domingo, 6 de janeiro de 2013



CLAROS SUSSURROS DE CELESTES VENTOS


Por Luíz Horácio Rodrigues


Joel Rufino

Claros sussurros de celestes ventos, apresenta encontros fictícios entre escritores , Lima Barreto e Cruz e Sousa, por exemplo, além de encontros de seus personagens, a Olga, do Policarpo Quaresma, e a Núbia, de Broquéis. Vivem em outros tempos e outros cenários. Sets estranhos tanto a criadores quanto a criaturas, palcos onde atores e figurantes desfilam sob o mesmo status.





Cruz e Souza

Escrever sobre o encontro de Cruz e Souza com Lima Barreto pode parecer fino despropósito, mas Joel Rufino o faz com arte e sensibilidade, e isso pode levar o leitor curioso a um mergulho nas obras desses autores. Mas atenção: Joel Rufino exigirá toda sua atenção, por vezes disperso leitor, pois você estará frente ao fantástico, ao inverossímil, e por vezes, ao virar uma esquina/página, esbarrará num fato histórico. Modernismo, crise de 29, Revolução de 1932, por exemplo. Isso tudo disposto com precisão de um paisagista dos jardins de Versailles.



Modernismo - 1922




Ficção, fatos históricos, personagens e seus autores, tudo ao mesmo tempo, ontem e agora. O que é isso, confuão, equívocos. Pecado mortal de quem pensou dessa forma. O crente do convencionalismo será só decepção frente a esse grande exemplo de ousadia e criatividade. Tudo isso, mas sem perder a ternura jamais.

Claros sussurros de celestes ventos, além de seu grande significado ficcional, remete a aulas de teoria literária sem que isso desmereça seu caráter ficcional tampouco desabone a criatividade desse autor fora dos padrões. O "fora dos padrões" no universo deste aprendiz significa o mais alto elogio.

A obra traz elementos do conto, da reescritura, do histórico, da intertextualidade, do humor e sobretudo da arte refinada de unir imaginação, a mais rocambolesca, com um tempero de suspense que instiga a leitura. Não confundir suspense com expectativa de sobressalto, por favor.

Criatividade e imaginação, escritores (mortos) convivem e dialogam com personagens fictícios num tempo presente.

Sei que está em voga a intertextualidade, difícil encontrar livro, desse nosso desanimador tempo cultural, onde tal aspecto não seja evidente.E gratuito. A pena Joel Rufino está fora desse compasso constrangedor, seu intertexto tem tudo a ver com o contexto.

Claros sussurros de celestes ventos levará o atento leitor, este aprendiz se inclui, a uma série de reflexões. Antes, no entanto, um resumo da história: começa pelo dia da morte de Lima Barreto, na trama chamado pelo primeiro nome, Afonso. Cruz e Souza é João da Cruz, casa com sua personagem Núbia, ela aparece nos poemas de “Broquéis”.

A história de Cruz e Souza (João da Cruz) será acompanhada pela história da cidade de Nossa Senhora do Desterro, que adiante ganharia o nome de Florianópolis.

Após o fracasso de uma relação amorosa, João da Cruz deixa sua cidade, muda-se para o Rio de Janeiro onde encontra um desconhecido, Raul. Tornam-se amigos. Raul, o Pompéia, consegue um emprego para João da Cruz na Biblioteca Nacional.

Cruz será acusado e processado por supostamente danificar um livro.

Raul, o Pompéria, é demitido e se mata, João da Cruz morreria mais tarde, tuberculose. Deixa cartas, numa delas confessa seu amor por Núbia, amor interdito pelo fato de João da Cruz ser negro.

O que é inquestionável em Claros sussurros e celestes ventos é o fato dessa obra brilhar sozinha em meio ao quase deserto criativo onde rasteja nossa atual produção literária.Criatividade, imaginação, fabulação, literatura como literatura, nada a ver com alguns boletins de ocorrência ou exageros sentimentalóides que atulham estantes das livrarias.

Disse anteriormente que Claros sussurros estimulava um a série de reflexões. A primeira, Rufino não inventou a roda, sabe dar-lhe finalidade. Ao juntar personagens e autores não trouxe novidade, de certa maneira assemelhou seu trabalho ao de André Gide que em Diário dos moedeiros falsos, dialoga com os personagens, simultaneamente à criação do romance Os moedeiros falsos. Um dos personagens mais instigantes, e também merecedor da maior atenção de Gide, é Edouard, também escritor, que pretende escrever um romance chamado Os moedeiros falsos.

Edouard, assim como Gide, escreve um diário. As semelhanças entre esses escritos permitem ao leitor a percepção de um livro dentro do livro. Diário dos moedeiros falsos permite visualizar a construção dos personagens e deixa nítidas as marcas meta-literárias.

Em seu livro L'Art du roman, Milan Kundera (1986) diz que o romance se esforça em revelar um aspecto desconhecido da existência humana, uma possibilidade do ser que se ignorava até então. Sem dúvida é isso e mais, muito mais: o imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo, a imbricação dos gêneros literários concede imensas áreas de expressão.

Outra reflexão diz respeito ao fato juntar numa narrativa escritores mortos, tornando-os personagens como fez Gonçalo Tavares ao criar um bairro, mais precisamente uma rua, onde moram Kafka, Lorca e Joyce. A história traz referências a fatos das vidas desses autores.

Para concluir, tangenciando o gênero, podemos apontar relações com a reescritura. E aqui de uma forma sútil conforme exige esse viés literário. Reescritura, sempre oportuno lembrar, muito bem apresentada em Lúcia,de Gustavo Bernardo, uma reescritura de Lucíola e Hamlet, de Marici Passini. Antes de continuar acrescento que o tema reescritura tem merecido uma série de estudos academicos e livros equivocados. Livros que reescrevem livros que já reescreveram livros. Um horror! Voltarei ao tema em ocasião oportuna. Espero.

Delicadeza, humor, sensibilidade e consciência social, abundantes na obra, levam este aprendiz a não abordar o tema vergonhoso do racismo. O autor abordou o caso comme il faut.

Agora sim, para encerrar Todorov. "Todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele cria [...]. Geralmente, a obra-prima literária não se encaixa em nenhum gênero".

Luíz Horácio Rodrigues -  Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e Mestre na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Atualmente reside em Porto Alegre (RS). Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.

Imagens: Internet