quarta-feira, 15 de julho de 2009

O leitor e a bibliotecária

Ronaldo Correia de Brito


Crato - Ceará

Na cidade do Crato, no Ceará, onde vivi parte da infância e adolescência, havia uma biblioteca municipal. Ou seria diocesana? Também não sei aonde foi parar o acervo que marcou tão profundamente minha meninice pobre de livros. O prédio da biblioteca não existe mais; no local funcionam um bar e lojas de bugigangas. Embora o acervo literário fosse deplorável, quase todo formado por livros católicos mal impressos e muito velhos, acho que a troca de uma biblioteca por um comércio nunca é feliz. Já existem bares em excesso nas cidades brasileiras.

Imagino que sou a única pessoa do mundo que leu a coleção Grandes Romances do Cristianismo, de que fazem parte títulos como Perseguidores e Mártires, Quo Vadis?, Otávio, Papai Falot, Ben-Hur, Os últimos dias de Pompéia, Os noivos e por aí afora. Na falta de livros melhores, eu mergulhava nessas narrativas lacrimosas, escritas para arrebanhar os espíritos rebeldes, transformando-os em almas piedosas. Afora esses livros exemplares, havia a biblioteca de um primo, com a melhor literatura universal: só que todos eles estavam parcialmente devorados pelos cupins e pelas traças. Dessa maneira, minha formação ficou cheia de hiatos. Nela, faltam muitas páginas, capítulos inteiros, começos, meios e fins.









Não sei por arte de que nigromante (aquele que invoca os mortos) os insetos não comeram uma única página, uma lombada sequer, nem mesmo o parágrafo mais insignificante das obras completas de Machado de Assis, José de Alencar e das crônicas de Humberto de Campos. Dessa forma, até os quinze anos eu já lera todos esses respeitáveis senhores, de cabo a rabo, tão bem lido que nunca mais voltei a eles. Minto: jamais consegui atravessar Guerra dos Mascates, do meu conterrâneo cearense, e sempre releio os contos de Machado. Humberto de Campos, confirmando a transitoriedade do sucesso, anda esquecido. Ninguém lembra que ele foi o autor brasileiro mais lido há algumas décadas, um fenômeno nacional parecido com Paulo Coelho. Sem a auto-ajuda, claro.


A Biblioteca Municipal era pouco freqüentada e a bibliotecária passava a maior parte do tempo fazendo crochê ou rezando num terço de contas azuis e brancas. Creio que o seu interesse pela leitura não foi além das orelhas e prefácios. Dessa forma, ela construiu um conhecimento de superfície sobre o pequeno acervo, quase sempre doado, o que me leva a supor que se tratava de refugo, aquilo que as pessoas têm em casa e não apreciam. Nunca tive notícia de uma aquisição feita pela prefeitura da cidade, da compra de um pacote de bons livros. Quando completei catorze anos, deixaram que eu tivesse acesso à biblioteca da Faculdade de Filosofia e aí conheci livros melhores.




A bibliotecária pertencia à irmandade das Filhas de Maria, vestia-se de branco no mês de maio e usava uma fita azul no pescoço com uma imagem em prata de Nossa Senhora. Ela sempre me pareceu ingênua, boa e feliz. A necessidade de um emprego colocou-a no lugar de bibliotecária, sem vocação ou preparo para isso. Nossa amizade se deu por eu ser apaixonado pelos livros. A devoção que ela punha nas rezas eu colocava nas leituras. Diante de um menino deslumbrado por objetos de que ela cuidava sem maior convicção, sentia-se tocada. E era sincera quando me apresentava um título que acabara de chegar, uma nova doação. Esse é bom, dizia sem haver lido. Esperando que eu retornasse para a devolução com um resumo da obra e comentários que respeitavam sua fé católica.


Talvez um bibliotecário de grande erudição, culto e arrogante, tivesse me inibido. A bibliotecária modesta, com seu fetiche pelos objetos livros e sua admiração pelo menino leitor, me seduziu para a leitura. Ela me olhava invejosa e seus olhos confessavam: Ah, se eu tivesse coragem de atravessar esses dramas! Mas sua formação católica, de um catolicismo popular e singelo, reprimia vôos e fantasias, mesmo em romances que pareciam inventados por sugestão de Roma.
Quase todas as vezes em que voltava ao Crato, passava em frente à casa da bibliotecária. Nossa conversa não se mantinha por mais de dez minutos. Eu temia que a qualquer momento ela sacasse a sugestão de um novo romance. Mas o catolicismo anda em baixa e livros edificantes de escritores como Paulo Coelho tendem para o ecumenismo e o paganismo. A bibliotecária já não possui biblioteca, nem leitores a quem cativar.



Ela sabia que o menino curioso se tornara médico e escritor. Talvez desejasse ouvir um agradecimento que só agora faço: obrigado pelos livros que você me colocou nas mãos. Por mais estranhos que eles me pareçam hoje, contribuíram para me fazer leitor. Tomara que os santos em que você acredita lhe dêem no céu uma pequena biblioteca, com livros que você poderá nunca ler, mas com certeza amará, abaixo de Deus.


Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, Arlequim, e o romance Galiléia pela Alfaguara. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.




Fonte: Terra Magazine
Imagens: Internet

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