Forte,
teimosa e voluntariosa
Perseguida por sua
independência inaceitável para as mulheres da época, Carlota Joaquina era capaz
de gestos corajosos e generosos
Francisca Lúcia Nogueira de Azevedo
![]() |
Carlota Joaquina |
Nas notícias que
enviavam à Espanha, os servidores da casa de Bragança traçaram um perfil
que jamais descolaria de Carlota Joaquina: a princesa era irrequieta e
inflexível. “Não havia de retroceder a um desejo”, escreveu sua nobre
ajudante Maria Moscoso em 1794, “e se eu não fizesse o que queria, poderia
com escândalo valer-se de outra pessoa”.
A geniosa menina sem dúvida fazia por merecer tais
qualificativos. Mas o retrato era incompleto. A começar por sua sólida
formação. Filha primogênita do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV, e da
infanta Maria Luiza
Na gravura de Manuel Marques de Aguilar, Carlota já
como rainha consorte. Apesar da busca incessante pelo poder, ela jamais
alcançou o trono como soberana.
de Parma, Carlota Joaquina Teresa Caetana de
Bourbon e Bourbonnasceu no dia 25 de abril de 1775. Durante alguns anos, houve
certa expectativa de que se tornasse herdeira do trono, pois a mãe tivera
vários abortos. Sendo assim, a infanta recebeu educação esmerada, a cargo do
padre Felipe Scio de San Miguel, um intelectual ilustrado. Em 1785, cumprindo
um acordo matrimonial assinado por seu avô Carlos III e pela rainha D. Maria I
de Portugal, partiu para Lisboa. Aos 10 anos, tornava-se esposa do príncipe e
futuro rei D. João.
Comprovando sua educação cortesã e dotes
intelectuais, A Gazeta de Lisboa relata o sucesso dos exames que Carlota
prestou na presença de diplomatas portugueses: “Tudo satisfez tão
completamente, que não se pode expressar a admiração que deve causar uma
instrução tão vasta em uma idade tão tenra”.
Mesmo sob educação rígida pautada na etiqueta
cortesã, comum às meninas da nobreza, há vários depoimentos de pessoas que
conviviam cotidianamente com ela e que afirmam de maneira unânime seu
temperamento irredutível quando não queria cumprir ordens. Em carta a Maria
Luiza (mãe de Carlota), a camareira da princesa, D. Ana, se queixa com
frequência dos mui malos modos de D. Carlota, levando muitas vezes o
padre Felipe ao desespero, “por estar durante as lições duas ou três horas sem
querer falar uma palavra”.
Ainda assim, a rainha D. Maria e os membros
da família real portuguesa dedicavam muito afeto à infanta, rindo de suas
travessuras e se encantando com suas exibições de dança. Numa Corte de velhos,
a jovem princesa espanhola era a alegria do Palácio, sendo muito mimada e tendo
suas vontades atendidas.
Ao alcançar a fase adulta, D. Carlota continua a
surpreender a Corte pelo temperamento autoritário e extremamente extrovertido.
A sociedade lusitana, muito conservadora, fica perplexa com suas atitudes, uma
vez que está pouco acostumada a comportamentos espontâneos e expansivos vindos
de uma mulher. A desenvoltura com que transita no espaço público, sua atuação
no campo político e seu destempero no cotidiano familiar assustam
particularmente os homens portugueses e estrangeiros, sempre muito tradicionais
em relação ao comportamento feminino. Também causa estranheza sua conduta
extravagante no dia a dia da Corte, oscilando entre ataques de raiva e atitudes
racionais e generosas. Não são atitudes comuns à nobreza, principalmente a uma
princesa consorte, cujo marido é um homem discreto e retraído.
As mulheres eram privadas do convívio social,
mantidas presas ao cotidiano doméstico – seja na casa do pai, do marido ou no
convento, quando freiras – sempre recolhidas a espaços reservados. As atitudes
transgressoras de Carlota Joaquina inspiraram a construção de um perfil
anedótico e preconceituoso, como o descrito por Madame Junot em seu livro de
memórias. Mulher do general francês Junot, a duquesa de Abrantes acompanhou o
marido durante o período em que esteve em Lisboa, e fez descrições detalhadas
dos membros da família de Bragança. Preconceituosa, lança mão de narrativas
burlescas e ressalta o atraso e a pobreza dos lusitanos. Carlota Joaquina é
ridicularizada por seu modo extravagante de agir e de se vestir, e por suas
características físicas muito feias. Ao descrever a família de Bragança, a
marquesa a comparava a “um concurso monstro de fealdades em que cabiam os primeiros
prêmios ao príncipe regente e a Dona Carlota”.
Outros contemporâneos relatam demonstrações de
solidariedade e generosidade. Dois episódios narrados por Luiz Joaquim dos
Santos Marrocos, bibliotecário da Biblioteca Real, ajudam a contradizer a má
fama da princesa. Conta ele que a mulher de um servidor da Biblioteca Real foi
acusada de adultério e, por causa disso, abandonada pelo marido. Ao saber da
situação da mulher, Carlota Joaquina leva-a para o Palácio, dá-lhe roupas e
chama seu médico particular para tratá-la. E vai além:“sabendo ao depois
que ela tinha duas filhas pequenas e em desamparo, mandou logo buscá-las,
vestiu-as nobre e magnificamente com primoroso enxoval, e pô-las a educar e
aprender em um colégio de meninas, pagando mensalmente por sua educação”. Em
outra ocasião, Carlota se deparou com um senhor açoitando uma escrava que lhe
havia roubado 250 gramas de açúcar. Ao saber do motivo, solicita ao senhor que
pare de açoitar a negra, e segue em seu passeio. Após ter caminhado alguns
metros, ordena a um de seus guardas que volte e verifique se o tal senhor havia
atendido ao pedido. O guarda surpreende o homem novamente espancando a escrava.
D. Carlota volta ao local, repreende o homem e concede liberdade à mulher.
Mas a biografia de Carlota Joaquina ficou
especialmente marcada pelo difícil relacionamento com o Gabinete do Regente.
Particularmente, com D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), o conde de
Linhares.O famoso rancor que passou a sentir pelo Brasil tem relação com a
forma como era tratada no Palácio durante a administração do conde, que a
impedia até de falar com seu marido, o Regente. A situação se agrava quando
Carlota Joaquina – única herdeira do rei da Espanha em liberdade, pois os
outros membros da família de Bourbon eram prisioneiros de Napoleão – lidera a
defesa do império espanhol. D. Rodrigo não aceita a ascensão política da
princesa e desencadeia uma guerra contra ela. Afasta todas as pessoas que a
apoiam e corta sua mesada, a ponto de deixá-la completamente sem dinheiro.
Numa ocasião, foi procurada pelo governador e chefe
do exército espanhol em Montevidéu, general Gaspar de Vigodet, que pedia
auxílio para enfrentar a revolução de Buenos Aires, um movimento de
independência naquele que era o último reduto da resistência espanhola no
Prata. Sem recursos, Carlota convoca todos os ourives do Rio de Janeiro e
coloca suas melhores joias à venda, mas os comerciantes se negam a comprá-las,
certamente por pressão do Palácio. Ela só consegue levantar o dinheiro quando
entrega as joias para serem vendidas pelo marquês de Casa Irujo, embaixador
espanhol na Corte.
Mãe dedicada e até, algumas vezes, atenciosa com o
marido, em cartas e bilhetes mostrava preocupação com o bem-estar e a saúde do
Regente.
Entretanto, em diversas situações, Carlota
age por conta própria, sem considerar a opinião do rei. Quando volta a
Portugal, por exemplo, torna-se um baluarte da defesa do absolutismo
monárquico. É capaz de recusar-se a jurar a Constituição liberal portuguesa,
mesmo sob ameaça de ser presa e deportada. Desobedece ao rei, desobedece ao marido.
O imaginário social sobre ela era uma lista de
desonras: infiel, vulgar, ambiciosa, perversa, inculta, transgressora de todas
as normas morais e éticas inerentes às mulheres da nobreza. Além disso, os
ventos não lhe sopraram a favor politicamente. A grande maioria dos
intelectuais da época era liberal, como quase todos os historiadores. São
tempos de revoluções e de crescentes ataques aos representantes do Antigo
Regime, aos absolutistas e seus defensores. Raras são as referências a Carlota
como mãe de Pedro I e avó de Pedro II. Mais coerente com o mau retrato é
lembrá-la como mãe de D. Miguel, absolutista como ela.
Incompatível com os papéis femininos de seu tempo e
representante de uma tradição política em vias de extinção, Carlota Joaquina
tornou-se duplamente sujeita a estereótipos. A personagem é mais complexa e
interessante do que a lenda.
Francisca Lucia Nogueira de Azevedo é professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e autora de Carlota Joaquina na Corte do Brasil (Civilização
Brasileira, 2003).
Saiba mais
LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil,
1808-1821. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
PEREIRA, Sara Marques. D. Carlota Joaquina e os
“Espelhos de Clio”. Lisboa: Livros Horizontes, 1999.
SHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Rio de
Janeiro: Ed Civilização Brasileira, 2008.