segunda-feira, 30 de março de 2009

LONGE DAQUI
* Luíz Horácio Rodrigues



Paciente leitor. Quantas vezes você já se deparou com a história de personagem que empreende determinada jornada, pouco importa o motivo, e nessa caminhada encontra uma miríade de tipos esquisitos, exóticos, estranhos, bizarros? Quantas? Tudo isso! Não, cinema não vale, fiquemos apenas com a literatura. Pois é, mesmo assim é uma fartura e tanto.

Longe daqui, livro da americana Amy Bloom, grosso modo, é isso. Ao examinarmos detidamente duvido que você, criterioso leitor, não chegue a essa mesma conclusão.
Cenário: Estados Unidos, década de 1920.



Trama:Lilian Leyb, abandona a Rússia depois de ver sua família-pai, marido e filha- massacrada. Parte em direção a América, de onde sempre lhe chegaram histórias livres de miséria, desembarca em Nova York e percebe que a realidade não tem muito a ver com o que escutara. O paraíso ainda estava um pouco além. Afora as dificuldades para conseguir emprego decente e os obstáculos da estranheza da língua, Lilian era constantemente atormentada pelas lembranças da filha Sophie. Até o dia em que recebe a visita da prima Raisele trazendo a notícia que sua filha não está morta. Fora salva por um casal vizinho e levada para a Sibéria. Lilian decidi partir ao encontro de Sophie. Reencontra a realidade de sofrimentos, com a qual já tinha considerável intimidade.

O paraíso mudara de endereço, Sibéria.


Antes de iniciar a viagem de volta Lilian passa por situações trágicas, patéticas,engraçadas, experimenta de tudo. Tais episódios são na verdade protagonizados pelos coadjuvantes que no transcorrer da trama invertem os papéis e o leitor, avesso a monotonia, aguarda a aparição dos personagens “esquisitos” que manterão o insistente Morpheu longe de sua poltrona, persistente leitor.

A cena inicial lembra o início de um sem números de filmes de faroeste onde malfeitores atacam a propriedade, o rancho, de pacato cidadão, antes de matar sua mulher e filha, abusam sexualmente de ambas, em seguida queimam tudo. Quando o homem retorna, geralmente ele está consertando uma cerca, se depara com a desgraceira. Pronto; nasce um justiceiro. Sai então à caça dos facínoras.
Pois bem, cinéfilo leitor, Longe daqui é o mais puro de já-vu, literário, cinematográfico, o que preferirem.

Trata-se de uma singela literatura popular e não há nada de nobre nisso, nós que costumamos massacrar Paulo Coelho, devíamos prestar a devida atenção ao que nos chega de além oceano.“E perdida ali, uma pena dourada numa terra muito, muito estrangeira. Sempre foi assim: os melhores grupos são constituídos por pessoas cheias de problemas.” Você acabou de ler a abertura de Longe daqui. Pena dourada!!!!!!!! Nem nosso mago mor alcançou tamanho requinte. Além de não acrescentar a mais módica pitada de consistência ao nosso panorama literário ainda impedem a edição de autores tupiniquins. É de chorar.

Mas não desanime, caro leitor, pegue seu exemplar e continue em busca de argumentos que “me derrubem.” Tentarei dar uma mão.

Voltando à trama. Lilian chega a Nova York, traz algumas frases decoradas, em inglês, que utiliza conforme a situação. “Muito bem, obrigada”, em caso de a pergunta contemplar sua saúde. Ao perceber na indagação as palavras costurar, traje ou trabalho; a resposta memorizada será “Sou costureira -meu pai era alfaiate”. Em situações onde não entenda o questionamento apelar para “Frequento a escola à noite.”



Sem muito esforço, Lilian consegue a vaga.Passa a trabalhar como costureira num pequeno teatro. Acaba se envolvendo com o ator principal da companhia, Meyer Burstein.O rapaz, no entanto, se amarra em rapazes e costuma frequentar ambientes pouco recomendáveis onde deixa fluir seus anseios homossexuais; “buracos” entre bancos e arbustos de parques são os cenários preferidos. Lilian também divide sua cama com o pai de Meyer, o senhor Reuben.


Mas permitam voltar à fila do emprego, antes de Lilian conseguir o trabalho de costureira.

A autora descreve o ambiente e uma gama de personagens “estranhos” que se você, detalhista leitor, antever um circo não se condene. Lilian sorri para umas crianças e ao passar pelas mulheres que as acompanham sente que “elas fedem a azar.”
A seguir, de enrubescer o nosso mago. “Lilian tem sorte.Foi o que seu pai lhe disse; disse isso a todo mundo, depois que ela caiu no Pripiat duas vezes e não se afogou nem morreu de pneumonia. Disse que ser inteligente era bom (e Lilian era inteligente, afirmou ele), que ser bonita era útil (e Lilian era bastante bonita), mas ter sorte era melhor do que as duas coisas juntas. Esperava que ela tivesse sorte a vida inteira, e ela vinha tendo, até então. Ele também disse, você cria a sua própria sorte, e Lilian pega a mão de Judith, a única moça que conhece, abre caminho bem no meio da multidão e vai até a frente.”

Não estou a defender Paulo Coelho, mas a vilania deve ser devidamente fatiada.
Pois bem, enquanto o tempo de Lílian é dividido entre máquinas de costura e a cama que a acolhe os Burstein, ora o papai, ora o filho; e alguns pesadelos com a filha Sophie.

Transcorria nessa toada a vida da “sortuda” Lilian até que um belo dia, sem avisar, sua prima Raisele aparece trazendo a noticia de que Sophie vive.

Amy Bloom carrega a mão na descrição, a mesma mão pesada preenche com tintas graves os contornos do sentimentalismo; não bastasse o fato de colocar o leitor diante de uma mãe em desesperado ir e vir, num primeiro momento a procura de um sentido para refazer sua vida e a na seqüência a partida na tentativa de reencontrar a filha.

Pai e filho não dão a mínima importância a sua decisão, apenas Yaakov Shimmelman, ator e dramaturgo que acumula a função de alfaiate lhe concede ajuda. Ela costureira, ele alfaiate, se unem, costuram, psicanalistas, o prato está cheio.
Frase de Yaakov, sua mulher e seus filhos estão mortos: “- Antes - diz ele -, quando estava vivo, eu era um idiota.Agora sou o belo cadáver.Sou o cadáver que valsa.Você sabe.”

Ajudar Lilian será a última boa ação de Yaakov. “Depois que ela parte, ele pára de cantar no Royale, pára de cantar de implicar com Reuben, pára de debochar de Meyer. O cansaço de Reuben é o seu próprio, as mentiras de Meyer são as suas próprias, os crimes e os erros de julgamento do mundo são os seus próprios também. Ele estende toalhas na beirada da banheira, para o caso de espalhar água. Empurra a poltrona pesada , imprensando-a contra a porta da frente.Entra na banheira quente, tudo arrumado no tapete ao seu lado, e desta vez não há Reuben algum para pescá-lo dali.”
Atento leitor, está lembrado que falei de certos coadjuvantes que roubavam a cena?
Desse modo, sempre com bastante espaço ao melodrama, Lilian vai de trem até Chicago, com direito ao mundo cão de Seattle até alcançar o Alasca. Percebe-se a partir desse momento resquícios de tensão psicológica nesse vaudeville travestido de drama. Mas não se entusiasme, desgraças outras virão à tona, Amy exagera, torna a viagem de Lilian um pesadelo para o leitor. Recomenda-se não ler em viagens aéreas, aqueles saquinhos plásticos não darão conta do enjôo causado.

E Sophie ( que jamais saberá que foi adotada que sempre vai se lembrar de Lilian como a prima sorridente de cabelos escuros que lhe deu um cachecol de lã azul)estava lá.

Sophie é o coração da vida de Rivka Pinsky; ela é a jóia de sua mãe, escondida e imerecida.Cresce como Tatiana Bugayenko, uma atéia, uma Pioneira Vermelha.....
Paciente leitor, você tem em mãos Longe daqui uma salada russa temperada com homossexualismo, desgraça, judaísmo, ateísmo, perseverança, uma personalidade opaca, sonhos, pesadelos. Decida-se pelo tema, ande até sua estante, escolha um outro livro.
Aproveite seu tempo.

TRECHO

TODOS OS PECADOS COMEÇAM COM O MEDO, e Raisele está doente de medo; talvez tenha errado os cálculos, sua esplêndida aventura talvez termine antes mesmo de começar, talvez acabe apenas com uma fração daquilo que veio buscar. Raisele cai de joelhos, puxando para si a mão livre de Lilian.
-Sophie está viva - diz Raisele. - Ela está viva.
E depois desmaia.
Lilian põe Raisele na cama e esvazia a banheira.Não importa que Meyer ou Reuben venham esta noite, ou quando, ou qual dos dois, ou se vierem ao mesmo tempo, cara ou coroa, podem tê-la aos turnos no chão da cozinha.
Lilian se deita na cama ao lado de Raisele, que jogou a camisola no chão e dorme nua, enroscada do seu lado, os braços cruzados sobre o peito. Está quente como um forno. Lilian respira fundo para se acalmar, e sente o cheiro de sua mãe ao seu lado, suor e cebolas verdes e o odor queimado, lembrando nozes, de grãos de trigo sarraceno sendo jogado de um lado a outro da frigideira num arco marrom perfeito e indiferente. A cama subitamente se enche dos mortos de Lilian, e Raisele rola para o meio deles, e coloca as mãos nos ombros de Lilian. Diz em seu iídiche leve e ceceado, “Devo contar?” e conta, sem esperar.
Em sua maioria, as famílias fugiram para oeste, à exceção dos Pinsky. Os Pinsky cortaram caminho pelo quintal dos Krimberg, encaminhando-se para a estrada a leste (o que Raisele não diz é que deviam estar procurando por qualquer coisa que pudesse ter sido deixada para trás, procurando levar da casa de seus vizinhos quaisquer sobras que as outras pessoas não tivessem podido carregar). Encontraram um pequeno monte enlameado perto da casa de Lilian, junto aos degraus do galinheiro. O monte era Sophie, sangue e sujeira na barra da camisola, os pés salpicados de cascalho, e Mrs. Pinsky, que tinha enterrado três bebês, disse a Mr. Pinsky que os Leyb estavam todos mortos, que eles tinham que levar a criança consigo para a Sibéria e que não ia ouvir uma negativa. Kachikov, o policial, me contou tudo isso, diz Raisele.

AUTORA

Amy Bloom é autora de dois romances e dois livros de contos. Foi indicada ao National Book Award e ao National Book Critic Award e teve contos publicados em diversas antologias. Colaborou com revistas como a New York Times Magazine e a Atlantic Monthly,entre outras. Vive em Connecticut e leciona na Universidade de Yale.

* RESENHISTA
Luíz Horácio Pinto Rodrigues nasceu em 19 de maio de 1957, em Quaraí, RS. O pai, Alvorino Machado Rodrigues, de Dom Pedrito, e a mãe, Doralina Pinto Rodrigues, vinda do Uruguai, são influências constantes em sua memória e gratidão. Pai de três filhos, Pablo, Thamara e Luísa, e avô de Yago. Luíz Horácio morou por 16 anos no Rio de Janeiro, retornando a Porto Alegre em 2008. Professor de Literatura, escritor, autor dos romances "Perciliana e o pássaro com alma de cão"-ed.Conex e "Nenhum pássaro no céu"-Ed. Fábrica de Leitura, Coordenador do curso de Pós-Graduação latu-sensu Literatura-Produção literária, das Faculdades Monteiro Lobato-FATO-Porto Alegre.

sábado, 28 de março de 2009

Dom Hélder Câmara





Durante alguns anos cruzei com Dom Hélder Câmara, no bairro do Parque Amorim, no Recife. Nunca soube de onde vinha nem para onde ia. Era sempre nos finais de tarde. Ele usava uma batina surrada, de cor clara, pois não aderira à nova moda dos padres se vestirem à paisana. Eu o cumprimentava e ele me sorria, erguendo a mão. Acho que repetia um gesto de abençoar as pessoas.

Dom Hélder não me conhecia, mas tínhamos em comum a mesma origem cearense, o destino de buscar o Recife. Eu o conhecia muito e o admirava. Vê-lo caminhando sozinho e destemido pelas ruas, me enchia de esperança e coragem. Vivíamos tempos difíceis da ditadura militar e o arcebispo de Olinda e Recife dedicava sua vida a lutar pela justiça, pelos pobres e oprimidos. Aqueles também eram novos tempos de Evangelho, de prática da Teologia da Libertação.







Quando assassinaram o Padre Henrique, Dom Hélder escreveu uma homilia que circulou e foi lida nas igrejas, um discurso poético e de ousada coragem. Nos seus programas da Rádio Olinda, além de pregar a fé na Virgem Maria, sua grande devoção, ele falava de temas concretos, desse mundo real em que vivemos.

A residência oficial dos arcebispos de Olinda e Recife é no Palácio dos Manguinhos, no bairro das Graças. Dom Hélder preferia morar numa casinha minúscula, nos fundos da Igreja das Fronteiras, no Derby. Vivia sozinho, ou melhor, na companhia de Deus e da Virgem Maria. Foi na porta dessa casa que nos encontramos certa manhã e tivemos uma conversa ligeira, que me marcou profundamente.

Meu primeiro filho havia nascido e embora eu estivesse fora da Igreja Católica desde os dezesseis anos de idade, achei que devia batizá-lo. Eu só conhecia um modo de dar nome ao filho: o mesmo modo como me deram um nome no batismo. Qual o significado dessa escolha se eu me afastara voluntariamente da Igreja e de qualquer religião? Acho que ainda carregava fantasmas infantis, terrores de que se um bebê morre pagão, vai para o limbo, um lugar escuro e insalubre, triste e sem esperanças. A psicanálise e a ciência não me tinham curado.



Bati na porta de Dom Hélder. Ele mesmo me atendeu, a fisionomia cansada, os olhos de quem passou horas lendo. Tinha um livro na mão e marcava a página com os dedos. Convidou-me para entrar, mas agradeci, disse que não desejava incomodá-lo, que a conversa seria breve. De tanto vê-lo e ouvi-lo, me parecia próximo, quase íntimo. Senti vontade de pedir a bênção, pois sempre o julguei com o direito de abençoar. Esse gosto antigo eu não perdera ainda.


- Meu primeiro filho nasceu e estou pensando em batizá-lo - falei sem qualquer preâmbulo.

Ele esfregou os olhos e me encarou.


- Pensei em fazer o batismo aqui na sua igreja - completei no mesmo tom e pressa.

Dom Hélder sorriu e perguntou se eu era católico, se praticava o evangelho e se vivia no seio da comunidade religiosa. Respondi que não. Ele me disse que então não havia motivo para batizar a criança, que só se batiza um filho quando se deseja iniciá-lo na vida cristã. Senti-me um hipócrita, um fariseu. Falei que precisava de um ritual para dar o nome à criança. Ele me respondeu que o batismo não é uma celebração social e sim um compromisso de educar o filho nos princípios cristãos. Senti-me pior que um fariseu, um demônio logrado.

Compadecido de minha ignorância e perplexidade, sugeriu-me procurar a paróquia do bairro e batizar o menino no meio de todos os outros, num ritual comunitário. Eu havia corrido atrás de uma celebração particular, um batismo separado. Em suma, um equívoco.

Desculpei-me. Ele insistiu comigo para entrar na casa. Agradeci o conselho, fiz uma reverência e fui embora. Sempre acho que deveria ter pedido a bênção antes de me despedir.

Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify.Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim. Lançou recentemente, seu primeiro romance Galileia (2008) pela editora Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3641005-EI6788,00-Dom+Helder+Camara.html

quinta-feira, 12 de março de 2009

MINÚSCULOS ASSASSINATOS E ALGUNS COPOS DE LEITE




Parece mentira, mas não é difícil encontrar quem coloque a literatura na estante das coisas sublimes. Daí para definir que só pode merecer o título de escritor aquele ser que escreve nas madrugadas em companhia de álcool e fumo, é um passo; ou um parágrafo. O tal escritor tem que, acima de tudo, demonstrar que sofre, se acrescentar humor em seu texto não merecerá crédito. Será mais um metido a engraçadinho. E literatura, segundo a crescente horda que ainda pensa desse modo, não é cenário para humor. Pois bem, diante disso não é de espantar o preconceito com escritores oriundos dos blogs, afinal de contas esse pessoal costuma esbanjar bom humor.
Também não vou negar que, fruto dos blogs ou não, 99% do que é publicado não vale nada.


Dito isso vamos ao que de fato interessa, o livro de Fal Azevedo - minúsculos assassinatos e alguns copos de leite - convém lembrar que a autora mantém um dos mais visitados blogs. Como diria minha filha, preconceituoso leitor, "nada a ver." Nada a ver no que diz respeito a ser bom ou não, mas tudo a ver no que concerne à prática da escrita. Não importa onde "neguinho" pratique, se no blog, no papel, ou na areia do mar,mas preconceito está sempre na ordem do dia e narizes se torcerão ao saber que uma grande editora, a Rocco,apostou no talento da Fal. Ficha catalográfica:indicação editorial e preparação de originais Anna Buarque. Não sei se a Rocco quis lavar as mãos transferindo a responsabilidade ou se foi tamanha a certeza na qualidade que levou Anna a assumir essa aposta. Seja lá o que isso signifique parabéns ao olho "mágico" de Anna Buarque.

É isso mesmo, o livro é surpreendente, de fácil leitura, sem que isso signifique superficialidade, muito pelo contrário, o conteúdo é corrosivo, e pasme, você novamente preconceituoso leitor, conduz à reflexão. Esse é um dos tópicos a se avaliar a boa literatura, se conduz ou não à reflexão.

Alma, 44 anos, artista plástica, é a narradora de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite; esbanja sensibilidade e humor para tratar, acima de tudo, da morte. A morte além de uma presença; uma tentação. E essa relação da palavra com a morte é um dos aspectos mais valiosos nesse livro de Fal Azevedo. Alma perde a irmã, o pai,o padrasto, a filha, porém mais importante e significativo que a morte é o período seguinte, aquele que nos faz ansiar por uma volta no tempo. Ouça Alma, paciente leitor: "Quando minha filha nasceu , eu não gostava dela. Eu tinha 32 anos e não gostava de ninguém. Ela era feia e enrugada e chorava. Deus, como ela chorava. Eu não sabia o que fazer com ela nem como fazê-la parar de chorar. Eu não sabia como amá-la. Eu não a queria no meu colo.

Filha enterrada, novamente Alma com a palavra: "Se eu fui uma boa mãe? Eu fui a mãe que pude ser, que soube ser, não a que ela merecia, como todas as mães que conheço,quer elas admitam ou não. Não fiz o suficiente. Nunca. Eu poderia tê-la beijado mais, sido mais paciente, acordado mais cedo, lido mais histórias e brincado mais de casinha. Eu deveria ter sorrido mais e dado mais colo, ao invés de ter as minhas ressacas mal-humoradas todas as manhãs. Era minha obrigação fazer daquela menina uma menina feliz. Era minha obrigação fazer seu mundo mais seguro. E eu falhei."






O que nos resta após um sepultamento? No mais das vezes, a culpa.
Morte e culpa, convenhamos, não são ingredientes dos mais festivos. Não estivessem sob o talento de Fal Azevedo o produto na certa traria o perfume da amargura.
Alma é torturada pelas lembranças e a dualidade romanticonaturalista se faz notar ante as reflexões da narradora que deixa transparecer estar ciente de que a visão do ser humano há de ser sempre uma visão da crise. Sabe também que tanto causa como efeito de todas as tragédias dependem da ação do homem. E a lâmina dessa certeza fustiga Alma do inicio ao fim de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite.

A obra de Fal Azevedo permite refletir sobre variado conjunto de temas, estes vão do literário até o político;da valorização sensível e critica das coisas de um modo geral até uma consciência delicada e complexa a respeito da condição humana, constantemente a mercê da paixão.

Densa, bem humorada, tensa e sombria, sem que isso signifique depressiva, a narrativa de Fal Azevedo. A leitura de minúsculos assassinatos e alguns copos de leite é um passeio em noite de lua cheia com alguns relâmpagos, como os que seguem, onde pensamento e prosa se unem e beiram o aforismo.

"Meu pai se sentia tão desprotegido quanto um lobo sozinho. Freud teria adorado a família toda, isso sim."

"Vi o bebê no berçário, tive uma crise de choro, e disse que não queria morar com ela."

"Chorei até esquecer por que eu chorava.E daí, comecei a chorar de novo."
"Um dia eu vou fazer sentido."


"Os bárbaros não queriam destruir Roma, meu Deus do céu. Eles queriam ser romanos. E isso muda tudo."

Fal ouviu Pound: "sugerir o máximo dizendo o mínimo."


Impossível o leitor não se deixar invadir pela tristeza, uma tristeza de história em quadrinhos, uma tristeza inevitável, mas que na página seguinte poderá se transformar, não arrisco em alegria, mas em mansidão sem dúvida. A tristeza que Fal apresenta ao leitor não é de assustar, é nossa tristeza do dia a dia, a inevitável, desde que não se trate de um idiota ou quem sabe um débil mental.

Não se percebe o onírico na narrativa de Fal, mas a denúncia, a fantasia, a inquietação, as turbulências advindas do risco de tentar combater as situações comuns do nosso dia a dia. Fal Azevedo afronta o senso comum, se exige o riso, não tolera o riso excessivo nessa nossa interminável morte que é o viver.

A escritora paulista Fal Azevedo acaba de lançar novo livro, o romance Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite (Rocco, 2008), onde nos apresenta Alma, uma artista na casa dos quarenta anos que, imersa em correspondências, reconstrói momentos marcantes de seu passado. Blogueira, sempre ligada na rede, a também tradutora, professora e fã de bichos de estimação Fal Azevedo gentilmente abriu espaço em sua caixa postal para umas poucas perguntas do Amálgama sobre seus livros e influências, a internet e os caminhos para um escritor iniciante.



Resenha: Luíz Horácio - Jornalista, escritor, autor dos romances "Perciliana e o pássaro com alma de cão", ed. Conex e "Nenhum pássaro no céu"-ed. Fábrica de Leitura. Professor de Literatura, coordenador do curso de pós-graduação latu-sensu Literatura-produção literária, das Faculdades Monteiro Lobato-FATO-Porto Alegre.


sábado, 7 de março de 2009

HERANÇAS


Certos livros nos obrigam a lê-los camada a camada, pense numa cebola, imaginativo leitor. Outros nos forçam ao papel de taxidermista e aproveitamos apenas o invólucro.
Heranças, a obra mais recente de Silviano Santiago encerra as duas possibilidades acima.


Novamente a cebola, pele 1- velhice, pele 2-ambição,pele 3 -Machado de Assis, pele 4- cenas de uma Belo Horizonte provinciana, pele 5- cartão postal do Rio de Janeiro, pele 6-Shakespeare, pele 7-modernismo, pele 8-diário de um especulador, pele 9...
Walter, o cínico narrador de Heranças, vive num apartamento na avenida Vieira Souto no Rio de Janeiro e já preparou detalhe por detalhe o seu sepultamento em Botafogo, no cemitério São João Batista.

“Elegi a cidade, escolhi o cemitério.Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de Janeiro e ser enterrado no S. João Batista.”

Assim tem início Heranças, e esse início já daria pano para muitas mangas, querem ver?

Seria o Rio de Janeiro uma cidade adequada para velhos? Ou quem sabe, o cemitério do Brasil? Inclua no rol das camadas listadas acima, por favor.

De frente pro mar, antes a tela do computador, e de costas pro Brasil Walter,ora Quincas Borba, ora Dom Casmurro, apresenta ao leitor suas façanhas, resultado de um caráter pra lá de duvidoso.

Trata-se de um romance naturalista onde o autor parece fugir de seu passado de escritor. Nada a ver com Uma história de família, onde desejo e morte não dispensam o tom sentimental, ou o brilhantismo do inusitado em Stella Manhattan .

A cafajestice de Walter faz de Heranças uma ode ao reacionarismo. Sim, condescendente leitor, este aprendiz está ciente do risco de ser taxado de reacionário ao afirmar que o livro reacionário é reacionário.


Importante ressaltar que em tempos de predomínio da estética da favela, da marginalia, do operário sofrido, quer no cinema, quer na literatura, Silviano opta por um representante do topo da classificação social. Sim,paciente leitor, nossa terra tem palmeira, mas também tem a turma que acumula riquezas, nem todos são da linhagem de caráter do Walter, mas, em sua maioria, carregam farta parcela de culpa pela miséria crescente em qualquer cantão desse país.

Mas quem é Walter? Walter é parente de Jean Sibelius, personagem de um conto de Julian Barnes no livro Um toque de limão, dos velhos canalhas sedutores, personagens de Juan Claudio Lechin em seu abominável A gula do beija-flor.No trabalho de Lechin as maiores semelhanças com as atitudes de Walter onde o desprezo pela mulher se faz notar. Se no livro do boliviano a apologia do sexo livre de sentimentos é a tônica e se Santiago não chega a esse extremo, pois quando Walter abre a guarda é enganado; a ausência de escrúpulos induz abortos e a morte de uma mulher grávida.

O personagem de Silviano Santiago também tem um parentesco com o anão Gregório(também atende por Goyo, Goyto ou Gregori)de Maldita Morte- obra indispensável de Fernando Royuela, preste atenção. Assim como Walter, Goyo aguarda a morte.
Walter: “Confesso.Estive metido de maneira em nada circunstancial no acidente com o Chevrolet. Até a presente data, não tinha conseguido expressar por escrito o envolvimento. À noite, confiei raríssimas vezes palavras de culpa às paredes do quarto.” Sobre a morte da irmã.


Gregório: “Ao longo da minha vida, conheci múltiplos filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim.Meu irmão Tranquilino, no entanto, teve-a. Um trem de carga levou-lhe pela frente a primogenitura.”

Sobre a morte do irmão.
Em Heranças, a figura feminina é sinônimo de obstáculo. No entanto essa resistência não chega a influir no andamento dos planos de Walter, visto que dura pouco, a eliminação desse elemento complicador é uma questão de tempo. Pouco tempo.
Mas vamos a trama.


Walter está em eu apartamento na Vieira Souto, frente pro mar, na companhia de empregados e o indefectível uísque. Em seu computador escreve a sua história, misto de autobiografia e conversa com o leitor. Descreve suas façanhas, as do empresário bem sucedido e as do don Juan inescrupuloso. Lembram das camadas lá em cima? Pois bem, curioso leitor, você também ficará sabendo de detalhes sobre uma Belo Horizonte antiga, será apresentado a alguns pontos turísticos cariocas e sobretudo fará contato com um ser extremamente inescrupuloso, capaz de varrer a própria irmã da sua caminhada rumo a herança.

Sedutor , inescrupuloso, Walter gastou sua vida em marcha veloz rumo a seus objetivos. A velocidade não diminui jamais, não importa se com morte de pai, assassinato de irmã, abortos, Walter quer “chegar lá.” E chega. Utilizando métodos pouco ortodoxos, mas isso não passa de uma insignificância a esse canalha desprovido de charme e simpatia.

Com a morte do pai, a irmã herda o Armarinhos S. José , logo Walter trata de despachá-la, torna-se comerciante, na seqüência envereda pelos meandros da construção civil e para especular na bolsa de valores é um passo curto. Soube moldar-se às exigências dos anos JK, não encontrou dificuldades de adaptação ao período ditatorial e muito menos ao mercado de ações. Ser extremamente adaptável, termina a vida utilizando o computador para realizar seus investimentos e escrever a sua história. Excetuando-se o lucro, tudo o mais seria irrelevante. Inclusive os seres humanos que porventura significassem qualquer tipo de obstáculo nessa corrida rumo ao enriquecimento.

Inescrupuloso é o adjetivo que melhor se adapta a Walter, jovem freqüenta os prostíbulos de Belo Horizonte, no entanto não limita a profissionais suas incursões sexuais, empregadas domésticas em leitos pouco convencionais, os matagais, também engrossam sua lista de conquistas.

Também conserva o hábito de desvirginar moças, não tão recatadas, da sociedade mineira. Rico, sobram-lhe argumentos para demover todas reações a seu comportamento.

E assim caminha o humanismo de Walter, o milionário sedutor.
Infelizmente ele não está sozinho nessa cruzada que leva ao clube dos “bem sucedidos profissionalmente”, primorosamente Silviano Santiago faz uma critica corrosiva à sociedade e à economia em nosso país no período compreendido entre a batuta de JK e o pandeiro desafinado de Lula.


Se Maldita Morte é um romance desprovido de amor, o máximo que se pode identificar seria a sua intenção, no mais, eflúvios do desejo carnal e piedade, em Heranças o amor está presente, embora um amor maltratado.

Walter se apaixona três vezes e a tragédia acompanha o amor. A arquiteta Denise é abandonada. Marta, a guerrilheira, aproveita um vacilo de Walter e usa o “esperto” como instrumento para fugir à prisão e inevitável tortura. Logo mantém um romance com a advogada e milionária Graci. Esta não o inclui em seu inventário. Nem tudo foi exitoso nas tramas incansavelmente urdidas por Walter.

Das mulheres sofisticadas Walter suga-lhes o requinte e a cultura; a contrapartida se dá em forma de viagens. Rio de Janeiro na década de 60 , daí em diante Europa.
Numa de suas viagens, México, encontra a enfermeira Carmen, apaixona-se e como se diz “sossega o facho.” Para não quebrar a regra, chega o dia em que Carmen também é abandonada.


Uma questão sobressai. É aqui que entra Shakespeare, na necessidade de definir o herdeiro. Do mesmo modo que em Rei Lear, a escolha do herdeiro, quais critérios Walter utilizaria para definir o beneficiário, ele que conquistara dinheiro e mulheres? Como não tem descendentes a escolha recairá, de forma inusitada aparentando uma tentativa do autor de redimir personagem tão abjeta, sobre alguém sem laços sanguineos, mas que já “rondara” a família. Estamos diante do desfecho do livro e aí falou mais alto o moralismo, a mea culpa de Walter. Desandou.

Culto leitor, não ingresse no rol dos taxidermistas, é sempre uma possibilidade, ao tratar de Heranças, enverede pelas camadas, vista a pele de Walter e retire pele por pele conforme ele faz com as vestes de suas vitimas sexuais.Mas ao contrário dele, o faça com bastante amor.

TRECHO

A amizade é sempre pasto de velhas e novas carências. Quando os sentimentos familiares, amorosos e profissionais entram em dieta afetiva, o boi-memória se alimenta do capim-gordura no pasto das antigas camaradagens. Como aqueles sentimentos foram parcos na vida de homem solitário, notívago, mulherengo, globetrotter e milionário, os velhos amigos são mais do que o capim-gordura, que sacia a fome do boi-memória. Proporcionam a recuperação de energia vital pelos sete estômagos dos afetos, que ruminam as saudades dos tempos de menino e rapaz na cidade de Belo Horizonte, que cresce anarquicamente. São a força que me impeliu a imaginar - para nela querer acreditar - a inapelável existência da solidariedade no planeta Terra. Se quiser reconhecer a sim para além do espelho fixado nos azulejos coloridos acima do lavabo, o ser humano não pode renegar os olhos dos coleginhas de infância. Não são eles que lhe proporcionaram, e continuam a proporcionar a boa imagem de fora pra dentro?
Se os renegar, acabará por pedir socorro à religião. Levantará os olhos do espelho em direção a um deus todo-poderoso, esculpido em barro ou madeira, em letra impressa ou idéias.
- Vade retro!
Desde que optei pela solidão acompanhada, invoco com freqüência essa deusa demasiadamente humana, a que chamo de Amizade. Aos pés de seu altar, onde impera o rosto esculpido em legitima hematita mineira, ajoelho e rezo nos momentos sorumbáticos do dia ou da noite. A Amizade é uma espécie de pólo catalisador da sensação concreta e extraterrena de fraternidade.

O AUTOR
Silviano Santiago é escritor e critico literário. Por quatro vezes recebeu o Prêmio Jabuti nas categorias de romance e conto. Entre seus livros de ficção destacam-se Em liberdade, Stella Manhattan, Uma história de família, De cócoras, O falso mentiroso, os livros de contos Keith Jarrett no Blue Note e Histórias mal contadas, os ensaios Uma literatura nos trópicos, Nas malhas da letra e As raízes e o labirinto da América Latina.





Resenha: Luíz Horácio
Jornalista, escritor, autor dos romances "Perciliana e o pássaro com
alma de cão", ed. Conex e "Nenhum pássaro no céu"-ed. Fábrica de Leitura. Professor de Literatura, coordenador do curso de pós-graduação latu-sensu Literatura-produção literária, das Faculdades Monteiro Lobato-FATO-Porto Alegre.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Lenço no pescoço, samba no bolso
Wilson Batista X Noel Rosa


Adepto da malandragem, Wilson Batista inscreveu seu nome no samba com muitas composições e uma famosa polêmica

Valdemar Valente Júnior


“Samba é como meretriz: de quem pagar mais”. Wilson Batista definia sua atividade sem meias palavras, admitindo a venda da autoria de seus sambas quando a situação apertava e ele ficava sem nenhum. E embora tenha sido um dos mais produtivos compositores do país, com mais de 700 canções, o pagamento nunca esteve à altura de sua arte. Viveu para a malandragem e morreu sem nada.

Desde pequeno, em Campos, sua cidade natal, no norte fluminense, Wilson já demonstrava versatilidade musical: compunha, tocava triângulo na banda Lira de Apolo e criava paródias de músicas conhecidas para o Bando Corbeille de Flores, do qual também era integrante. Tinha 16 anos quando se mudou com a família para o Rio de Janeiro, em 1929. Sua vida mudaria rapidamente.

Pouco dado ao trabalho e aos estudos, resolveu morar sozinho perto do bairro da Lapa, reduto de músicos e boêmios, passando a freqüentar as rodas nos bares e cafés do Largo da Lapa e da Praça Tiradentes. O teatro de revista era a principal vitrine musical de uma época em que o rádio ainda não tinha se firmado como canal de comunicação urbana, e para se aproximar do meio artístico, Wilson arranjou bicos como contra-regra e iluminador dos espetáculos. Foi assim que fez chegar à cantora Araci Cortes (1904-1985) o primeiro samba que compôs, “Na estrada da vida”. Era ainda 1929 quando ela apresentou ao público os versos “Todo homem carrega a sua cruz/ Na estrada da vida que é longa e sem luz”.

Da estreia no teatro de revista decorreu a gravação, em 1932, de "por favor, vá embora" (parceria com Benedito Lacerda), cantada por Patrício Teixeira. No ano seguinte, Wilson Batista entrou numa polêmica que se tornou histórica, envolvendo outro grande nome da música: Noel Rosa.


No samba "Lenço no pescoço", gravado por Sílvio Caldas, Wilson axalta a condição de malandro: "Eu tenho orgulho/ em ser tão vadio/ sei que eles falam/ deste meu proceder/ eu vejo quem trabalha/ andar no miserê". Em resposta, Noel Rosa compõe "Rapaz folgado": "Malandro é palavra derrotista/ que só serve para tirar/ todo o valor do sambista". A tréplica veio com "Mocinho da Vila", uma clara referência ao desafeto: "Você é mocinho da Vila (...) injusto é seu comentário/ fala de malandro/ quem é otário".


Daí se seguiu uma aparente trégua entre os compositores, mas ela só durou até 1935, quando "Feitiço da Vila" reacendeu na questão. Não pela letra original, um dos muitos sambas a exaltar um bairro da cidade, mas pelas provocações de Noel durante improvisos feitos no "Programa Casé", veiculado pela rádio Philips. O samba original ganhou os seguintes versos: "A zona mais traquila/ é a nossa Vila/ o berço dos folgados/ não há um cadeado no portão/ porque na Vila/ não há ladrão". A paródia teria a ver com a vida pessoal de Wilson, que havia sido preso várias vezes por furto e por vadiagem. Comenta-se no meio musical que Noel preparava uma série de novos sambas pondo lenha na fogueira. O revide de Wilson Batista veio no ato, com "Conversa fiada": "É conversa fiada/ dizerem que samba/ na Vila tem feitiço (...) antes de irem dormir/ deem duas voltas no cadeado".
A irritação de Noel não tardou a se manifestar. Em 1936, Araci de Almeida gravou seu bombástico "Palpite infeliz": "Pra que ligar a quem não sabe/ aonde tem o seu nariz?/ quem é você que não sabe o que diz?" Wilson ainda compôs dois sambas que ficaram sem resposta. Em "Frankenstein da Vila", referia-se ao defeito físico de Noel, uma deformação no queixo provocada no parto: "Boa impressão nunca se tem/ quando se encontra um certo alguém/ que até parece o Frankenstein".

E em "Terra de cego" ironizava a melhor condição social do "Poeta da Vila": "Perde a mania de bamba/ todos sabem qual é/ o tem diploma no samba".

Algum tempo depois, no restaurante O Leitão, na Lapa, os dois fizeram as pazes. Como era de se esperar, o encontro também deu um samba: Noel pôs letra nova na melodia de "Terra de cego", que passou a se chamar "Deixa de ser convencida".

Vítima de tuberculose, Noel morreu em maio de 1937, meses antes da entrada em vigor do Estado Novo de Getúlio Vargas. O regime promoveu uma intensa propaganda do trabalhismo, investindo na formação de um proletariado ordeiro e tutelado, numa espécie de imagem digna da pobreza. As referências à malandragem, até então vistas com certa tolerância, passam a ser censuradas com rigor. Nesta situação, por questões de sobrevivência, o malandro provisoriamente "se regenera".

Até mesmo Wilson Batista, defensor convicto da malandragem, se rende ao ambiente da época e, em samba, ressalta a importância do trabalho. Em 1941 ele compõe, com Ataulfo Alves, "O bonde São Januário", sucesso de carnaval: "Quem trabalha é que trem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ o bonde São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar".

Os valores tradicionais da família também passaram a ser louvados pelo agora bem-comportado mundo do samba. O maior sucesso de Wilson Batista até então trata exatamente disso: em "Oh, seu Oscar" (1940) um marido abandonado se lamenta: "Fiz tudo para ver seu bem-estar/ até no cais do porto eu fui parar/ martirizando meu corpo noite e dia". E a figura do chefe de família responsável aparecerá em várias outras composições, como "Ganha-se pouco, mas é divertido" (1941), "Boa companheira" e "Emília", ambos de 1942;

Os anos difíceis da Segunda Guerra Mundial - especialmente com a entrada do Brasil no conflito em 1944 - deram origem a sambas primorosos. A figura do sambista Laurindo, personagem fictício que aparece pela primeira vez no samba "Triste cuíca", de Noel Rosa e Hervê Cordovil, é recuperada como herói de guerra em "Lá em Mangueira", "Comício em Mangueira" e "Cabo Laurindo": "Laurindo voltou coberto de glória/ trazendo garboso no peito/ a cruz da vitória".

O malandro torna-se "chefe de família" em 1945, ao casar-se com Marina. Era uma jovem baiana que ele conhecera num baile de carnaval. Desde o namoro, a musa inspiradora já lhe rendia belos sambas, como "Lealdade" - "Serei , serei leal contigo/ quado eu cansar dos teus beijos, te digo" - e "E o 56 não veio" - "Será que ela não veio porque se zangou?/ ou o bonde Alegria descarilou?" O nome do bonde não era licença poética. Quando os namorados brigavam, Marina deixava de ir ao seu encontro na Central do Brasil e pegava uma condução que passava pelo cais do porto, percurso diferente do Alegria, linha 56. Os quatro anos de casamento coinscidiram com algumas da melhores composições de Wilson, como "Louco" (ela é seu mundo) e "Vulto".

A parceria com o compositor e caricaturista Nássara (1910-1996) foi outra fonte de sucesso. Emplacaram as marchas "Balzaquina" (1950) e "Sereia de Copacabana" (1951) e o samba "Mundo de zinco" (1952). Quando o cantor Francisco Alves morreu num acidente de carro em 1952, recebeu da dupla uma homenagem comovente - em "Chico Viola", Wilson aproveita para mostrar que seu antigo desafeto, Noel Rosa, também tinha lugar de honra na memória do samba: "Na voz do plangente violão/ ele deixou seu coração/ partiu, disse adeus/ foi pro céu/ foi fazer, foi fazer/ companhia a Noel".

Com a chegada da Bossa Nova e, mais tarde, da Jovem Guarda, Wilson Batista tornou-se um compositor fora de moda. Para piorar, sua saúde era precária. Com problemas cardíacos e uma infiltração pulmonar, era uma pálida lembrança do homem elegante de outros tempos, sempre vestido de terno azul-marinho ou branco e camisa de seda.O consumo de drogas agravava ainda mais seu estado. A aparência dizia tudo: olheiras profundas, rosto magro e barba por fazer.

Viveu seus últimos anos na mais absoluta miséria. Quem o conhecia se cansara de "levar mordidas" de dinheiro emprestado que nunca voltava. Wilson vendia seus sambas por qualquer preço, especialmente para Jorge de Castro, contraventor do jogo de bicho. Foi despejado do apartamento onde morava, na Rua Senador Dantas, por falta de pagamento.

Wilson Batista morreu numa enfermaria coletiva do Hospital Souza Aguiar no dia 07 de julho de 1968, quatro dias depois de completar 55 anos. A seu pedido, foi providenciado um smocking, pois queria ir para o outro mundo em traje de gala. Seu corpo foi enterrado ao anoitecer, em homenagem a quem amou a noite.

Deixou um sofá, uma geladeira, uma vitrola, um gravador, um caderno com letras de músicas e alguns troféus. Mas seu maior legado não tem preço: as composições e a malandragem que ele eternizou no imaginário carioca.

(* Publicado na Revista de "História da Biblioteca Nacional', Ano 4/ No. 41/Fevereiro de 2009).

Sobre o autor:


Valdemar Ferreira Valente Junior


  1. . Doutor e Mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Bacharel em Letras pela UFRJ;

. Professor do Curso de Graduação em Letras da Centro Universitário da Cidade - UniverCidade/RJ;

. Professor do Curso de Graduação em Letras da Universidade Castelo Branco/RJ.

Outras publicações:



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Tempo de amar (Resenha)



Romance de transição, Tempo de amar situa-se como marco divisório, sendo que, com seu aparecimento, Autran Dourado consolida-se como um dos mais expressivos e inovadores autores da ficção brasileira contemporânea. O modelo de sociedade patriarcal mineira e o descompasso de vida de Ismael, o menino e o homem, são o pano de fundo responsável pela tensão narrativa de Tempo de amar, de Autran Dourado, romance publicado em 1952, reeditado pela Rocco, em 2004. O retorno do convento, para onde fora ainda criança, coincide com a dificuldade do rapaz culto em lidar com o mundo do trabalho, representado pela frustração de Bento, seu pai, comerciante sem horizontes, que vê no filho a realização do que não fora.A opressão do pai, aliada à memória de um passado de medo e conformismo, reforça em Ismael, o jovem alheio, ao lado de Paula, a namorada triste e sonhadora, o desejo de fugir de Cercado Velho, para bem longe construírem um mundo de liberdade. Narrado em terceira pessoa, Tempo de amar oscila entre o presente e a memória. A figura autoritária do avô Elpídio, o retorno da tia Evangelina, a submissão da avó Ritota e a morte da irmã Ursulina pertencem a um passado que se junta ao presente da doença de Celeste, sua mãe, e das discussões com o pai, contrário ao desejo do filho em seguir um caminho original ante a vida restrita em Cercado Velho. A família, a casa, tudo enfim, são para Ismael a representação de uma morte lenta e anunciada. A realidade grotesca não tem qualquer semelhança com os sonhos que cultiva desde a infância. Depois de claudicar por momentos, acaba por aceitar o emprego no cartório e reelabora o plano de fugir com Paula. Por fim, entre o assassinato de seu Tinoco por Gonçalo, o amor da prima Tarsila e a gravidez de Paula, que deixa Cercado Velho, Ismael desiste de partir, acomodando-se ao emprego no cartório e às limitações da vida provinciana.

http://www.univercidade.edu/uc/ci/dicaslivros/l_tempo_amar.htm