sábado, 28 de março de 2015

O CANCEROSO IMAGINÁRIO




Ronaldo Correia de Brito


Juro que não estou com câncer. Pelo menos, por enquanto. Mas durante cinco dias vivi a possibilidade de ser portador de um melanoma maligno, uma das formas mais traiçoeiras da doença. Pela primeira vez nesse jornal, onde escrevo há cinco anos, cedo a palavra ao médico, embora sempre acrescentem junto ao meu nome as duas profissões que exerço. Certamente desejam associar-me a Guimarães Rosa, Jorge de Lima ou Pedro Nava, que além de médicos foram escritores. Mas ser discípulo de Hipócrates não garante um bom futuro literário a ninguém. Sobretudo nos tempos de hoje, em que a medicina se tornou uma profissão técnica, afastando-se da filosofia, da religião e da arte.

Soube que poderia estar com câncer no consultório de um dermatologista. Um pequeno sinal nas costas era suspeito: possuía coloração escura, contornos irregulares, superfície plana. Eu fora me consultar por causa de um prurido, uma coceira como dizem os leigos. O especialista me examinou, fez careta e disse que eu deveria retirar o sinal o mais breve e enviar a peça – é assim que chamamos o fragmento de biópsia – para exame histopatológico.
Até o momento de ouvir a fala do colega médico, eu estava cheio de planos para o futuro: plantar café num sítio em Taquaritinga, publicar um novo livro de contos, morrer só depois dos noventa anos. Agora, ele falava numa voz cavernosa que minha sobrevida poderia ser de oito anos ou de ridículos três meses. Dependia da evolução do melanoma, se o diagnóstico fosse confirmado. Enquanto dobrava papéis com receitas e solicitações de exames, eu me perguntava o que acontecera comigo. Era o mesmo Ronaldo Correia de Brito de quinze minutos atrás – o tempo que durou a consulta: saudável, cheio de apetite e vontade de viver. Não, não era mais. Um médico detentor do poder da ciência lançara dúvida sobre o meu frágil destino no planeta. Sempre achei que iria morrer, nunca duvidei disso. Mas assim de repente, sem mais nem menos, sem haver cometido transgressão ou crime. E com a sentença pronunciada por um cara mal humorado, indiferente ao meu pavor. Imaginava anjos soprando trombetas, nessa hora solene.

Liguei para um amigo cirurgião oncologista. Ele foi categórico: Se você não retirar o sinal para a prova dos nove, nunca mais terá sossego. Regateei: Mas estou perfeito, não dou um espirro, acabei de dosar o colesterol e os triglicerídeos, minha pressão é de criança. Conversa fiada. A dúvida me comia por dentro. Retirei o sinal e aguardei o resultado. Foram cinco dias terríveis. Comportava-me como candidato a defunto, inventariando as pequenas coisas, lamentando tudo o que deixaria para trás. Por azar, enquanto aguardava o resultado da biópsia, uma colega de turma morreu de linfoma e uma vizinha de carcinoma, nomes do “dito cujo”. Apostei que o próximo seria eu.

Não fui. O histopatológico conclui por uma queratose, lesão besta e, por isso mesmo, ótima para mim. Decidi mudar radicalmente de vida, o que ainda não fiz. Passei da condição de quase morto para a de ressuscitado.

Admiro os progressos na medicina, os procedimentos cirúrgicos por videoendoscopia, os diagnósticos precoces através de exames laboratoriais e imagens. É possível extirpar tumores com raios laser; a cirurgia de catarata tornou-se simples; a quimioterapia e a radioterapia diminuíram a mortalidade do câncer. Uma altíssima tecnologia a serviço do diagnóstico transformou os médicos em super especialistas, homens cibernéticos. Pena que a técnica, do grego technikós, que significa relativo à arte, passou a significar estritamente o domínio de um instrumental científico, muitas vezes mecânico. A arte, no seu elevado sentido de busca do Bem e do Belo, cedeu lugar à indústria ou ao mero artesanato.

Para os gregos, a cura significava a busca do autoconhecimento. Na entrada do oráculo de Delfos, uma inscrição orientava os que procuravam ajuda: “Conhece-te a ti mesmo”. A medicina recorria à magia simpática e nunca prescindiu da relação entre médico e paciente, de gestos simples como o olhar, o toque, a escuta e a fala. Uns poucos ainda apostam nesse modelo de cura, nos programas de medicina de família e comunidade, em assistência básica e educação, na necessidade de contratar médicos, mesmo estrangeiros, que vivam próximos às populações carentes e desassistidas. As novas turmas de doutores saem da faculdade buscando especialidades lucrativas, aparatos tecnológicos em que a proximidade com o doente é cada vez menor. Sentem-se ameaçadas pelos programas de assistência básica, que supostamente diminuem o lucro, o prestígio e o poder.

Quando os gregos abandonaram o pensamento mágico, criando a ciência, também inauguram uma nova maneira de ver o homem e de buscar a sua cura. Esse novo olhar não nega o humanismo essencial à prática médica, não suprime a necessidade do toque das mãos, opondo a ele o sacolejo de um aparelho de ressonância magnética. Os dois métodos se complementam.

O dermatologista agiu corretamente ao indicar a retirada do sinal. Não questiono o procedimento. O que nós médicos precisamos rever é o poder que assumimos de arbitrar sobre a vida e a morte. Algumas sentenças, pronunciadas sem maior compromisso, causam transtornos irreversíveis nas pessoas.

Os escritores sempre ironizaram a empáfia do médico e fizeram dele as piores caricaturas. Mas ninguém o tratou pior do que o teatro italiano. Imagino o que esses caricaturistas criariam em nosso país de comédia, onde candidato político dirige o carro embriagado e o senador mais bem votado faz propaganda de cerveja.

FONTE: Jornal O Povo


Ronaldo Correia de Brito - Nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco.
Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Retratos Imorais - Alfaguara / Objetiva, Estive Lá Fora-Alfaguara / Objetiva. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine e coluna no Jornal O Povo (Ceará).

QUEM É DEUS?




O cabelo e a barba grisalhos denunciam a idade mas o corpo é forte e musculoso. Os traços da face transmitem a autoridade de quem não hesitará em agir sobre o mundo caso seja necessário. Para bilhões de ocidentais, a pintura de Michelangelo no teto da capela Sistina, no Vaticano, é a síntese perfeita de Iavé, o Deus bíblico, aquele que “criou tudo em 6 dias”. Como diz o escritor americano e ex-jesuíta Jack Miles, autor de Deus, uma Biografia, mesmo quem não acredita continua moldando seu caráter por influência dessa imagem. Miles faz uma análise surpreendente da Bíblia, ao tratar de Deus como um personagem literário. O resultado é que, como protagonista do livro mais influente da história, Iavé revela uma personalidade que oscila bastante em relação à sua criação – como no momento em que ordena o dilúvio, para tentar “consertar” tudo.
Mas esse Deus é apenas uma entre inúmeras concepções de divindades. Não há sequer consenso em torno do número de deuses. Para mais de 750 milhões de hindus, existem centenas deles, como Brahma, Shiva e Krishna, para ficar nos mais conhecidos. Em rituais xamânicos de origem indígena, os deuses incorporam até em plantas e animais. E para mais de 350 milhões de seguidores do budismo, não há sequer uma divindade a cultuar – apenas Buda, um homem que atingiu a iluminação e virou guia espiritual. Como, então, a ciência pode encontrar Deus?
Apesar disso, os estudiosos sabem que há algo em comum entre essas crenças. Sem exceção, elas acreditam que há uma ordem, uma espécie de propósito (ou, se você preferir, sentido) no Universo. Nenhuma religião trabalha com o pressuposto de que o acaso e a indiferença regem as nossas vidas. Curiosamente, foi a busca por essa ordem que acabou impulsionando o avanço da própria ciência.

Da geometria ao acaso

No século 18, a maioria dos filósofos e cientistas acreditava piamente que a humanidade estava prestes a decifrar (integral e definitivamente) a ordem do Cosmos. Na época, havia motivos de sobra para tamanho otimismo: fazia mais de 100 anos que Isaac Newton publicara Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, considerada até hoje a obra mais importante da história da física. Nela, Newton não apenas descreveu como os corpos se deslocam no espaço e no tempo, mas desenvolveu a complexa matemática necessária para analisar esses movimentos. Segundo essa teoria, as leis do Universo eram estáveis e previsíveis, como se tivessem sido projetadas por um craque da geometria. Em 1794, o escritor, poeta e artista plástico inglês William Blake resumiu essa idéia ao desenhar Deus (um velho barbudo, como o de Michelangelo) criando o mundo com um compasso na mão. “A metáfora do Deus geômetra deriva da velha idéia platônica de um Universo dualista, em que há a necessidade de existir uma ordem, mas continua influenciando a ciência até hoje”, diz o brasileiro Marcelo Gleiser, autor de O Fim da Terra e do Céu e professor de física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.
A imagem de Deus, nesse sentido, era perfeitamente compatível com a visão científica do mundo da época. Os problemas só surgiam quando alguém tentava juntar as mais recentes descobertas da ciência com a história bíblica da Criação. Afinal, o estudo das camadas geológicas que formaram a Terra já provava que nosso planeta tinha milhões de anos – e não 5 mil, de acordo com os cálculos de Santo Agostinho. Mas bastava esquecer “detalhes” como esse para que todos fossem dormir felizes, conscientes de que o Universo tinha sido mesmo obra do Criador. Até que...

Se havia uma ordem no Universo, nada mais natural que ela comandasse todas as forças da natureza. E o homem, é claro, era visto como o exemplo máximo da perfeição da vida sobre a Terra. Mas Charles Darwin apresentou sua teoria sobre a seleção natural das espécies e colocou em xeque a idéia de que Deus era o responsável por tudo isso que está aí. Vale lembrar que Darwin nunca disse que o homem descendia dos macacos – apenas que homens e macacos eram parentes evolutivos com um ancestral comum (os paleantropólogos estimam, hoje, que esse “tataravô” viveu em algum momento entre 4 milhões e 6 milhões de anos atrás). Ainda assim, muita gente não aceitou a idéia de que as espécies vivas, incluindo a nossa, possam ter se desenvolvido graças apenas à seleção natural, tendo evoluído quase por acaso em meio a tantas outras espécies. O fato é que o estudo da história da vida em nosso planeta comprovou que, durante milhões de anos, outras espécies reinaram por aqui sem que houvesse nenhuma necessidade da existência dos homens. Como bem resume o cientista americano Carl Sagan no seriado de televisão Cosmos, recentemente relançado em DVD pela super, se a história do Universo fosse condensada em apenas um ano, o aparecimento da espécie humana teria ocorrido nos últimos instantes do dia 31 de dezembro.

E o avanço da física deixou claro que, se o Universo fosse um relógio, nem sequer o tempo marcado por ele seria preciso. Em 1905, Albert Einstein publicou seu estudo da Teoria da Relatividade que, resumidamente, pôs fim à idéia de tempo absoluto. A estabilidade perfeita das leis de Newton começou a se despedaçar para sempre. Logo em seguida, o estudo da mecânica quântica revelou que não é possível sequer prever a posição exata de partículas subatômicas, obrigando os cientistas a se contentar em trabalhar com probabilidades. Apesar de ter ajudado a destruir a velha noção de ordem no espaço e no tempo, Einstein acreditava cegamente que a natureza funcionava (ou deveria funcionar) segundo regras bem definidas – e não de maneira aleatória, como num grande jogo de azar. Numa carta para o físico Max Born, Einstein escreveu: “Você crê em um Deus que joga dados e eu, na lei e na ordem absolutas.” Se para um cientista como Albert Einstein não era fácil lidar com o acaso e o caos, imagine para os que acreditam na religião.
Do ponto de vista da física pura, porém, é importante ressaltar que todo esse papo de criação do Universo tem pouca (ou nenhuma) importância. Não fosse pela descoberta da teoria do big-bang (segundo a qual ele surgiu após uma grande explosão), nem sequer haveria a necessidade de provar que houve uma “hora zero”, afinal o tempo e o espaço são mesmo relativos, não é mesmo? Curiosamente, o big-bang passou a ser considerado por muitos fiéis a “evidência científica” de que a Bíblia está certa ao descrever o “início de tudo”. Talvez para tentar explicar a incompatibilidade existente entre a física das partículas subatômicas e a Teoria da Relatividade, muitos pesquisadores têm discutido atualmente a chamada Teoria das Supercordas, que propõe uma explicação unificada capaz de preencher essas lacunas. “De qualquer maneira, essa tese é mais um desejo de encontrar uma ordem do que algo validado cientificamente”, diz o físico Marcelo Gleiser.

E se a ciência conseguisse achar essa tal ordem no Universo, será que isso seria a prova da existência de Deus? Ou será que a busca pelo divino não passa de uma necessidade inventada pelo homem para colocar um sentido em tudo (afinal, até onde se sabe, somos os únicos animais que tentam entender por que existe a morte)? Nas últimas décadas, o que se tem visto é um acirramento das diferenças entre aqueles que acreditam que a complexidade da vida só pode ser explicada por uma inteligência superior e aqueles que defendem que a inclinação para acreditar em Deus é apenas um traço biológico da nossa espécie, ou seja, somos programados para ter fé. É o que veremos nas próximas páginas.

Deus vai à escola

Dover, no estado americano da Pensilvânia, é uma daquelas cidades tão pequenas que mal dá para avistar seu núcleo urbano da altura média de vôo de um jato comercial. A pacata vida de seus 1814 habitantes, a maioria descendente de alemães, quase nunca foi notícia nos grandes jornais dos EUA. Tudo mudou no dia 18 de outubro deste ano, quando teve início o julgamento sobre a grade curricular de uma escola pública local que decidiu dedicar parte das aulas de biologia ao estudo de uma teoria conhecida em inglês como intelligent design (algo como projeto ou desenho inteligente, numa tradução livre para o português). Seu principal cartão de visita é o fato de se contrapor à tese de Darwin sobre a seleção natural e a evolução das espécies. Como a Constituição americana garante a total separação entre a Igreja e o Estado, alguns pais acharam que a direção do colégio estava muito perto de misturar ciência e religião, apelaram para a intervenção da Justiça e o debate pegou fogo no país.

Nas salas de aula em questão, as crianças e jovens aprendem que várias tarefas altamente especializadas e complexas do organismo humano – como a visão, o transporte celular e a coagulação, entre outras – só podem ser explicadas pela ação de uma força maior ou, em outras palavras, pela intervenção de um ser superior, capaz de bolar o tal desenho inteligente do nosso corpo e da nossa mente. Para a maioria dos biólogos do planeta, contudo, essa tal inteligência não passa de um novo nome para um velho conceito: o criacionismo bíblico, segundo o qual estamos na Terra apenas porque saímos da prancheta (ou da imaginação) divina para nos reproduzir “à Sua imagem e semelhança”.

Se, como já foi dito no início do texto, há muitos cientistas que não vêem motivos para buscar as impressões digitais de Deus na história do Universo, outros tantos acreditam que as teses de Darwin têm falhas e, como tal, precisam ser ensinadas nas escolas “em toda sua amplitude”, ou seja, alertando os alunos para o fato de que há controvérsias a respeito das descobertas que o jovem naturalista inglês fez a bordo do navio Beagle. Os defensores do desenho inteligente juram que não têm nenhuma ligação com os criacionistas do século 19, que difundiam uma interpretação literal do Gênese para conter a rápida e eficaz disseminação das teorias darwinistas – apesar das críticas da maior parte dos colegas da comunidade científica.
“Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando argumentos científicos, outra é descobrir uma teoria científica que pode ser compatível com a fé”, disse à Super o bioquímico Michael J. Behe, pouco depois de depor no julgamento em defesa da “nova tese”. Professor da Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, e autor do livro A Caixa-Preta de Darwin, ele diz que, se toda formulação científica compatível com uma crença religiosa tivesse de ser descartada automaticamente pelos pesquisadores, os astrônomos jamais poderiam aceitar os estudos sobre o big-bang. “Estou apenas defendendo o direito dos estudantes de terem acesso a outras idéias sobre a criação do Universo”, afirmou Behe.

A discussão em torno do ensino de ciências – inclusive com a interferência do Poder Judiciário – não é nenhuma novidade nos EUA. No início dos anos 20, muitos estados americanos simplesmente proibiram os alunos de ter aulas sobre as teorias evolutivas de Darwin. Em 1925, teve início um julgamento que, num primeiro momento, levou à condenação de um professor do ensino médio do Tennessee simplesmente porque ele acreditava que somos parentes dos macacos (e dizia isso em classe). Após sucessivos recursos de ambos os lados, o processo só terminou em 1968, quando a Suprema Corte decidiu que qualquer iniciativa no sentido de definir o currículo escolar com base em crenças religiosas era inconstitucional.

É por isso que tantos vêem o desenho inteligente como uma espécie de cortina de fumaça para colocar Deus de volta nas salas de aula? Será que, do ponto de vista científico, o desenho inteligente tem consistência? “Por enquanto, não”, afirma Vera Volferini, professora de genética e evolução da Unicamp. Segundo a bióloga, não existem ainda argumentos científicos que sejam tranqüilamente aceitos pela maioria dos pesquisadores. “Teorias como essa presumem que o ser humano é o resultado de um projeto perfeito, o que não é verdade. É consenso entre os especialistas que o design humano, apesar de eficiente, está longe de ser inatacável biologicamente. A próstata do homem, para ficar em apenas um exemplo, não segue um desenho anatômico ideal”, diz ela. E é justamente essa falha na concepção que provoca muitos problemas que afetam boa parte dos machos da espécie. Além disso, por que não poderíamos ter mais de 5 dedos em cada mão? Vera explica que, ao menos do ponto de vista biológico, temos esse número de dedos não porque seria um problema ter um ou dois a mais, mas porque fazemos parte de uma espécie cujo ancestral, há milhões de anos, tinha (por acaso) 5 dedos.
No Brasil, a teoria criacionista já desembarcou também – nos colégios públicos do Rio de Janeiro e, por enquanto apenas nas aulas de religião (em 2002, um lei proposta pelo governador Anthony Garotinho incluiu a disciplina “religião confessional” no currículo escolar). E a atual governadora do estado, a presbiteriana Rosinha Matheus (mulher de Garotinho), afirmou recentemente ao jornal O Globo que não acredita nas teses darwinianas. Apesar de o assunto não ser tratado nas aulas de biologia por aqui, o tema vem preocupando entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que já se manifestou contra a disseminação do criacionismo nas escolas fluminenses. “O problema não é ter ou não uma crença pessoal”, diz Marcelo Menossi, professor de genética molecular da Unicamp. “O problema é tentar justificar e espalhar essa crença usando falsos argumentos científicos.”

Genética da religião

Nos anos 60, a britânica Jane Goodall afirmou que algumas espécies podem ter a religiosidade gravada nos próprios genes. A pesquisadora ficou famosa ao estudar o comportamento de chimpanzés na Tanzânia. Numa de suas numerosas observações, descobriu que os macacos agiam de maneira nada usual diante de uma cachoeira, demonstrando o que ela batizou de senso místico e de reverência. “Alguns permaneciam sentados numa rocha em frente à queda d’água, como se estivessem encantados. Outros ficavam sob a queda d’água por mais de 50 minutos, quando normalmente nem gostavam de se molhar.” Goodall concluiu que esse comportamento é um traço de religiosidade primitiva. E nós? Será que também nós humanos fomos “programados” para acreditar em Deus?
Para o biólogo Edward O. Wilson, um dos pioneiros da sociobiologia (ciência que se dedica a compreender o comportamento humano por meio da biologia), a predisposição para a religião é mesmo resultado da evolução genética do cérebro. Segundo ele, nossa inclinação para acreditar num ser superior pode ser resultado da submissão animal. Ele conta que entre macacos rhesus o macho dominante caminha com a cauda e a cabeça erguidas, enquanto os dominados mantêm a cabeça e a cauda baixas, em sinal de respeito ao líder – em troca, eles têm proteção contra os inimigos e acesso a abrigo e alimento. Segundo Wilson, a tendência de se submeter a um ser superior é herança dessas ações. “O dilema humano é que evoluímos geneticamente para acreditar em Deus, não para acreditar na biologia.”

Essa seria uma das razões pelas quais Deus é sempre invocado quando precisamos lidar com temas etéreos (e muitas vezes polêmicos, como a bondade, a solidariedade etc.). “Afinal, se Deus for apenas uma constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre ética, certo e errado ou qualquer outra questão moral”, diz o britânico Richard Dawkins (leia o quadro da página ao lado).
O radiologista Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene D’Aquili (que morreu há 5 anos) resolveram buscar diretamente no cérebro a origem da experiência religiosa. Utilizando aparelhos de tomografia, eles revelaram as áreas mais ativadas pela meditação em 8 budistas e em um grupo de freiras franciscanas. A pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro Why God Won’t Go Away (“Por que Deus não Vai Embora”, sem tradução no Brasil), mostrou que durante as orações havia uma diminuição da atividade no lobo parietal superior, a área do cérebro responsável pela nossa orientação de tempo e espaço, pela sensação de separação entre o corpo e o indivíduo e pela delimitação entre o “eu” e os “outros”. Ou seja, ao meditar criamos um bloqueio que provoca a sensação de unicidade típica do êxtase religioso.
Além disso, várias outras pesquisas comprovam que ter fé, independentemente de acreditar em um ou mais deuses, faz bem para o corpo e a mente, pois melhora as condições de saúde e aumenta a sensação de felicidade. A ciência ainda não conseguiu explicar se Deus criou o nosso cérebro com essa habilidade ou se foi a evolução que fez o cérebro criar esse portal para Deus. Mas nesta nova era de espiritualidade talvez isso não seja tão importante assim. O que conforta muita gente é acreditar que é possível melhorar o mundo pela fé.

"A relação do homem com o sagrado tem se mostrado um traço persistente."

Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da filosofia moderna e contemporânea da Unicamp.
"A metáfora do deus geômetra deriva da velha idéia platônica de um universo dualista, em que há a necessidade de existir uma ordem superior, mas continua influenciando a ciência até hoje."

Marcelo Gleiser, professor de física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.

"Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando argumentos científicos, outra é você descobrir uma teoria científica que pode ser compatível com a fé."
Michael J. Behe, bioquímico e um dos principais defensores da tese do “desenho inteligente”.

"Se Deus for só uma constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre o que é certo ou errado em questões morais."

Richard Dawkins, zoólogo e professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra.


A ética num mundo sem "ele"

“Se Deus não existe, tudo é permitido.” A frase, que ficou célebre no livro Os Irmãos Karamazov, do russo Fiodor Dostoievski, resume uma das questões mais cruciais do mundo moderno: sem uma referência divina, passaríamos a viver numa espécie de vale-tudo moral? “Não necessariamente”, diz o filósofo Oswaldo Giacoia Júnior, da Unicamp. “A busca de um código de valores sempre foi uma preocupação central da filosofia, sem necessidade de uma legitimação divina.” No século 18, por exemplo, os ideais de igualdade e justiça social, aceitos hoje como uma preocupação ética, surgiram de formulações dos filósofos iluministas – que acreditavam ser possível defendê-los com base na razão, não na religião (na época, esse tema não era nada popular no Vaticano). Em meados do século 20, o francês Jean Paul Sartre, o pai do existencialismo – segundo o qual de nada adianta buscar um propósito da existência para além da vida humana –, disse que a nossa própria condição de seres que vivem em sociedade é suficiente para justificar a prática de valores solidários. E ainda hoje filósofos como o vienense Peter Singer (um dos mais ferrenhos defensores dos direitos dos animais) continuam defendendo uma série de condutas éticas baseadas na razão, não na fé. Mas será que a adoção pura e simples de uma ética sem Deus não pode nos levar a um racionalismo frio, capaz de ofuscar valores menos palpáveis, como a bondade? “A fé não se traduziu apenas em atos de paz e harmonia ao longo dos tempos”, lembra Giacoia. “Dos grandes conflitos religiosos do passado ao moderno terrorismo fundamentalista, já foram cometidas inúmeras atrocidades em nome da ética religiosa em todo o mundo.”

Para saber mais

Deus, uma Biografia - Jack Miles, Companhia das Letras, 2002
Desvendando o Arco-Íris - Richard Dawkins, Companhia das Letras, 2000
Consiliência - Edward O. Wilson, Editora Campus, 1999
O Romance da Ciência - Carl Sagan, Francisco Alves, 1982
Why God Won´t Go Away - Andrew Newberg e Eugene D•Aquili, Ballantine Books, 2002
A Caixa-Preta de Darwin - Michael Behe, Jorge Zahar Editor, 1997


FONTE: REVISTA SUPERINTERESSANTE

sábado, 2 de novembro de 2013


Forte, teimosa e voluntariosa

Perseguida por sua independência inaceitável para as mulheres da época, Carlota Joaquina era capaz de gestos corajosos e generosos

Francisca Lúcia Nogueira de Azevedo
 
Carlota Joaquina
Nas notícias que enviavam à Espanha, os servidores da casa de Bragança traçaram um perfil que jamais descolaria de Carlota Joaquina: a princesa era irrequieta e inflexível. “Não havia de retroceder a um desejo”, escreveu sua nobre ajudante Maria Moscoso em 1794, “e se eu não fizesse o que queria, poderia com escândalo valer-se de outra pessoa”.
A geniosa menina sem dúvida fazia por merecer tais qualificativos. Mas o retrato era incompleto. A começar por sua sólida formação. Filha primogênita do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV, e da infanta Maria Luiza

Na gravura de Manuel Marques de Aguilar, Carlota já como rainha consorte. Apesar da busca incessante pelo poder, ela jamais alcançou o trono como soberana.
de Parma, Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbonnasceu no dia 25 de abril de 1775. Durante alguns anos, houve certa expectativa de que se tornasse herdeira do trono, pois a mãe tivera vários abortos. Sendo assim, a infanta recebeu educação esmerada, a cargo do padre Felipe Scio de San Miguel, um intelectual ilustrado. Em 1785, cumprindo um acordo matrimonial assinado por seu avô Carlos III e pela rainha D. Maria I de Portugal, partiu para Lisboa. Aos 10 anos, tornava-se esposa do príncipe e futuro rei D. João.
Comprovando sua educação cortesã e dotes intelectuais, A Gazeta de Lisboa relata o sucesso dos exames que Carlota prestou na presença de diplomatas portugueses: “Tudo satisfez tão completamente, que não se pode expressar a admiração que deve causar uma instrução tão vasta em uma idade tão tenra”.

Mesmo sob educação rígida pautada na etiqueta cortesã, comum às meninas da nobreza, há vários depoimentos de pessoas que conviviam cotidianamente com ela e que afirmam de maneira unânime seu temperamento irredutível quando não queria cumprir ordens. Em carta a Maria Luiza (mãe de Carlota), a camareira da princesa, D. Ana, se queixa com frequência dos mui malos modos de D. Carlota, levando muitas vezes o padre Felipe ao desespero, “por estar durante as lições duas ou três horas sem querer falar uma palavra”.
 Ainda assim, a rainha D. Maria e os membros da família real portuguesa dedicavam muito afeto à infanta, rindo de suas travessuras e se encantando com suas exibições de dança. Numa Corte de velhos, a jovem princesa espanhola era a alegria do Palácio, sendo muito mimada e tendo suas vontades atendidas.
Ao alcançar a fase adulta, D. Carlota continua a surpreender a Corte pelo temperamento autoritário e extremamente extrovertido. A sociedade lusitana, muito conservadora, fica perplexa com suas atitudes, uma vez que está pouco acostumada a comportamentos espontâneos e expansivos vindos de uma mulher. A desenvoltura com que transita no espaço público, sua atuação no campo político e seu destempero no cotidiano familiar assustam particularmente os homens portugueses e estrangeiros, sempre muito tradicionais em relação ao comportamento feminino. Também causa estranheza sua conduta extravagante no dia a dia da Corte, oscilando entre ataques de raiva e atitudes racionais e generosas. Não são atitudes comuns à nobreza, principalmente a uma princesa consorte, cujo marido é um homem discreto e retraído.
As mulheres eram privadas do convívio social, mantidas presas ao cotidiano doméstico – seja na casa do pai, do marido ou no convento, quando freiras – sempre recolhidas a espaços reservados. As atitudes transgressoras de Carlota Joaquina inspiraram a construção de um perfil anedótico e preconceituoso, como o descrito por Madame Junot em seu livro de memórias. Mulher do general francês Junot, a duquesa de Abrantes acompanhou o marido durante o período em que esteve em Lisboa, e fez descrições detalhadas dos membros da família de Bragança. Preconceituosa, lança mão de narrativas burlescas e ressalta o atraso e a pobreza dos lusitanos. Carlota Joaquina é ridicularizada por seu modo extravagante de agir e de se vestir, e por suas características físicas muito feias. Ao descrever a família de Bragança, a marquesa a comparava a “um concurso monstro de fealdades em que cabiam os primeiros prêmios ao príncipe regente e a Dona Carlota”.
Outros contemporâneos relatam demonstrações de solidariedade e generosidade. Dois episódios narrados por Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, bibliotecário da Biblioteca Real, ajudam a contradizer a má fama da princesa. Conta ele que a mulher de um servidor da Biblioteca Real foi acusada de adultério e, por causa disso, abandonada pelo marido. Ao saber da situação da mulher, Carlota Joaquina leva-a para o Palácio, dá-lhe roupas e chama seu médico particular para tratá-la. E vai além:“sabendo ao depois que ela tinha duas filhas pequenas e em desamparo, mandou logo buscá-las, vestiu-as nobre e magnificamente com primoroso enxoval, e pô-las a educar e aprender em um colégio de meninas, pagando mensalmente por sua educação”. Em outra ocasião, Carlota se deparou com um senhor açoitando uma escrava que lhe havia roubado 250 gramas de açúcar. Ao saber do motivo, solicita ao senhor que pare de açoitar a negra, e segue em seu passeio. Após ter caminhado alguns metros, ordena a um de seus guardas que volte e verifique se o tal senhor havia atendido ao pedido. O guarda surpreende o homem novamente espancando a escrava. D. Carlota volta ao local, repreende o homem e concede liberdade à mulher.
Mas a biografia de Carlota Joaquina ficou especialmente marcada pelo difícil relacionamento com o Gabinete do Regente. Particularmente, com D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), o conde de Linhares.O famoso rancor que passou a sentir pelo Brasil tem relação com a forma como era tratada no Palácio durante a administração do conde, que a impedia até de falar com seu marido, o Regente. A situação se agrava quando Carlota Joaquina – única herdeira do rei da Espanha em liberdade, pois os outros membros da família de Bourbon eram prisioneiros de Napoleão – lidera a defesa do império espanhol. D. Rodrigo não aceita a ascensão política da princesa e desencadeia uma guerra contra ela. Afasta todas as pessoas que a apoiam e corta sua mesada, a ponto de deixá-la completamente sem dinheiro.
Numa ocasião, foi procurada pelo governador e chefe do exército espanhol em Montevidéu, general Gaspar de Vigodet, que pedia auxílio para enfrentar a revolução de Buenos Aires, um movimento de independência naquele que era o último reduto da resistência espanhola no Prata. Sem recursos, Carlota convoca todos os ourives do Rio de Janeiro e coloca suas melhores joias à venda, mas os comerciantes se negam a comprá-las, certamente por pressão do Palácio. Ela só consegue levantar o dinheiro quando entrega as joias para serem vendidas pelo marquês de Casa Irujo, embaixador espanhol na Corte.
Mãe dedicada e até, algumas vezes, atenciosa com o marido, em cartas e bilhetes mostrava preocupação com o bem-estar e a saúde do Regente.
 Entretanto, em diversas situações, Carlota age por conta própria, sem considerar a opinião do rei. Quando volta a Portugal, por exemplo, torna-se um baluarte da defesa do absolutismo monárquico. É capaz de recusar-se a jurar a Constituição liberal portuguesa, mesmo sob ameaça de ser presa e deportada. Desobedece ao rei, desobedece ao marido.
O imaginário social sobre ela era uma lista de desonras: infiel, vulgar, ambiciosa, perversa, inculta, transgressora de todas as normas morais e éticas inerentes às mulheres da nobreza. Além disso, os ventos não lhe sopraram a favor politicamente. A grande maioria dos intelectuais da época era liberal, como quase todos os historiadores. São tempos de revoluções e de crescentes ataques aos representantes do Antigo Regime, aos absolutistas e seus defensores. Raras são as referências a Carlota como mãe de Pedro I e avó de Pedro II. Mais coerente com o mau retrato é lembrá-la como mãe de D. Miguel, absolutista como ela.
Incompatível com os papéis femininos de seu tempo e representante de uma tradição política em vias de extinção, Carlota Joaquina tornou-se duplamente sujeita a estereótipos. A personagem é mais complexa e interessante do que a lenda. 

Francisca Lucia Nogueira de Azevedo é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de Carlota Joaquina na Corte do Brasil (Civilização Brasileira, 2003).
 Saiba mais 
LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil, 1808-1821. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
PEREIRA, Sara Marques. D. Carlota Joaquina e os “Espelhos de Clio”. Lisboa: Livros Horizontes, 1999.
 
SHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Rio de Janeiro: Ed Civilização Brasileira, 2008.

quinta-feira, 16 de maio de 2013


A maior de todas as espiãs

Enfermeira e poliglota, a francesa Louise de Bettignies montou toda uma rede de espionagem para a Inglaterra e ajudou a combater a Alemanha na primavera de 1915. Desmascarada, foi presa e morreu no cárcere 
Louise de Bettignies

Para os ingleses, Alice Dubois. Para os franceses, Pauline. Seu nome verdadeiro, Louise de Bettignies. Independente, viajada, fluente em sete idiomas (francês, alemão, italiano, espanhol, russo e tcheco), era uma mulher avançada para sua época e, por sua atuação como espiã na Primeira Guerra, é considerada a precursora da luta na clandestinidade e das heroínas da Resistência Francesa na Segunda Guerra. Chegou a ganhar o apelido de

Joana d’Arc do Norte.

Sétima criança de uma família de nove filhos, nasceu em 15 de julho de 1880, em Saint-Amand-les--Eaux, norte da França, na fronteira com a Bélgica. Fez excelentes estudos, apesar dos reveses de fortuna que obrigaram seu pai, em 1877, a vender a fábrica de porcelana da família. Aos 26 anos, caso raríssimo para uma francesa, ela conseguiu ser admitida no Girton College, o departamento feminino da Universidade de Cambridge. Ganhando a vida como professora particular, mais tarde ela pôde ser vista na Itália, na Alemanha, na Tchecoslováquia ou na Áustria, onde esteve furtivamente com o imperador Francisco José e venceu uma partida de xadrez contra o filho do kaiser Guilherme II, o príncipe herdeiro Rupprecht da Baviera.
 

O arquiduque Francisco Ferdinando, que viria a ser vítima, em Sarajevo, do atentado que desencadearia a Primeira Guerra Mundial, chegou a propor a ela que se tornasse preceptora dos filhos dele. Em vão: para isso, Louise seria obrigada a abrir mão de sua nacionalidade francesa.


Como enfermeira, por vezes ela cuidava dos feridos do exército do kaiser Guilherme II, na área ocupada pelos alemães na região norte da França, desde o início da Primeira Guerra. Isso porque Louise visitava com frequência o irmão, vigário de Orsinval, próximo a Quesnoy. Numa dessas ocasiões ela acabou sendo alvo de um controle infeliz, feito por Rupprecht da Baviera, em visita àquele setor. Infeliz porque , afinal de contas, toda a fase do pré-guerra – o castelo de Holeschau, a partida de xadrez, as conversas com Elvira da Baviera – tinha supostamente criado laços.


Essa capacidade de se imiscuir entre os alemães chamou a atenção dos serviços secretos, tanto da França quanto da Inglaterra. Em fevereiro de 1915, um oficial francês se encontrou com ela discretamente, em sua residência de Saint-Omer, localidade que abrigava membros do quartel-general do corpo expedicionário britânico comandado pelo general John French. O motivo do encontro era descobrir se Louise de Bettignies aceitaria se tornar agente secreto. A jovem Louise não aceitou nem descartou a possibilidade, deixando no ar um “talvez”. Pouco depois os britânicos fizeram a ela um convite semelhante. O major Walter Kirke, comandante do serviço de informações militar inglês (Military Intelligence) na França gostaria de poder contar com o talento extraordinário da moça para falar tantos idiomas, e com tamanha fluência.

A inteligência francesa ficou incomodada com o convite feito pelos ingleses, mas não havia o que fazer. Os franceses cederam e Louise caiu nos braços do MI 6. Mas havia etapas intermediárias a cumprir antes de entrar em ação. Ela precisou passar por um estágio de formação no escritório interaliado de Folkestone. Lá aprendeu sobre códigos secretos, tintas invisíveis, combinação sobre como indicar um ponto sensível em um mapa, como identificar as unidades alemãs, as peças de artilharia. Nesse período, conheceu o coordenador britânico do serviço de informações, o major Cameron, vulgo “Tio Eduardo”. Para o MI 6, Louise passou a ser “Alice Dubois”, e a rede de contatos que ela tinha a missão de estabelecer na região norte da França e na Bélgica, seria chamada “o serviço Alice”.


De Folkestone, QG dos serviços secretos aliados, ela foi para a Holanda, que se manteve neutra no conflito. Pouco antes de atravessar a fronteira belga, o oficial inglês que a acompanhava declarou bruscamente: “Se for apanhada, não poderemos fazer nada por você, mas, se isso acontecer, terá sido certamente por sua culpa. Boa sorte”. Impossível ser mais claro...


Uma empresa comercial holandesa de fachada, a Companhia Cerealista de Flessingue, serviu de disfarce e estrutura logística em Bruxelas. Outro comando militar clandestino estava instalado em Lille, no norte da França, perto de Béthune. Os centros ferroviários mereciam atenção especial, como, por exemplo, os de Tourcoing ou Lille, por onde transitavam as tropas e material alemães, rumo ao fronte de batalha.


O braço direito de Louise era uma enfermeira do norte chamada Marie-Léonie Vanhoutte, de 27 anos, conhecida como “Charlotte ” no serviço Alice. Os demais colaboradores da rede eram de profissões e regiões das mais variadas: Lenfant, ex-comissário especial (informações gerais), era de Tourcoing; Willot, professor da Faculdade Católica de Medicina de Lille; Marsille, chefe eletricista; o velho Pinte, professor do Instituto Técnico de Roubaix; Verstappen, cônsul da Bélgica em Haia; a senhorita L’Hermitte e o abade Chavatte, em Haubourdin; Horst, responsável pela infiltração de seus compatriotas militares belgas. Essa era a rede mínima para poder comandar um conjunto de cerca de 100 agentes profissionais.
Túmulo de Louise

Ao todo, “Alice Dubois” faria algumas dezenas de idas e vindas entre Folkestone e o continente. Em meados de 1915, “Tio Eduardo” a apresentou ao general George Macdonogh, diretor do serviço militar de informações, assim como ao próprio general French. “A atividade do serviço Alice é extremamente importante, você consegue intensificar seus esforços?”, perguntou o general French. “Sejam lá quais forem os riscos, a resposta é sim!”, respondeu a jovem. “Cuide-se ”, aconselhou o militar.

Antes de voltar à luta clandestina, Louise viu pela última vez a mãe, Julienne, em Touquet: “Tenho o pressentimento de que em breve serei capturada”, admitiu. “E então, o que pode acontecer com você?”, perguntou a mãe. “Eles vão me fuzilar, eu imagino.”


No início de setembro, as mensagens do major Cameron a informavam sobre boatos que corriam, a respeito da infiltração de sua rede de contatos. Não sem razão: os alemães levavam o serviço Alice muito a sério. Léonie foi presa em 15 de setembro de 1915. Em 20 de outubro foi a vez de Louise.

As duas mulheres foram condenadas à morte em março de 1916, por espionagem. A pena foi comutada em prisão perpétua por conta da indignação que havia sido provocada pela execução de duas mulheres, a enfermeira inglesa Edith Cavell, em 12 de outubro de 1915, e a jovem patriota belga Gabrielle Petit, em 1º de abril de 1916.


Nas prisões belgas e, em seguida alemãs, um destino diferente aguardava as duas francesas. Apesar dos cuidados da companheira de infortúnio, Louise morreria em 27 de setembro de 1918, em um hopistal em Colônia, Alemanha, em decorrência de uma cirurgia feita sem os cuidados mínimos de higiene, em um cárcere de Sieburg. Léonie foi libertada após o armistício e viveu por mais meio século, falecendo em 4 de maio de 1967.

RÉMI KAUFFER é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e autor de livro sobre serviços secretos na França.
 

sexta-feira, 12 de abril de 2013


Texto antigo diz que Pilatos ofereceu sacrificar filho no lugar de Jesus

Live Science explica sobre o beijo de Judas, marca da traição a Jesus Cristo


Um recém decifrado texto cristão egípcio de cerca de 1,2 mil anos traz uma versão inédita da crucificação de Jesus Cristo e de seus últimos dias. Entre as teses encontradas no ancestral documento estão a de que a última ceia de Jesus foi com Pôncio Pilatos e de que o profeta tinha a capacidade de mudar de forma. As informações são da publicação científica Live Science. 
Escrito em língua copta, o texto diz que o romano Pôncio Pilatos, que ordenou a crucificação, jantou com Jesus e ofereceu sacrificar o seu próprio filho para que Jesus não fosse crucificado.  O texto também diz que Jesus foi preso na noite de terça-feira, e não na quinta-feira, o que representaria uma mudança no calendário pascal. Com estas mudanças, a última ceia de Jesus teria sido com o juiz romano, e não com os apóstolos, como conta a Bíblia. 


 

Entre as teses do ancestral documento estão a de que a última ceia de Jesus foi com Pôncio Pilatos.
 
A descoberta do texto não quer dizer que estes eventos aconteceram, mas que algumas pessoas vivendo na época aparentemente acreditavam neles.
No texto, Jesus conforta Pilatos dizendo: "Ó Pilatos, você é digno de uma grande graça porque mostrou boa disposição para mim". O profeta também teria mostrado a Pilatos que poderia escapar se assim o quisesse. "Pilatos, então, olhou para Jesus e ele ficou incorpóreo: ele (Pilatos) não o viu (Jesus) por um longo tempo...", diz o texto. Pilatos é considerado um santo nas igrejas cristãs Copta e da Etiópia . 
 
 
Na Bíblia, o apóstolo Judas trai Jesus em troca de dinheiro ao identificá-lo com um beijo para que pudesse ser preso por oficiais judeus. O texto recém traduzido traz uma explicação para esse fato. O ato seria uma forma de identificar Jesus porque este teria a habilidade de mudar forma, "algumas vezes era branco, outras vermelho, outras cor de trigo, algumas vezes jovem, outras velho...". O beijo seria o modo encontrado por Judas para que fosse possível identificar quem era exatamente Jesus.
A tradução do texto foi publicada pelo holandês Roelof van den Broek, da Universidade de Utrecht, no livro Pseudo-Cyril of Jerusalem on the Life and the Passion of Christ. "A descoberta do texto não quer dizer que estes eventos aconteceram, mas que algumas pessoas vivendo na época aparentemente acreditavam neles", disse o autor. 
Cópias do texto foram encontradas em dois manuscritos em museus nos Estados Unidos. Ele foi escrito em nome de São Cirilo de Jerusalém, que viveu no Século IV, e há 1,2 mil anos estava no monastério de São Miguel, no deserto egípcio e próximo a atual cidade de al-Hamuli. Acredita-se que o monastério tenha fechado no início do século X. O texto foi reencontrado em 1910 e comprado em 1911 pelo magnata americano J.P. Morgan, que posteriormente os cedeu para os museus. 

Fonte:
Imagens: Internet

domingo, 6 de janeiro de 2013



CLAROS SUSSURROS DE CELESTES VENTOS


Por Luíz Horácio Rodrigues


Joel Rufino

Claros sussurros de celestes ventos, apresenta encontros fictícios entre escritores , Lima Barreto e Cruz e Sousa, por exemplo, além de encontros de seus personagens, a Olga, do Policarpo Quaresma, e a Núbia, de Broquéis. Vivem em outros tempos e outros cenários. Sets estranhos tanto a criadores quanto a criaturas, palcos onde atores e figurantes desfilam sob o mesmo status.





Cruz e Souza

Escrever sobre o encontro de Cruz e Souza com Lima Barreto pode parecer fino despropósito, mas Joel Rufino o faz com arte e sensibilidade, e isso pode levar o leitor curioso a um mergulho nas obras desses autores. Mas atenção: Joel Rufino exigirá toda sua atenção, por vezes disperso leitor, pois você estará frente ao fantástico, ao inverossímil, e por vezes, ao virar uma esquina/página, esbarrará num fato histórico. Modernismo, crise de 29, Revolução de 1932, por exemplo. Isso tudo disposto com precisão de um paisagista dos jardins de Versailles.



Modernismo - 1922




Ficção, fatos históricos, personagens e seus autores, tudo ao mesmo tempo, ontem e agora. O que é isso, confuão, equívocos. Pecado mortal de quem pensou dessa forma. O crente do convencionalismo será só decepção frente a esse grande exemplo de ousadia e criatividade. Tudo isso, mas sem perder a ternura jamais.

Claros sussurros de celestes ventos, além de seu grande significado ficcional, remete a aulas de teoria literária sem que isso desmereça seu caráter ficcional tampouco desabone a criatividade desse autor fora dos padrões. O "fora dos padrões" no universo deste aprendiz significa o mais alto elogio.

A obra traz elementos do conto, da reescritura, do histórico, da intertextualidade, do humor e sobretudo da arte refinada de unir imaginação, a mais rocambolesca, com um tempero de suspense que instiga a leitura. Não confundir suspense com expectativa de sobressalto, por favor.

Criatividade e imaginação, escritores (mortos) convivem e dialogam com personagens fictícios num tempo presente.

Sei que está em voga a intertextualidade, difícil encontrar livro, desse nosso desanimador tempo cultural, onde tal aspecto não seja evidente.E gratuito. A pena Joel Rufino está fora desse compasso constrangedor, seu intertexto tem tudo a ver com o contexto.

Claros sussurros de celestes ventos levará o atento leitor, este aprendiz se inclui, a uma série de reflexões. Antes, no entanto, um resumo da história: começa pelo dia da morte de Lima Barreto, na trama chamado pelo primeiro nome, Afonso. Cruz e Souza é João da Cruz, casa com sua personagem Núbia, ela aparece nos poemas de “Broquéis”.

A história de Cruz e Souza (João da Cruz) será acompanhada pela história da cidade de Nossa Senhora do Desterro, que adiante ganharia o nome de Florianópolis.

Após o fracasso de uma relação amorosa, João da Cruz deixa sua cidade, muda-se para o Rio de Janeiro onde encontra um desconhecido, Raul. Tornam-se amigos. Raul, o Pompéia, consegue um emprego para João da Cruz na Biblioteca Nacional.

Cruz será acusado e processado por supostamente danificar um livro.

Raul, o Pompéria, é demitido e se mata, João da Cruz morreria mais tarde, tuberculose. Deixa cartas, numa delas confessa seu amor por Núbia, amor interdito pelo fato de João da Cruz ser negro.

O que é inquestionável em Claros sussurros e celestes ventos é o fato dessa obra brilhar sozinha em meio ao quase deserto criativo onde rasteja nossa atual produção literária.Criatividade, imaginação, fabulação, literatura como literatura, nada a ver com alguns boletins de ocorrência ou exageros sentimentalóides que atulham estantes das livrarias.

Disse anteriormente que Claros sussurros estimulava um a série de reflexões. A primeira, Rufino não inventou a roda, sabe dar-lhe finalidade. Ao juntar personagens e autores não trouxe novidade, de certa maneira assemelhou seu trabalho ao de André Gide que em Diário dos moedeiros falsos, dialoga com os personagens, simultaneamente à criação do romance Os moedeiros falsos. Um dos personagens mais instigantes, e também merecedor da maior atenção de Gide, é Edouard, também escritor, que pretende escrever um romance chamado Os moedeiros falsos.

Edouard, assim como Gide, escreve um diário. As semelhanças entre esses escritos permitem ao leitor a percepção de um livro dentro do livro. Diário dos moedeiros falsos permite visualizar a construção dos personagens e deixa nítidas as marcas meta-literárias.

Em seu livro L'Art du roman, Milan Kundera (1986) diz que o romance se esforça em revelar um aspecto desconhecido da existência humana, uma possibilidade do ser que se ignorava até então. Sem dúvida é isso e mais, muito mais: o imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo, a imbricação dos gêneros literários concede imensas áreas de expressão.

Outra reflexão diz respeito ao fato juntar numa narrativa escritores mortos, tornando-os personagens como fez Gonçalo Tavares ao criar um bairro, mais precisamente uma rua, onde moram Kafka, Lorca e Joyce. A história traz referências a fatos das vidas desses autores.

Para concluir, tangenciando o gênero, podemos apontar relações com a reescritura. E aqui de uma forma sútil conforme exige esse viés literário. Reescritura, sempre oportuno lembrar, muito bem apresentada em Lúcia,de Gustavo Bernardo, uma reescritura de Lucíola e Hamlet, de Marici Passini. Antes de continuar acrescento que o tema reescritura tem merecido uma série de estudos academicos e livros equivocados. Livros que reescrevem livros que já reescreveram livros. Um horror! Voltarei ao tema em ocasião oportuna. Espero.

Delicadeza, humor, sensibilidade e consciência social, abundantes na obra, levam este aprendiz a não abordar o tema vergonhoso do racismo. O autor abordou o caso comme il faut.

Agora sim, para encerrar Todorov. "Todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele cria [...]. Geralmente, a obra-prima literária não se encaixa em nenhum gênero".

Luíz Horácio Rodrigues -  Natural de Quaraí, pequeno município gaúcho na fronteira com o Uruguai, é formado em Letras e Mestre na mesma área. Viveu sua juventude na terra natal e em Porto Alegre, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras e passou cerca de vinte anos ali, escrevendo e colaborando com páginas literárias de várias publicações. Atualmente reside em Porto Alegre (RS). Sua principal obra é a denominada Trilogia Alada, inaugurada com Perciliana e o pássaro com alma de cão, seguida de Nenhum pássaro no céu, e encerrada agora com Pássaros grandes não cantam.

Imagens: Internet