terça-feira, 11 de novembro de 2008

RONALDO CORREIA DE BRITO



Sobre heroísmo e astúcia


Sempre preferi Galileu Galilei a Giordano Bruno. Galileu abjurou suas descobertas na astronomia e na física, perante o Tribunal da Inquisição. Assim, ele garantiu a vida e a possibilidade de continuar investigando o universo. Atitude científica e moderna. Giordano, ao contrário, perseverou negando os dogmas católicos, e foi condenado à fogueira. Coragem e heroísmo.
Mas os heróis morrem cedo, e deixam apenas o exemplo. Galileu parece um covarde quando, aos setenta anos, na perspectiva de passar o resto dos seus dias na cadeia, faz uma retratação pública e retira o que afirmara: que a Terra girava em torno do Sol e de si mesma, que Júpiter era um centro astral, com satélites orbitando ao redor, que as estrelas eram mutáveis. Tudo o que contrariava o pensamento aristotélico, base do poder da Igreja.
Ao negar-se, Galileu renuncia às glórias para ter um pouco mais de vida e continuar sua obra. Seria esta a verdadeira coragem, um compromisso com o eterno? Graças a Galileu a ciência saiu da teoria para a experimentação. Giordano lembra o carvalho da fábula, não se dobra diante da tempestade e parte-se ao meio. Galileu é o bambu flexível, se curva até o chão. Finda a tempestade, ele se põe novamente de pé.
Se Galileu fosse brasileiro, aclamariam seu gesto como astúcia. Mentir faz parte da nossa cultura. Dois escritores criaram modelos da alma nacional. Ariano Suassuna inventou João Grilo, no "Auto da Compadecida", e Mário de Andrade, Macunaíma. Falam nas semelhanças dos dois personagens, mas Ariano insiste nas diferenças. João Grilo representa o nordestino pobre, humilhado, que usa os recursos da malícia e da inteligência para sobreviver e defender-se dos opressores: os patrões e Deus. Em qualquer situação usa o "jeito", modo tipicamente brasileiro de arranjar as coisas.
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E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê? Vocês são uns pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê que tiveram tudo na terra? Se tivessem tido que agüentar o rojão de João Grilo, passando fome e comendo macambira na seca, garanto que tinham mais coragem.
Apesar das malandragens e estratagemas de que se vale para chegar aos fins desejados, João Grilo faz parte do "Brasil real" de que falava Machado de Assis. Macunaíma é assumidamente sem caráter, confesso preguiçoso. Tudo que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento tanto heroísmo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na cidade do Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta Terra carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização.
Macunaíma contribui para um estereótipo de brasileiro, o de povo sem sentido e sem ordem. João Grilo - se é possível comparar realidade e ficção - está mais para Galileu. Em ambos, o desejo de permanecer vivo é heróico. João Grilo, com a intervenção da Compadecida, volta à vida de tanta vontade que estava de enriquecer. Galileu luta pela vida para reafirmar mais adiante o que negara.
Já Macunaíma, mesmo se transformando na constelação da Ursa Maior, é o mesmo herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.
Parecemos com o povo russo nessa mania de buscar a alma nacional. O caráter de uma nação se constrói a partir de heróis reais e imaginários, literários e mitológicos. E também no exemplo dos seus políticos. Mas nesse espelho tivemos pouca sorte. Melhor a literatura. Nela, se um herói não presta, viramos a página ou trocamos de livro. Na política é bem mais complicado.


Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no ano de 2007.
Escreveu os livros de contos As Noites e os Dias (1997), editado pela Bagaço, Faca (2003), Livro dos Homens (2005), e a novela infanto-juvenil O Pavão Misterioso (2004), todos publicados pela Cosac Naify.
Dramaturgo, é autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim. Escreveu durante sete anos para a coluna Entremez, da revista Continente Multicultural, e atualmente assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine.

Fonte: http://www.objetiva.com.br/objetiva/cs/?q=node/1687

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