quarta-feira, 19 de novembro de 2008

MEU LIVRO DE CABECEIRA




O que é mesmo um livro de cabeceira? O que lemos antes de dormir? Nesse caso, eu não possuo nenhum, pois não gosto de livros no quarto, nem tenho o hábito de ler à noite. Sempre vi os livros como entidades vivas, pulsantes, cheias de peripécias. Temo que os personagens saiam das páginas, movimentem-se fora das frases em que foram urdidos, e perturbem o meu sono. Não os quero nem na porta do meu quarto. Já bastam as impressões que os seus autores deixam em mim, nem sempre agradáveis. Por isso não leio à noite, nem vejo filmes, e até evito o teatro. "A noite fez-se para dormir", diz um personagem de Garcia Lorca.
Qual seria esse livro de cabeceira que sem freqüentar o meu quarto, sempre esteve ao meu lado? Que livro se confunde comigo a ponto de eu misturar os seus personagens com a minha existência? Sem dúvida, uma velha "História Sagrada", que nada mais é do que uma seleta de textos da "Bíblia" hebraica, solenemente apresentada em dois subtítulos: Antigo Testamento e Novo Testamento. Não sei se minha memória confundiu-se ou se os dois volumes eram mesmo ilustrados por Gustave Doré, o ilustrador da "Divina Comédia", do "Dom Quixote", dos "Contos de Perrault", das "Aventuras do Barão de Munchausen" e das "Fábulas de La Fontaine".
Minha mãe trouxera para o sertão essas duas preciosidades, guardadas como jóias num caixotezinho em que também se espremiam os livros de história, geografia, português, e aritmética, um resumido espólio de professora primária. No mundo sertanejo, os livros eram verdadeiras relíquias, a ponto de serem inventariados em testamentos, como as terras, os bois e as casas. De noite - nesse tempo eu lia à noite -, meu pai consertava arreios e celas, minha mãe tecia varandas para as redes, e eu, deitado no chão de tijoleiras, folheava os dois livros sagrados, à luz de uma lamparina. Ainda não emendava as letras em palavras, mas seduzia-me pelas gravuras de traços finos, em que predominavam os tons do preto, acentuando o fantástico. Possuía vagas idéias do que significavam. Instruído pela minha avó, soube da existência de um Cristo, o mesmo homem barbudo e de olhar sereno que ocupava a parede principal da nossa sala. No livro, ele aparecia carregando uma cruz, açoitado, caído ao chão. Tamanha barbaridade contra o pobre inocente merecia castigo. Os algozes não podiam ficar impunes e eu estava ali para exercer a justiça, embora tardia. Orientado por meu pai, impaciente com carretilha e sovela, identificava os homens cruéis. Vez por outra errava o culpado e castigava um apóstolo inocente.
- E esse? - perguntava.- Esse é ruim, pode matar.
Sem compaixão, eu molhava o dedo com cuspe e esfregava a figura do soldado até que não restasse sombra do facínora. E assim, dizimei legiões inteiras, num precoce aprendizado de leitura. Antecipei em muito as pedagogias modernas, os métodos de aprendizado em que se valoriza o tato, o olfato e o paladar.
A "Bíblia" tornou-se o meu livro de cabeceira, ou o mais visceral de todos os livros de que me aproximei. Alheio aos significados religiosos, aos cânones de judeus, católicos e protestantes, pude deliciar-me em sua vasta literatura, na poesia, na história, no mar de narrativas emendadas umas nas outras, como nas "Mil e uma Noites". Decifrando suas páginas, tive ciência da leitura e da escrita, que considero os mais elevados conhecimentos legados ao homem. Reconheci nas paragens bíblicas, os mesmos desertos de sertões nordestinos. Nos pastores de bois, carneiros e cabras, os meus familiares. Nas leis de hospitalidade e nos códigos de honra, as semelhanças sertanejas.
Um antepassado meu, vaqueiro e padre, um dos primeiros colonizadores do sertão cearense, amancebou-se com uma índia jucá e gerou doze filhos. Imaginei que todos nasceram homens, e que fundaram casas e descendências iguais às doze tribos de Israel. Se não foi assim, não tem importância, pois se escrevem os livros misturando realidade e mentira. Um psicanalista afirmaria que preenchemos com literatura o "buraco da falta", querendo dizer com isso que as certezas são fragmentárias, que nossa história pessoal é cheia de fabulação. De maneira bem mais simples, o poeta Pinto do Monteiro recitava:
"Eu só comparo esta vida / à curva da letra 's'/ tem uma ponta que sobe / tem outra ponta que desce / e a volta que dá no meio / nem todo mundo conhece". "A volta que dá no meio", seria o "buraco da falta"?
A "Bíblia", um livro possível de se ler de todas as maneiras, é o lastro de histórias a que podemos recorrer sem credo religioso ou com fé religiosa. Inesgotável, possui as imagens dos sonhos, a épica, a tragédia, a poesia, a sabedoria, a invenção, a genealogia, a retórica e os números. Livro que contém todos os livros. Merece ser lido como eu o lia na infância, imaginando-o escrito pelo povo sertanejo, pessoas como o meu pai ateu e o meu tio procriador, que povoaram as terras cearenses de gado, homens e mulheres, num novo Gênese.

Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.