, ele foi obrigado a enviar Vlad (o filho) e Radu como reféns para as terras do sultão.

Os dois meninos passaram sete anos entre os turcos. Quando o sultão finalmente decidiu liberar os dois, em 1448, só o mais velho, Vlad, escolheu voltar à Valáquia. Não foi uma boa idéia: ao chegar em casa, ele descobriu que seu pai e seu irmão Mircea (herdeiro do trono) tinham sido assassinados pelos rebeldes boiardos, que decidiram apoiar um Danesti. Seguiu-se um luta pelo poder e, por alguns meses, o jovem príncipe conseguiu se apoderar do trono, tonando-se Vlad III. No entanto, um golpe com o apoio dos húngaros o tirou do poder. Os vizinhos não gostavam nada da política de apaziguamento do pai de Drácula em relação aos turcos e colocaram em seu lugar um vassalo do rei húngaro.

Eles logo se arrependeriam da decisão: o novo voivoda mostrou-se um covarde pró-otomanos. Numa daquelas reviravoltas das quais só os políticos são capazes, os húngaros ofereceram seu apoio a Drácula, ou seja, deram-lhe um poderoso exército. Assim, em 1456, Vlad retomou o comando da Valáquia. “Foi nessa época que Drácula realizou seus maiores feitos militares e cometeu as maiores atrocidades”, diz a pesquisadora canadense Elizabeth Miller, da Memorial University of Newfoundland, especialista em ambos os “dráculas” – o histórico e o personagem literário.




Sua posição, mais que nunca, exigia coragem. Afinal, três anos antes, a própria Constantinopla tinha caído, e os turcos não viam a hora de estender seus domínios entre os principados do outro lado do Rio Danúbio. Para resistir ao avanço do Império Otomano, Vlad adotou uma astuta tática de guerrilhas que conseguiu lhe garantir o sossego por alguns anos. Era hora de obter também um pouco de segurança dentro de casa – e é aí que entra o carinhoso apelido de “Empalador”.

Na ponta da estaca

Todos os relatos que ainda existem sobre o reinado de Drácula parecem concordar num ponto: o príncipe tinha uma fascinação macabra por empalamentos. Esse método de execução e tortura prolongada envolvia o uso de uma estaca de madeira – de preferência não muito afiada e embebida em óleo, para não matar a vítima de cara. Uma das maneiras de usar o instrumento era enfiá-lo pelo ânus ou pela vagina e fazê-lo sair pela boca, mas Vlad III gostava de variar: podia espetar a pessoa diretamente no abdome ou pregar bebês ao peito das próprias mães, por exemplo. De um jeito ou de outro, o fato é que a coisa doía – e demorava. Conta-se que, quando não podia praticar esse esporte com seres humanos, Drácula contentava-se com pássaros e ratos.

Provavelmente, esse é o mais inegável dos aspectos negativos do príncipe: “Na história romena, Vlad sempre é chamado de Empalador”, diz Elizabeth Miller. “O nome vem do turco kaziklu bey, ‘príncipe empalador’, expressão empregada pelos cronistas turcos dos séculos 15 e 16. Mas o apelido dá uma idéia do medo que ele causava em seus inimigos, e acabou adotado pelos conterrâneos dele.”




Justiça seja feita, Drácula usava o método com um propósito digno de qualquer governante do Renascimento: a unificação do poder real e a humilhação dos incovenientes boiardos. Segundo Elizabeth, ao assumir o trono, Vlad reuniu todos os nobres numa festa e perguntou quantos príncipes valacos haviam reinado durante a vida deles. Ninguém ali tinha visto menos de sete voivodas no trono. E Vlad teria dito: eu serei o último que verão. “Ele mandou empalar os mais velhos e fez com que os mais jovens e fortes trabalhassem na construção de uma nova fortaleza perto de Tirgoviste, a capital valaca”, diz. Outras vítimas da fúria de Drácula foram os comerciantes saxões que dominavam as conexões entre os Bálcãs e o Ocidente europeu e que tinham uma tradicional aversão ao pagamento de impostos. Vlad passou a cobrar pedágios nas principais rotas comerciais. Com o dinheiro, construía mias estradas e reforçava seu exército.

Os registros da tradição oral romena costuma enfatizar as duras represálias do príncipe contra os criminosos. A política “tolerância zero” de Drácula fez tanto sucesso que o voivoda decidiu erigir um pedestal em Tirgoviste e colocar sobre ele uma peça de ouro, que permaneceu intocada durante todo o seu reinado. Símbolo de que não havia crimes na Valáquia.

Vlad III poderia ter se divertido desse jeito por décadas, mas nada era mais instável que a política balcânica. Era questão de tempo até que os turcos se organizassem para um ataque maciço, e ele veio em 1461, quando 60 mil homens comandados pelo próprio Mehmed II cruzaram o Danúbio. O voivoda iniciou uma lenta retirada para o norte, arrasando as terras por onde passava para evitar que os turcos obtivessem provisões e até tentando usar os últimos avanços em armas biológicas da época – soldados com peste que foram mandados para o acampamento turco.

Quando o exército turco se aproximou de Tirgoviste, o Empalador usou sua derradeira e mais poderosa arma: o terror. Eis o que conta a respeito o cronista grego Khalkondyles: “O exército do sultão chegou a um campo cheio de estacas, com cerca de 3 quilômetros de comprimento e 1 quilômetro de largura. Os turcos, vendo tantas pessoas empaladas, ficaram muito amedrontados”.


O recuo otomano, no entanto, foi temporário. Mehmed decidiu apoiar Radu, o irmão de Vlad, numa conspiração para levá-lo ao poder. Os poucos boiardos que sobravam na Valáquia, cansados do absolutismo de Drácula, aderiram ao movimento. Vlad III fugiu para a Transilvânia como fizera seu pai, e foi preso pelo rei húngaro Matias Corvino. Gradualmente, no entanto, Drácula ganhou a confiança do soberano. Ele se casou com uma nobre húngara ligada à família real e, de forma surpreendentemente diplomática, converteu-se ao catolicismo romano (ele sempre fora ortodoxo). A essa altura, Vlad já sofria com um problema familiar à nobreza moderna: a imprensa sensacionalista. Entre os primeiros textos impressos na Europa já estavam panfletos em alemão que celebravam (ou melhor, denegriam) os feitos do voivoda, com manchetes do tipo “A Asustadora e Extraordinária História do Cruel Tirano Bebedor de Sangue Chamado Príncipe Drácula”.


Matias Corvino

Matias Corvino finalmente decidiu apoiar a volta de Drácula ao poder, e o mesmo fez o rei Estevão da Moldávia, parente do Empalador. Com essa ajuda, Vlad III cruzou a fronteira transilvânia e, mais uma vez, assumiu o trono, em 1476. O grosso das tropas, no entanto, logo voltou a suas regiões de origem, e Vlad teve de enfrentar sozinho mais um ataque turco. Era o fim da linha: numa batalha numa floresta ao norte de Bucareste, o voivoda foi derrotado e decapitado. Sua cabeça foi enviada a Constantinopla e exposta; seu corpo mutilado, de acordo com a tradição, foi sepultado no mosteiro de Snagov, embora uma escavação arqueológica, feita nos anos 30, não tenha conseguido localizar os restos mortais do guerreiro.

“Se julgarmos somente com base em documentos escritos, então Vlad é mais tirano que herói”, avalia Elizabeth Miller. “Os relatos alemães e turcos enfatizam sua crueldade. Mas os alemães ou saxões da Transilvânia se opunham a ele por razões econômicas e políticas, e os turcos eram seus inimigos”, diz. Segundo ela, os relatos romenos são apenas orais, e eles tendem a ver Vlad como um herói. “Ele realmente conseguiu defender seu pequeno principado de um império poderoso, por algum tempo. Não há dúvidas sobre sua crueldade, mas pode-se argumentar, como fazem muitos historiadores romenos, que ele não era pior que outros líderes de seu tempo”, afirma a pesquisadora.

Saiba mais

Livros

Dracula, Elizabeth Miller, Parkstone Press, 2000
Em Busca de Drácula e Outros Vampiros, Raymond T. McNally e Radu Florescu, Mercuryo, 1995
Drácula, Bram Stoker, L&PM Pocket, 1998, Tanto o livro de Elizabeth quanto o da dupla McNally e Florescu se dedicam a explorar a boa e velha tensão entre mito vampírico e personagem histórico. A vantagem da pesquisadora canadense está nas primorosas ilustrações, enquanto o outro conta com um roteiro turístico pelas terras do Empalador e uma filmografia. Não dá para esquecer, claro, de Stoker: o livro envelheceu bastante no último século, e alguns trechos de prosa vitoriana são duros de engolir, mas a força imaginativa do texto permanece.

Fonte:Aventuras na História
Imagens: Internet

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

FELICIDADE DEMAIS

*Luíz Horácio Rodrigues


Alice Munro
 Felicidade demais, livro de contos de Alice Munro, é uma obra impressionante. "Dimensões", história que abre essa coletânea, ali o leitor encontrará Doree, camareira de uma pousada. Ela diz: "Eu sei que essas palavras já estão mortas de tão gastas. Mas continuam verdadeiras."


Aceite uma advertência, paciente leitor: o título pode sugerir um livro de auto ajuda, convém não se deixar levar por essa impressão. Você terá em mãos a mais fina ironia, do título às histórias. Tudo com sutileza, o que torna Felicidade demais, uma obra inesquecível.

Mas voltando a frase de Doree. Sem demora a camareira se envergonhará por ter dito "mortas", como a perceber que a tarefa de Alice Munro é justamente a de revitalizar as palavras. E o faz de forma magistral, capaz de tornar o mais cruel cotidiano, a mais maçante rotina, fantásticos esconderijos de surpresas. É desse cotidiano que a autora extrai personagens simples, alguns simplórios, carregados de imprevisibilidade, aptos a correr em busca da fugidia felicidade. Os contos de Alice Munro, no entanto, não apresentam o menor traço de superficialidade ou de simplicidade; são histórias densas onde avançar e recuar no tempo é um recurso fartamente utilizado. Nada é simples, Alice por vezes consegue fazer sua narrativa soar como um quadro barroco, contrastes, dramaticidade beirando o excesso, e a tensão entre o material e o espiritual; nesses instantes a autora pesa a mão. O que impressiona é que tal estratégia não compromete a narrativa, é diluída, sobretudo, pelo fato de Alice Munro colocar suas personagens, sempre, frente ao não convencional. Mas não se engane, cuidadoso leitor, não se trata de fórmula, em Felicidade demais o que está exposto é uma variedade de sutilezas, todas encaminhando a leitura à surpresa.

Três contos são exemplos de consistência narrativa e assombrosa tensão
 
Em Dimensões, a jovem Doree, mãe de três crianças e, conforme disse no começo desta resenha, trabalha como camareira de uma pousada. Casada com Lloyd, conhecera-o auxiliar de enfermagem. Pai de dois filhos, imaginava-os adultos, embora não fizesse a menor idéia sobre o paradeiro de ambos.Doree e Loyd mudaram de cidade, foram viver juntos, logo vieram os filhos. Três crianças que um dia, sem mais nem menos, seriam estranguladas pelo pai.

Loyd é condenado, gastará seus dias em um manicômio, de onde escreve cartas e mais cartas a Doree no intuito de convencê-la que os matara por convicção, em hipótese alguma fruto da loucura. Convicção quem tem é Doree. O inusitado trará um alento a ex-camareira.


Rosto conta a história da menina Nancy que cortou o próprio rosto com navalha, queria ter defeito igual a deformidade de nascença apresentada por seu amigo. "Foi na mesma bochecha", ela disse. "Como a sua."


Brincadeira de criança é a história de duas crianças que matam uma criança deficiente. "A cabeça de Verna não retornou mais à tona, embora não estivesse mais inerte, mas ser revirando como que se divertindo, leve como uma água-viva em seu habitat. Charlene e eu estávamos com as mãos em cima dela, em sua touca de borracha. Pode ter sido um acidente. Como se nós, tentando recuperar o equilíbrio, tivéssemos nos agarrado no objeto mais próximo, grande e de borracha, mal percebendo o que estávamos fazendo. Pensei em tudo isso. Acho que teríamos sido perdoadas. Crianças pequenas. Aterrorizadas."

Não, sensível leitor, você não está equivocado, o terror está presente nos contos de Felicidade demais. O terror que não exige esquartejamentos, zumbis, vampiros; mas o terror que habita a infância, a crueldade das crianças, e cresce, cresce, e nos espera na porta de entrada de nossa velhice. O terror há nos exigir lembranças, geralmente tristes. Dos filhos abandonados dos casamentos desfeitos à filha morta do casamento quase infantil, são lembranças da realidade deste resenhista. Lembranças rápidas, já chegaram a minha velhice, jamais se satisfarão com minha dose de sofrimento.


É a vida, a vida a nos fornecer material para o sofrimento ou para a ficção, no caso de Alice Munro. A vida, a vida pela ótica da autora de Felicidade demais: "Eu cresci, e fiquei velha."

Vidas comuns, vidas pequenas, o cotidiano, a rotina, viver e se deixar levar pela vida. Hoje, amanhã, depois de amanhã. Sempre tudo igual. Sempre. A mudança é a morte, a frustração traz traços de normalidade implacável.


As vidas apresentadas por Alice Munro são precárias, assustadoras, lamentavelmente próximas de nós. Crescem, tão somente, em função de uma desgraça. Viver, aqui, não é perigoso. É triste, não tem saída, não tem volta.


Há um quê de Beckett nas personagens de Alice. No conto Algumas mulheres: "E minha avó havia me avisado para, se possível, eu evitar de tocar em qualquer coisa que o paciente tivesse tocado, por causa dos germes, e que eu sempre deveria usar um pano entre meus dedos e o copo d'água dele. Minha mãe disse que leucemia não passava por germes.

"Então pega como?", disse minha avó.

"Os médicos não sabem."


"Ah."


Felicidade demais é o retrato pálido da miserável condição humana onde o leitor encontrará doses homeopáticas de alegria, geralmente oriundas do conta-gotas do acaso, do crime, das fantasias sexuais, das lembranças….Infelizmente!

*Luíz Horácio Pinto Rodrigues - Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e faz mestrado na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.





*** Para aumentar a imagem acima, basta clicar com o mouse.


Imagens: Internet

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Sherlocks de carne e osso


O mais famoso detetive foi criado na Inglaterra do século 19 não por acaso. Nascia ali a polícia profissional. As façanhas de seus investigadores reais não perdem nada para as da ficção


por Tiago Cordeiro




O padre ferido durante um assalto é levado para a casa mais próxima, onde a locatária aponta um divã para que repouse. Pouco depois, ele começa a tossir. Uma das pessoas que o socorreu grita: "Fogo!" A primeira reação da senhora, em pânico, é buscar um papel na gaveta de uma cômoda. Imediatamente, o padre acalma a todos e diz que se trata de um engano. O homem que dera o alarme falso sai sorrateiramente. O sacerdote também vai embora. Na rua, eles se encontram, satisfeitos: Sherlock Holmes e John Watson já podem abandonar as fantasias e voltar para o escritório na Baker Street, 211B. Descobriram onde Irene Adler esconde a fotografia que buscam, uma ameaça para o reino da Bavária. Mestre na dedução e nos disfarces, Holmes domina técnicas de luta e armas, conhece anatomia, botânica e química. Quando envolvido em um caso, quase não come e injeta-se cocaína diluída para ficar acordado. Na Inglaterra do fim do século 19, é o único que soluciona os crimes mais complicados. Isso tudo, claro, nos quatro romances e 56 contos de Arthur Conan Doyle.


Sherlock Holmes e Dr. Watson


Holmes incorporou a imagem do detetive perfeito. Com sua capa, lupa, chapéu e cachimbo, está em praças por toda a Grã-Bretanha. Protagonizou 200 filmes, com 70 diferentes atores no papel (o mais recente é Robert Downey Jr., na versão do diretor Guy Ritchie). É o personagem mais recorrente da história do cinema - aliás, foi nas telas que apareceu a famosa frase "Elementar, meu caro Watson!", nunca dita nos livros. Mas Sherlock não surgiu por acaso. Enquanto escrevia suas histórias, o médico escocês Conan Doyle vivia na terra da melhor polícia do mundo. Ao mesmo tempo que seu personagem caçava bandidos sanguinários e falsárias astutas, os ingleses inventavam uma força policial de organização e técnicas que seriam imitadas em todo planeta.


Escravos e milícias


O combate à criminalidade existe desde as origens da civilização, mas as formas de fazê-lo variaram bastante. Na China antiga, os delitos eram investigados pelos prefeitos. Na Grécia, o policiamento de rua ficava por conta de escravos. Em Roma, a função era do Exército; na Espanha medieval, de milícias armadas organizadas, as Hermandades, que existiram até 1835. Em 1667, o rei Luís XIV da França criou a primeira versão de uma polícia formal - o significado atual da palavra "polícia" apareceu entre os franceses. Pouco antes, em 1626, Nova York já tinha seu próprio xerife.


Até meados do século 19, porém, não havia uma força organizada, com salários fixos, treinamento específico e, principalmente, dedicada a prevenir os crimes. Essa nova entidade surgiu na Inglaterra, que até 1820 era um dos países mais atrasados da Europa nesse quesito - a segurança ainda era responsabilidade de guardas noturnos recompensados quando encontravam ladrões. "Não existia o conceito de polícia para todos. Agentes só se mobilizavam nos casos que envolvessem a nobreza ou as recompensas fossem muito altas", diz o sociólogo britânico Barry S. Godfrey, diretor do Instituto de Pesquisa da Lei, da Política e da Justiça da Universidade Keele.



Scotland Yard


Isso mudou quando o secretário de Estado Robert Peel propôs um novo modelo, que em 1829 se tornou a Polícia Metropolitana de Londres. Scotland Yard é o nome da sede. Começava então um período de testes e experimentações que durou até 1856. "O policial caminhando pelas ruas, protegendo os pobres e ricos da mesma forma, sem nenhuma arma a não ser um pequeno cassetete de madeira, tornou-se um símbolo da sociedade britânica", afirma Godfrey. Entre 1890 e 1950, a polícia britânica seria, de longe, a mais igualitária e eficiente do mundo. Na época, o código penal listava um número pequeno de delitos: agressões, assassinatos, assaltos, conspiração contra autoridades e exploração de menores, entre outros. As ocorrências não passavam de 2 mil por ano, para uma cidade que tinha 3 milhões de habitantes. Hoje são 7,5 milhões de moradores e 1 milhão de delitos anuais.


Os policiais franceses também tinham uma hierarquia clara, normas de conduta e uniformes desde 1829 (boatos do fim do século 19 sugerem que os detetives do país eram orientados a ler as histórias de Sherlock em busca de inspiração e de técnicas de investigação). Mas a revolução protagonizada pelos ingleses consistiu em duas novidades: o treinamento para a prevenção de crimes e o uso de novas tecnologias para a investigação. Os britânicos analisavam pegadas, marcas de rodas, cinzas de cigarro, textos escritos a mão, manchas de sangue, resíduos de pólvora, fotografias e até mesmo impressões digitais - todos elementos encontrados nas histórias de Sherlock Holmes.


Fotos e digitais

Os investigadores ingleses passavam muito tempo nas ruas, entre seus informantes e nos locais de maior concentração de crime - outra prática inédita para um mundo onde a regra era ver mais policiais nas áreas mais ricas, exatamente onde menos crimes aconteciam. Eram homens muito experientes. Ao fim do século 19, a maioria já tinha treinamento para não comprometer uma cena de crime, usar as tecnologias disponíveis e abordar criminosos de forma a não colocar em risco as vítimas. "Londres foi a primeira cidade a dispor de um banco de dados com fotos e impressões digitais de todos os acusados", diz o historiador David Taylor, professor da Universidade de Huddersfield.




Nos interrogatórios, o suspeito que não confessasse estava sujeito a afogamento controlado, pancadas e celas escuras sem banheiro ou alimentação. "A grande diferença em Londres é que os agentes só passaram a recorrer a esses métodos mais violentos quando tinham indícios muito fortes contra o suspeito. Em outros lugares, a tortura dentro das delegacias era indiscriminada", afirma Godfrey. Foi só ao longo do século 20 que todo suspeito ganhou o direito a ser acompanhado por um advogado.


Alguns investigadores do período ficaram famosos pela capacidade dedutiva e pela eficiência com que resolviam os crimes mais complexos (veja quadro à esq.). Eles foram capazes de identificar e prender serial killers que haviam escapado ilesos em outros países, como Canadá (veja à dir.). Mas nenhum caso de sucesso foi tão retumbante quanto o fracasso em localizar o famoso Jack, o Estripador, que aterrorizou Londres a partir de 1888. Os melhores policiais do mundo na época não conseguiram nem identificar o assassino. Seria um prato cheio para Sherlock Holmes...

Em tempo: o epidódio que abre esta reportagem faz parte do conto "Um Escândalo na Boêmia" e não termina bem para nosso herói. A bela Irene Adler percebe que havia sido enganada e foge durante a madrugada, antes que Holmes pudesse voltar e resgatar a fotografia em que ela aparecia com o príncipe da Bavária. Prestes a se tornar rei, o nobre queria evitar um escândalo. "A mulher", como passou a chamá-la Sherlock, foi uma das poucas pessoas que conseguiram enganar o maior detetive da literatura.


Baseado em fatos


Médico escocês inspirou Doyle


Dr.Joseph Bell


Lei e ordem

Os melhores investigadores ingleses da época de Sherlock

 Jonathan "Jack" Whicher

"Jack" Whicher

Detetive da polícia de Londres desde 1837, ajudou a fundar a Scotland Yard. Solucionou dezenas de crimes, mas o assassinato do menino Saville Kent arranhou-lhe a reputação. Ele apresentou como suspeita a adolescente Constance, inocentada por falta de provas. Ela confessou anos depois, mas Whicher já estava morto.

Charles Frederick Field

 

Charles Field

Perito em se infiltrar disfarçado em cenas suspeitas, foi um dos melhores investigadores da Scotland Yard. Depois virou detetive particular: desvendou vários casos de roubo antes da polícia e um de envenenamento de três pessoas. Serviu de inspiração para o inspetor Bucket, de Charles Dickens.

Edwin Coathupe

Considerado um dos melhores detetives da história, estudou medicina e chegou a trabalhar em dois hospitais até se tornar policial. Antes de assumir cargos de chefia, passava boa parte do dia na rua, entre suas fontes de informação, investigando casos e fazendo policiamento preventivo.

 Melville Macnaghten

Melville

Comissário da polícia de Londres entre 1903 e 1913, era mestre em orientar detetives e organizar informações. Em 1894, foi responsável pelo melhor relatório feito sobre Jack, o Estripador. Seu texto, só revelado ao público em 1954, ainda é a fonte mais confiável sobre o episódio.

 Procurados

Os assassinos que aterrorizaram a Grã-Bretanha do século 19

 Thomas Neil Cream

 
Thomas Neil

Escocês educado no Canadá, foi forçado a se casar com uma jovem a quem engravidou. Ela, como outras de suas amantes, morreram envenenadas com clorofórmio e estricnina. Fez ao menos cinco vítimas no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra, até ser preso pela polícia inglesa e enforcado em 1892.


Catherine Wilson
Enfermeira inglesa sedutora, servia taças com ácido sulfúrico para suas vítimas, geralmente doentes idosos convencidos a incluí-la em seus testamentos. Foi julgada e condenada à forca pelo envenenamento de Maria Soames, mas possivelmente matou outras seis pessoas. Foi executada em 1862.

 William Burke e William Hare

 

Os maiores ladrões de túmulos da Escócia vendiam os corpos para um professor particular que atendia alunos de anatomia da Escola Médica de Edimburgo. Também mataram 17 pessoas com igual objetivo. Hare entregou o parceiro, enforcado em 1829, e nunca mais foi visto.

Jack, o Estripador



Jack Estripador

Em 1888, mutilou e matou pelo menos cinco prostitutas do bairro londrino de Whitechapel. Os crimes levaram outros assassinos a imitar seu método: as vítimas eram estranguladas, tinham a garganta cortada e alguns órgãos removidos. Nunca foi identificado.


Saiba mais

 LIVROS

 - The New Police in Nineteenth-century England, David Taylor, Manchester University Press, 1997
Relata o processo de profissionalização da polícia britânica.


- The Suspicious of Mr Whicher, Kate Summerscale, Bloomsbury, 2008
A atuação do investigador Jack Whicher no caso do assassinato de Saville Kent.


- Um Escândalo na Boêmia, Arthur Conan Doyle, Ediouro, 2003
Traz o conto que abre esta reportagem, publicado pela primeira vez em 1891, além de outras cinco histórias e uma introdução de Paulo Mendes Campos.

Fonte: Aventuras na História
Imagens: Internet

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Roma: nasce um império

No começo das guerras contra Cartago, Roma não era nada. Cem anos depois, estava controlando o mundo

por Patrícia Pereira


Foi o reino de Cartago quem transformou Roma em uma grande potência. Quando as duas cidades entraram em guerra pela primeira vez, Roma era um vilarejo metido a besta, que tinha acabado de dominar o resto da Itália e ainda estava formando um exército. Cartago era o centro do mundo. Seus navios controlavam o Mar Mediterrâneo, que era o único pedaço de oceano que realmente importava na época. Cem anos depois, quando o terceiro conflito acabou, Cartago tinha sido destruída, enquanto Roma estava pronta para conquistar o planeta.


Para entender essa história, precisamos voltar ao ano 264 a.C.. Fundada por fenícios na atual Tunísia, no norte da África, Cartago ia muito bem até Roma começar a crescer. O primeiro choque entre as duas cidades aconteceu numa disputa pelo controle da Sicília, que deu início à Primeira Guerra Púnica (o nome esquisito vem de punici, ou “fenícios”, como os romanos se referiam aos cartagineses). As primeiras lutas foram em terra, com a vitória de Roma. Os romanos passaram a dominar quase toda a Sicília, mas Cartago ainda controlava o mar. Vieram então as batalhas marítimas, vencidas novamente pelos romanos.




Disposta a acabar de vez com a guerra, Roma enviou um forte exército direto para a África em 256 a.C. Quase venceu, mas no final Régulo acabou tendo que recuar. Em 247 a.C., Amílcar Barca assumiu o comando das forças de Cartago e atacou cidades ao sul da Itália. Roma reagiu e conseguiu recuperar quase todas as posições na Sicília e assumir a supremacia do Mediterrâneo. Cartago só teve uma alternativa: assinar um tratado de paz. Mas o filho de Amílcar não esqueceria essa humilhação.


Hierarquia romana


Efeito surpresa


Cartago

Depois da derrota, Cartago ocupou Espanha e Portugal disposta a se recuperar para voltar para a briga. A missão na Espanha foi confiada a Amílcar e, no ano 221 a.C., transferida a seu filho, Aníbal Barca. Aníbal começou logo a preparar uma nova guerra. Para penetrar na Itália, o novo líder apelou para o efeito-surpresa: em vez de viajar pelo mar, como qualquer um faria, resolveu invadir a Itália por terra. Acontece que existem os Alpes, uma cordilheira que protege o norte do país. Passar por ali era uma loucura sem tamanho, mas deu certo. Jogando em casa, os romanos só apanharam. Na batalha do lago Trasimeno, Aníbal criou uma armadilha espetacular: escondeu sua tropa em depressões cobertas pela névoa e atacou de surpresa.
Cartagineses


Os romanos refugiaram-se nas montanhas, de onde passaram a fazer uma guerra de desgaste, com ataques a batalhões isolados e a grupos responsáveis pelo suprimento de armas e alimento. Os cartagineses dominavam a região, mas decidiram não avançar até Roma. Esse foi o maior erro de Aníbal: não destruir o império enquanto podia. O problema é que o general de Cartago era um cavalheiro. Naquela época, o reino que perdesse grandes batalhas tinha a obrigação de aceitar a derrota definitiva. Só que Roma era teimosa.
Teimosa mesmo. Além de não pedir trégua, ainda tentou reagir de novo, desta vez na região de Canas. Foi mais uma humilhação: Aníbal organizou as tropas para que o sol que nascia atrás de seus homens atrapalhasse a visão dos inimigos. Fez mais. Agrupou a infantaria mais fraca no meio, com uma poderosa cavalaria ao redor. No começo, os romanos pareciam ganhar fácil. Foi aí que caíram na armadilha de Aníbal: o centro cartaginês recuou, enquanto a cavalaria começou a atacar. Prensados uns contra os outros, os romanos mal conseguiam sacar as espadas. Foi um massacre.

Aníbal
E quem disse que os romanos desistiram? Com muita paciência e força de vontade, eles aproveitaram o cansaço das tropas adversárias para retomar a Sicília e o resto da Itália. Foi aí que entrou em cena o general romano Cipião. Primeiro ele atacou de surpresa a Espanha, onde estavam as bases do inimigo. Depois foi direto para Cartago. Aníbal teve de abandonar a Itália para defender sua terra. Esse lance final da guerra começou em 204 a.C. e terminou dois anos depois, com a batalha de Zamma, a primeira derrota de Aníbal. Então, Roma obrigou Cartago a destruir todos os seus navios de guerra.

Golpe de misericórdia

Mesmo sem marinha nem controle do Mediterrâneo, Cartago começou a se recuperar lentamente. Mas Roma estava de olho. Sem esperar que os africanos pisassem na bola e dessem pretexto para outra guerra, os romanos começaram a Terceira Guerra Púnica. Cartago fechou suas muralhas, construiu armas e resistiu heroicamente durante quatro anos. Depois de lutar casa a casa, sua população percebeu que seria vencida e decidiu atear fogo à cidade. Os romanos tomaram a fortaleza e jogaram sal no chão, para que nada mais fosse cultivado. Os sobreviventes foram vendidos como escravos, e Cartago virou uma pequena província, menor ainda do que Roma era no começo desta história.

Coisas de filme - Roma e Cartago usaram estratégias bem esquisitas


Navios com pranchas

Os barcos dos romanos tinham ganchos que se prendiam nas embarcações inimigas e pranchas de madeira que facilitavam a invasão.

Artilharia pesada

Os cartagineses levavam homens armados nas costas de elefantes, que funcionavam como tanques de guerra. Para o inimigo, era assustador.


Batalha dos cartagineses
Mulheres carecas

Durante a terceira guerra, todas as damas de Cartago rasparam a cabeça e doaram os cabelos, que foram usados como cordas em armas de arremesso.

Para saber mais

• História de Roma, M. Rostovtzeff, Zahar Editores, 1977. Conta a história completa do império romano. Tem 11 páginas dedicadas às Guerras Púnicas



Festa em Roma: os banquetes e as orgias

Banquete costumava acabar em orgia

por Fabiano Onça


Banquetes e orgias (Saturnália)


Quanto maior o império, maiores as festas que a nobreza e os aristocratas ofereciam. O que dizer sobre o Império Romano, um dos maiores de todos os tempos? Tamanho era o gosto deles por jantares luxuosos e festas, que costumavam evoluir para orgias, que alguns políticos resolveram a baixar leis para moderar a farra. Uma delas, a Antia Lex, do século 1, limitava os gastos com essas comemorações e instituía que os magistrados só poderiam jantar fora se fosse na casa de determinadas pessoas. Claro, ninguém obedeceu. Acabou sobrando para o autor, Antius Resto. Segundo o filósofo Macrobius, como todos continuavam com suas orgias, para não contrariar a própria lei ele nunca mais foi visto jantando fora.

Outro bom exemplo da paixão romana pelos banquetes é personificado por Marcus Gavius Apicius. Amante da boa vida, gastava verdadeiras fortunas em seus jantares. Entre suas extravagâncias, adorava língua de flamingo e nunca servia couve – chegou a dizer ao filho do imperador Tibério que era “comida de pobre”.

A melhor forma de demonstrar poder era oferecer jantares - Vai rolar a festa

Culinária romana

Um aristocrata podia medir seu prestígio com o número de jantares e festas ao qual era convidado. Ser convidado para os jantares certos, como os organizados pelo general Lucius Lucullus (110-56 a.C.), também era uma honra. Melhor que isso, só mesmo oferecer o jantar.

Traje a rigor

Trajes romanos

Vestir a toga era um privilégio masculino que escravos ou mulheres não usufruíam. Elas vestiam a stola, vestido de linho recoberto com a palla, um manto. Outras maneiras de elas ostentarem: penteados inusitados e jóias, muitas jóias.

Paladar exótico

Um bom festim chegava a ter sete pratos. Na abertura, peixes, ostras marinadas e pratos exóticos, como línguas de passarinho (uma porção tinha cerca de mil). O prato principal era uma carne. E as sobremesas eram frutas ou tortas feitas à base de geléia e mel.

Sem indigestão

O mais marcante no salão eram os tricliniuns, leitos com encosto para comer e beber – só pobres e escravos comiam sentados. Quem queria realmente esbanjar utilizava pratos de porcelana vindos da China.

Dança erótica

Além da lira, a música era tocada com chitara e tambores vindos do Egito ou castanholas da Espanha. Com ela, a orgia também começava. O cordax, por exemplo, era uma dança grega, altamente erótica, que despertava as paixões.

Prato principal: escravos

Quanto mais escravos, melhor. Eles serviam para trocar os potes de água quente para os convidados limparem as mãos, espantar moscas ou como objeto sexual. Luxo era designar que alguns com uma tocha levassem os convidados para casa.
Cardapius tipicus - Iguarias exóticas constavam do menu de uma típica festa romana






Entradas

• Mariscos e ovos
• Mamas de porco recheadas com ouriços-do-mar salgados
• Pasta de miolos com leite e ovos
• Cogumelos cozidos com molho de peixe gordo apimentado

Pratos principais

• Gamo selvagem assado com molho de cebola, arruda, tâmara de Jericó, uva passa, azeite e mel
• Outras cozidas com molho doce
• Flamingo cozido com tâmaras

Sobremesas

• Fricassê de rosas em pastel
• Tâmaras secas recheadas com nozes e pinhões, cozidas em mel
• Bolos quentes africanos de vinho doce com mel
• Frutas

A infância em Roma, não tão distante de nós

por Pedro Paulo Funari*




Será que os romanos, quando crianças, tinham brinquedos? Só a pergunta já mostra como nossas idéias sobre os romanos costumam ser um tanto exageradas, como se eles quase nem fossem seres humanos. Parece, às vezes, que já nasciam adultos e que todos eram sanguinolentos e brutais. Não é nada disso, naturalmente. Mas é verdade que cada sociedade possui regras de convivência próprias e que podem nos parecer estranhas, embora tenham sua explicação. Como viviam as crianças romanas? Não é fácil responder a essa pergunta, menos ainda no que se refere às classes baixas, cujos vestígios são menos numerosos.

Por isso, vamos ver como era a vida infantil na elite, ou antes mesmo disso, como os romanos programavam a gravidez. Era possível “programar”? Em termos, sim. As mulheres da elite que amamentavam seus filhos o faziam por até três anos, o que retarda a retomada da ovulação. Mas havia métodos mais drásticos, que visavam permitir que a criança já nascida não sofresse a concorrência de um irmão, o que aumentava a chance de sobrevivência. Era permitido o infanticídio e a chamada “exposição da criança”, que nada mais era do que dá-la a alguém ou mesmo criá-la como escrava. Havia dois motivos principais que justificavam essas práticas: que a criança fosse defeituosa ou que o pai não a reconhecesse como seu filho. Os romanos diziam que “a mãe é certa, o pai incerto” e, por isso, cabia ao pai reconhecer o filho como seu. Mas havia meios mais prosaicos de controlar a gravidez, como o bom e velho “coito interrompido”. Segundo fontes antigas, eram as mulheres que controlavam a interrupção (o que mostra que as romanas não eram tão passivas como se pensa).

Casamento romano


O objetivo do casamento era ter filhos e filhos que sobrevivessem, daí, em grande parte, a preocupação com que o intervalo entre eles fosse muito pequeno. A mortalidade infantil era muito alta, como em todas as sociedades até tempos muito recentes, pois apenas a medicina moderna permitiu que morressem menos bebês e mães. Era também muito comum que as crianças perdessem a mãe ou o pai muito cedo, já que a perspectiva de vida dos adultos não era também lá muito alta. Isso significa que as crianças dependiam também de outras pessoas, o que contribuía para que o conceito de “família” fosse diferente do nosso. A família romana não estava restrita a pais e filhos, mas envolvia outros parentes e até escravos libertos. Quando o pai morria, era sua família que se encarregava de cuidar do menino até os 14 anos e da menina até 12 anos.

Nas classes altas, havia tutores que ensinavam as crianças em grego e latim, de modo que eram, desde pequenas, bilíngües. Alguns dizem que, como as amas da elite eram gregas, os romanos expressavam seus sentimentos em grego, na linguagem que haviam aprendido com as amas. Mesmo entre pobres, era essencial aprender os rudimentos da escrita.

Rômulo e Remo - fundadores míticos de Roma



Como era o dia-a-dia de uma criança romana? Bem, tudo depende da classe social. No geral, a educação primária começava aos 6 ou 7 anos de idade. Se fosse rica, teria um tutor. Se pobre, iria a uma escola, na qual havia um só professor, em geral em um aposento no centro da cidade, perto de lojas. Na escola, usavam tabuinhas de cera e canetas (chamadas stylus) para aprender a calcular (com a dificuldade de fazer isso com os algarismos romanos) e decorar poesias. Ao meio-dia, saíam para almoçar e voltavam à tarde. Entre as brincadeiras, a mais comum era o par-ou-ímpar (chamada “par ímpar!”), jogada com nozes ou pedrinhas. Havia também brinquedos como carrinhos puxados a cavalo, bonecos de animais ou bonecas feitas de osso ou pano.

Era uma outra infância, mas as crianças tinham também suas atividades e brincadeiras. Nas paredes da cidade de Pompéia, soterrada e preservada pela erupção do vulcão Vesúvio, no ano 79, ainda encontramos grafites escritos pelos alunos. Um deles nos diz que “se para você dói decorar Cícero, tomará uma pancada do professor”. Outra infância, mas não tão distante de nós.

*Professor de História Antiga da UNICAMP e autor de a vida quotidiana na roma antiga (annablume)

Fonte: Aventuras na História
Imagens: Internet