segunda-feira, 2 de março de 2009

Lenço no pescoço, samba no bolso
Wilson Batista X Noel Rosa


Adepto da malandragem, Wilson Batista inscreveu seu nome no samba com muitas composições e uma famosa polêmica

Valdemar Valente Júnior


“Samba é como meretriz: de quem pagar mais”. Wilson Batista definia sua atividade sem meias palavras, admitindo a venda da autoria de seus sambas quando a situação apertava e ele ficava sem nenhum. E embora tenha sido um dos mais produtivos compositores do país, com mais de 700 canções, o pagamento nunca esteve à altura de sua arte. Viveu para a malandragem e morreu sem nada.

Desde pequeno, em Campos, sua cidade natal, no norte fluminense, Wilson já demonstrava versatilidade musical: compunha, tocava triângulo na banda Lira de Apolo e criava paródias de músicas conhecidas para o Bando Corbeille de Flores, do qual também era integrante. Tinha 16 anos quando se mudou com a família para o Rio de Janeiro, em 1929. Sua vida mudaria rapidamente.

Pouco dado ao trabalho e aos estudos, resolveu morar sozinho perto do bairro da Lapa, reduto de músicos e boêmios, passando a freqüentar as rodas nos bares e cafés do Largo da Lapa e da Praça Tiradentes. O teatro de revista era a principal vitrine musical de uma época em que o rádio ainda não tinha se firmado como canal de comunicação urbana, e para se aproximar do meio artístico, Wilson arranjou bicos como contra-regra e iluminador dos espetáculos. Foi assim que fez chegar à cantora Araci Cortes (1904-1985) o primeiro samba que compôs, “Na estrada da vida”. Era ainda 1929 quando ela apresentou ao público os versos “Todo homem carrega a sua cruz/ Na estrada da vida que é longa e sem luz”.

Da estreia no teatro de revista decorreu a gravação, em 1932, de "por favor, vá embora" (parceria com Benedito Lacerda), cantada por Patrício Teixeira. No ano seguinte, Wilson Batista entrou numa polêmica que se tornou histórica, envolvendo outro grande nome da música: Noel Rosa.


No samba "Lenço no pescoço", gravado por Sílvio Caldas, Wilson axalta a condição de malandro: "Eu tenho orgulho/ em ser tão vadio/ sei que eles falam/ deste meu proceder/ eu vejo quem trabalha/ andar no miserê". Em resposta, Noel Rosa compõe "Rapaz folgado": "Malandro é palavra derrotista/ que só serve para tirar/ todo o valor do sambista". A tréplica veio com "Mocinho da Vila", uma clara referência ao desafeto: "Você é mocinho da Vila (...) injusto é seu comentário/ fala de malandro/ quem é otário".


Daí se seguiu uma aparente trégua entre os compositores, mas ela só durou até 1935, quando "Feitiço da Vila" reacendeu na questão. Não pela letra original, um dos muitos sambas a exaltar um bairro da cidade, mas pelas provocações de Noel durante improvisos feitos no "Programa Casé", veiculado pela rádio Philips. O samba original ganhou os seguintes versos: "A zona mais traquila/ é a nossa Vila/ o berço dos folgados/ não há um cadeado no portão/ porque na Vila/ não há ladrão". A paródia teria a ver com a vida pessoal de Wilson, que havia sido preso várias vezes por furto e por vadiagem. Comenta-se no meio musical que Noel preparava uma série de novos sambas pondo lenha na fogueira. O revide de Wilson Batista veio no ato, com "Conversa fiada": "É conversa fiada/ dizerem que samba/ na Vila tem feitiço (...) antes de irem dormir/ deem duas voltas no cadeado".
A irritação de Noel não tardou a se manifestar. Em 1936, Araci de Almeida gravou seu bombástico "Palpite infeliz": "Pra que ligar a quem não sabe/ aonde tem o seu nariz?/ quem é você que não sabe o que diz?" Wilson ainda compôs dois sambas que ficaram sem resposta. Em "Frankenstein da Vila", referia-se ao defeito físico de Noel, uma deformação no queixo provocada no parto: "Boa impressão nunca se tem/ quando se encontra um certo alguém/ que até parece o Frankenstein".

E em "Terra de cego" ironizava a melhor condição social do "Poeta da Vila": "Perde a mania de bamba/ todos sabem qual é/ o tem diploma no samba".

Algum tempo depois, no restaurante O Leitão, na Lapa, os dois fizeram as pazes. Como era de se esperar, o encontro também deu um samba: Noel pôs letra nova na melodia de "Terra de cego", que passou a se chamar "Deixa de ser convencida".

Vítima de tuberculose, Noel morreu em maio de 1937, meses antes da entrada em vigor do Estado Novo de Getúlio Vargas. O regime promoveu uma intensa propaganda do trabalhismo, investindo na formação de um proletariado ordeiro e tutelado, numa espécie de imagem digna da pobreza. As referências à malandragem, até então vistas com certa tolerância, passam a ser censuradas com rigor. Nesta situação, por questões de sobrevivência, o malandro provisoriamente "se regenera".

Até mesmo Wilson Batista, defensor convicto da malandragem, se rende ao ambiente da época e, em samba, ressalta a importância do trabalho. Em 1941 ele compõe, com Ataulfo Alves, "O bonde São Januário", sucesso de carnaval: "Quem trabalha é que trem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ o bonde São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar".

Os valores tradicionais da família também passaram a ser louvados pelo agora bem-comportado mundo do samba. O maior sucesso de Wilson Batista até então trata exatamente disso: em "Oh, seu Oscar" (1940) um marido abandonado se lamenta: "Fiz tudo para ver seu bem-estar/ até no cais do porto eu fui parar/ martirizando meu corpo noite e dia". E a figura do chefe de família responsável aparecerá em várias outras composições, como "Ganha-se pouco, mas é divertido" (1941), "Boa companheira" e "Emília", ambos de 1942;

Os anos difíceis da Segunda Guerra Mundial - especialmente com a entrada do Brasil no conflito em 1944 - deram origem a sambas primorosos. A figura do sambista Laurindo, personagem fictício que aparece pela primeira vez no samba "Triste cuíca", de Noel Rosa e Hervê Cordovil, é recuperada como herói de guerra em "Lá em Mangueira", "Comício em Mangueira" e "Cabo Laurindo": "Laurindo voltou coberto de glória/ trazendo garboso no peito/ a cruz da vitória".

O malandro torna-se "chefe de família" em 1945, ao casar-se com Marina. Era uma jovem baiana que ele conhecera num baile de carnaval. Desde o namoro, a musa inspiradora já lhe rendia belos sambas, como "Lealdade" - "Serei , serei leal contigo/ quado eu cansar dos teus beijos, te digo" - e "E o 56 não veio" - "Será que ela não veio porque se zangou?/ ou o bonde Alegria descarilou?" O nome do bonde não era licença poética. Quando os namorados brigavam, Marina deixava de ir ao seu encontro na Central do Brasil e pegava uma condução que passava pelo cais do porto, percurso diferente do Alegria, linha 56. Os quatro anos de casamento coinscidiram com algumas da melhores composições de Wilson, como "Louco" (ela é seu mundo) e "Vulto".

A parceria com o compositor e caricaturista Nássara (1910-1996) foi outra fonte de sucesso. Emplacaram as marchas "Balzaquina" (1950) e "Sereia de Copacabana" (1951) e o samba "Mundo de zinco" (1952). Quando o cantor Francisco Alves morreu num acidente de carro em 1952, recebeu da dupla uma homenagem comovente - em "Chico Viola", Wilson aproveita para mostrar que seu antigo desafeto, Noel Rosa, também tinha lugar de honra na memória do samba: "Na voz do plangente violão/ ele deixou seu coração/ partiu, disse adeus/ foi pro céu/ foi fazer, foi fazer/ companhia a Noel".

Com a chegada da Bossa Nova e, mais tarde, da Jovem Guarda, Wilson Batista tornou-se um compositor fora de moda. Para piorar, sua saúde era precária. Com problemas cardíacos e uma infiltração pulmonar, era uma pálida lembrança do homem elegante de outros tempos, sempre vestido de terno azul-marinho ou branco e camisa de seda.O consumo de drogas agravava ainda mais seu estado. A aparência dizia tudo: olheiras profundas, rosto magro e barba por fazer.

Viveu seus últimos anos na mais absoluta miséria. Quem o conhecia se cansara de "levar mordidas" de dinheiro emprestado que nunca voltava. Wilson vendia seus sambas por qualquer preço, especialmente para Jorge de Castro, contraventor do jogo de bicho. Foi despejado do apartamento onde morava, na Rua Senador Dantas, por falta de pagamento.

Wilson Batista morreu numa enfermaria coletiva do Hospital Souza Aguiar no dia 07 de julho de 1968, quatro dias depois de completar 55 anos. A seu pedido, foi providenciado um smocking, pois queria ir para o outro mundo em traje de gala. Seu corpo foi enterrado ao anoitecer, em homenagem a quem amou a noite.

Deixou um sofá, uma geladeira, uma vitrola, um gravador, um caderno com letras de músicas e alguns troféus. Mas seu maior legado não tem preço: as composições e a malandragem que ele eternizou no imaginário carioca.

(* Publicado na Revista de "História da Biblioteca Nacional', Ano 4/ No. 41/Fevereiro de 2009).

Sobre o autor:


Valdemar Ferreira Valente Junior


  1. . Doutor e Mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Bacharel em Letras pela UFRJ;

. Professor do Curso de Graduação em Letras da Centro Universitário da Cidade - UniverCidade/RJ;

. Professor do Curso de Graduação em Letras da Universidade Castelo Branco/RJ.

Outras publicações:



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Tempo de amar (Resenha)



Romance de transição, Tempo de amar situa-se como marco divisório, sendo que, com seu aparecimento, Autran Dourado consolida-se como um dos mais expressivos e inovadores autores da ficção brasileira contemporânea. O modelo de sociedade patriarcal mineira e o descompasso de vida de Ismael, o menino e o homem, são o pano de fundo responsável pela tensão narrativa de Tempo de amar, de Autran Dourado, romance publicado em 1952, reeditado pela Rocco, em 2004. O retorno do convento, para onde fora ainda criança, coincide com a dificuldade do rapaz culto em lidar com o mundo do trabalho, representado pela frustração de Bento, seu pai, comerciante sem horizontes, que vê no filho a realização do que não fora.A opressão do pai, aliada à memória de um passado de medo e conformismo, reforça em Ismael, o jovem alheio, ao lado de Paula, a namorada triste e sonhadora, o desejo de fugir de Cercado Velho, para bem longe construírem um mundo de liberdade. Narrado em terceira pessoa, Tempo de amar oscila entre o presente e a memória. A figura autoritária do avô Elpídio, o retorno da tia Evangelina, a submissão da avó Ritota e a morte da irmã Ursulina pertencem a um passado que se junta ao presente da doença de Celeste, sua mãe, e das discussões com o pai, contrário ao desejo do filho em seguir um caminho original ante a vida restrita em Cercado Velho. A família, a casa, tudo enfim, são para Ismael a representação de uma morte lenta e anunciada. A realidade grotesca não tem qualquer semelhança com os sonhos que cultiva desde a infância. Depois de claudicar por momentos, acaba por aceitar o emprego no cartório e reelabora o plano de fugir com Paula. Por fim, entre o assassinato de seu Tinoco por Gonçalo, o amor da prima Tarsila e a gravidez de Paula, que deixa Cercado Velho, Ismael desiste de partir, acomodando-se ao emprego no cartório e às limitações da vida provinciana.

http://www.univercidade.edu/uc/ci/dicaslivros/l_tempo_amar.htm