segunda-feira, 6 de julho de 2009

Gripe espanhola e outras epidemias



Epidemia

Por: Juliana Rocha

Abrigados em trincheiras, os soldados enfrentavam, além de um inimigo sem rosto, chuvas, lama, piolhos e ratos. Eram vitimados por doenças como a tifo e a febre quintana, quando não caíam mortos por tiros e gases venenosos.

Parece bem ruim, não é mesmo? Era. Mas a situação naquela Europa transformada em campo de batalha da Primeira Grande Guerra Mundial pioraria ainda mais em 1918. Tropas inteiras griparam-se, mas as dores de cabeça, a febre e a falta de ar eram muito graves e, em poucos dias, o doente morria incapaz de respirar e com o pulmões cheios de líquido.

Enfermaria improvisada



Em carta descoberta e publicada no British Medical Journal quase 60 anos depois da pandemia de 1918-1919, um médico norte-americano diz que a doença começa como o tipo comum de gripe, mas os doentes “desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após darem entrada [no hospital], têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como moscas deixa qualquer um exasperado”.



vírus da gripe espanhola

A gripe espanhola – como ficou conhecida devido ao grande número de mortos na Espanha – apareceu em duas ondas diferentes durante 1918. Na primeira, em fevereiro, embora bastante contagiosa, era uma doença branda não causando mais que três dias de febre e mal-estar. Já na segunda, em agosto, tornou-se mortal.

Enquanto a primeira onda de gripe atingiu especialmente os Estados Unidos e a Europa, a segunda devastou o mundo inteiro: também caíram doentes as populações da Índia, Sudeste Asiático, Japão, China e Américas Central e do Sul.

O mal chega ao Brasil



No Brasil, a epidemia chegou ao final de setembro de 1918: marinheiros que prestaram serviço militar em Dakar, na costa atlântica da África, desembarcaram doentes no porto de Recife. Em pouco mais de duas semanas, surgiram casos de gripe em outras cidades do Nordeste, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que era então a capital do país.



Morto pela gripe. Rio de Janeiro. Clube de Engenharia. As autoridades brasileiras ouviram com descaso as notícias vindas de Portugal sobre os sofrimentos provocados pela pandemia de gripe na Europa. Acreditava-se que o oceano impediria a chegada do mal ao país. Mas, com tropas em trânsito por conta da guerra, essa aposta se revelou rapidamente um engano.

Tinha-se medo de sair à rua. Em São Paulo, especialmente, quem tinha condições deixou a cidade, refugiando-se no interior, onde a gripe não tinha aparecido. Diante do desconhecimento de medidas terapêuticas para evitar o contágio ou curar os doentes, as autoridades aconselhavam apenas que se evitasse as aglomerações.

Nos jornais multiplicavam-se receitas: cartas enviadas por leitores recomendavam pitadas de tabaco e queima de alfazema ou incenso para evitar o contágio e desinfetar o ar. Com o avanço da pandemia, sal de quinino, remédio usado no tratamento da malária e muito popular na época, passou a ser distribuído à população, mesmo sem qualquer comprovação científica de sua eficiência contra o vírus da gripe.

Clube de Engenharia

Imagine a avenida Rio Branco ou a avenida Paulista sem congestionamentos ou pessoas caminhando pelas calçadas. Pense nos jogos de futebol. Mas, ao invés de estádios cheios, imagine os jogadores exibindo suas habilidades em campo para arquibancadas vazias. Pois, durante a pandemia de 1918, as cidades ficaram exatamente assim: bancos, repartições públicas, teatros, bares e tantos outros estabelecimentos fecharam as portas ou por falta de funcionários ou por falta de clientes.
Pedro Nava, historiador que presenciou os acontecimentos no Rio de Janeiro em 1918, escreve que “aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível não era o número de casualidades - mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes, a impossibilidade de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva”.
Durante a pandemia de 1918, Carlos Chagas assumiu a direção do Instituto Oswaldo Cruz, reestruturando sua organização administrativa e de pesquisa. A convite do então presidente da república, Venceslau Brás, Chagas liderou ainda a campanha para combater a gripe espanhola, implementando cinco hospitais emergenciais e 27 postos de atendimento à população em diferentes pontos do Rio de Janeiro.

vítima da gripe espanhola

Estima-se que entre outubro e dezembro de 1918, período oficialmente reconhecido como pandêmico, 65% da população adoeceu. Só no Rio de Janeiro, foram registradas 14.348 mortes. Em São Paulo, outras 2.000 pessoas morreram.


fugindo do contágio

A evolução de um vírus mortal

Tratamento preventivo contra gripe. EUA. NMHM/US. Ainda hoje restam dúvidas sobre onde surgiu e o que fez da gripe de 1918 uma doença tão terrível. Estudos realizados entre as décadas de 1970 e 1990 sugerem que uma nova cepa de vírus influenza surgiu em 1916 e que, por meio de mutações graduais e sucessivas, assumiu sua forma mortal em 1918.

Essa hipótese é corroborada por outro mistério da ciência: um surto de encefalite letárgica, espécie de doença do sono que foi inicialmente associada à gripe, surgido em 1916.

As estimativas do número de mortos em todo o mundo durante a pandemia de gripe em 1918-1919 variam entre 20 e 40 milhões. Para você ter uma ideia nem os combates da primeira ou da segunda Grande Guerra Mundial mataram tanto. Cerca de 9 milhões e 200 mil pessoas morreram nos campos de batalha da Primeira Grande Guerra (1914-1918). A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) responde pela morte de 15 milhões de combatentes.



Presidente Rodrigues Alves - vítima da gripe espanhola

A mais grave de todas as pandemias foi a Gripe Espanhola, em 1918, que, em estimativas oficiais, matou cerca de 20 milhões de pessoas - extra-oficialmente, acredita-se que tenha sido o dobro desse número. Nessa grande epidemia mundial, cerca de 50% da população foi atingida, sendo que 25% tiveram infecção clínica. Esta pandemia vitimou mais pessoas do que a Primeira Guerra Mundial (1914-1917) , que fez 14,5 milhões de mortos e, encerrada um ano antes, é apontada como a responsável pela propagação do Influenza pelo mundo.
No mundo da medicina, a Gripe Espanhola traz comentários como "o maior holocausto médico já visto". O nome dado à pandemia não se deve ao fato de esta ter se iniciado no país europeu que a denomina, mas por ter sido a Espanha o local que apresentou a epidemia mais tardiamente.
No Brasil, a pandemia teve início em outubro de 1918 e durou apenas algumas semanas, até o final de novembro. Pelo menos 35.000 pessoas foram mortas, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. A vítima brasileira mais ilustre, e tardia, foi o presidente reeleito Rodrigues Alves, que não chegou a assumir o cargo para seu segundo mandato.

O vírus Influenza que causou a pandemia de 1957-58, foi descoberto na China em 1957, alcançou Hong Kong em abril e alastrou-se rapidamente para CIngapura, Taiwan e Japão. Em cerca de seis meses espalhou-se por todo o mundo. Esta epidemia afetou cerca de 40% a 50% das pessoas do globo. Contabilizou-se um total de um milhão de mortos.

O surto da Gripe de Hong Kong também fez cerca de um milhão de mortos e começou na China, em julho de 1968. Espalhou-se para Hong Kong no mesmo mês, de onde foi para o resto do mundo, até alcançar a América do Sul e África em meados de a 1969.

Entre 1918 e 1919 a epidemia de Gripe Espanhola matou mais pessoas do que Hitler, armas nucleares e todos os terroristas da história somados. No Rio de Janeiro, morreram 17 mil pessoas em dois meses. Os familiares, desesperados, jogavam seus mortos na rua com medo de contrair a doença.

A influenza espanhola era mais severa que a gripe comum, mas tinha os mesmos sintomas iniciais como garganta dolorida, dor de cabeça e febre. Mas comumente em muitos pacientes a doença progredia para algo muito pior do que espirros. Calafrios intensos e fatiga vinham acompanhados de fluido nos pulmões. Se a gripe passava do estágio de pequena inconveniência geralmente a pessoa já estava pré-destinada a morrer.

Mesmo hoje não há cura para o vírus Influenza. Tudo o que os médicos podiam fazer na época era deixar seus pacientes o mais confortáveis possível. A cor azulada na pele dos doentes evoluía para marrom ou roxo e seus pés ficavam pretos. Os “sortudos” se afogavam com o fluído nos pulmões. Os outros desenvolviam pneumonia bacteriana e agonizavam de uma infecção secundária. Como os antibióticos ainda não haviam sido inventados essa doença também não podia ser tratada.

Felizmente hoje temos como combater a pneumonia decorrente da gripe suína, o que aumenta muito as chances de sobrevivência à infecção.

As epidemias




Quando Oswaldo Cruz assumiu a direção do Departamento Nacional de Saúde Pública, o Brasil era um país doente. Uma das regiões que mais sofria era o Rio de Janeiro. No final do século XIX, dizia-se que essa cidade poderia vir a ser o maior empório da América do Sul se não fosse uma fábrica de moléstias.

Duas doenças, em especial, tiravam o sono das autoridades e a vida da população: a febre amarela e a varíola.

As moléstias em conferência. Charge do início do século XX. Todas carregam o símbolo da morte, uma foice.

Quando falamos de epidemias na história do Brasil, a primeira a ser lembrada é a febre amarela. Transmitida pela picada do mosquito Aedes aegypti, chegou ao Brasil no século XVII em navios que vinham da África. Os primeiros casos datam de 1685, no Recife, e de 1692, na cidade de Salvador.

Durante o século XVIII, não foram relatados casos dessa doença no Brasil. Ela retornou apenas entre 1849 e 1850, na forma de uma grande epidemia, que atingiu quase todo o país. Uma das cidades mais atacadas foi o Rio de Janeiro.

Esse surto epidêmico obrigou o Império a tomar providências que podem ser consideradas de saúde pública. O governo, por meio de um decreto, tentou limpar as cidades purificando o ar. Mas, mesmo assim, a febre amarela continuou a atacar. Não se imaginava que a causa da doença era um mosquito. Depois de 1850, ela se tornou endêmica no Rio de Janeiro.
O número de vítimas aumentou assustadoramente. Entre 1880 e 1889, foram registrados 9.376 casos
.

Vítimas da gripe espanhola na África

A solução para a febre amarela surgiu apenas no final do século XIX. Até essa época, as teorias sobre a doença eram inúmeras. No Brasil, acreditava-se que o clima, o solo e os ares poderiam ser propícios ao seu surgimento; por isso a idéia de limpar o ar. Foi em Cuba que um cientista descobriu que a febre amarela era transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.

Oswaldo Cruz já tinha conhecimento do trabalho desenvolvido em Cuba e, quando iniciou sua luta para acabar com a febre amarela na cidade do Rio de Janeiro, recebeu amplo apoio do presidente Rodrigues Alves, que havia perdido um dos filhos por causa dessa doença.
Esse apoio político foi muito importante para que a ação do sanitarista tivesse resultados, pois, nos meios científicos, muitos médicos não acreditavam que um mosquito era o transmissor da febre amarela.

Para combater a doença e o mosquito, Oswaldo Cruz dividiu a cidade em distritos e organizou as chamadas “brigadas mata–mosquitos”.

As “brigadas” tinham o poder de invadir e isolar qualquer residência suspeita de abrigar focos do mosquito.

As medidas de profilaxia de Oswaldo Cruz tiveram características de uma campanha militar. Os doentes eram isolados, e a cidade ficou sob a constante vigilância das autoridades policiais e sanitárias.

A imposição de normas de higiene e a vigilância sobre a cidade e os hábitos da população caracterizam a prática campanhista autoritária. Na solução do problema da febre amarela, Oswaldo Cruz teve sucesso. Depois, precisou enfrentar a varíola, uma das doenças mais antigas de que se tem notícia. Causada por um vírus, o Orthopoxvirus variolae, ela tirou muitas vidas ao longo da história.



vírus da varíola

Sua presença marcou importantes períodos, como a Idade Média, época em que recebeu inúmeras denominações, como “pequena pústula” e até mesmo o nome usado até hoje, “varíola”.
Pústulas, manchas, cicatrizes: essas eram as principais marcas da varíola. Se a pessoa não morresse em virtude das altas febres, dores e fatiga, poderia ficar cega e com profundas cicatrizes pelo corpo, especialmente no rosto.

Comum na Europa, a varíola chegou ao Brasil junto com os colonizadores e os navios que vinham da África. As primeiras referências da doença datam de 1563, por ocasião de uma epidemia que ocorreu na cidade de Salvador e seus arredores.

Por causa das feridas em forma de bolhas que cobriam o rosto dos doentes, a varíola ficou conhecida popularmente como “mal das bexigas”; e seus doentes, como “bexiguentos”.
Assim como na Europa, a varíola fez muitas vítimas no Brasil. Durante o Período Colonial, a doença periodicamente atacava vilas e alastrava-se pelas fazendas. Contando apenas com curandeiros e pouquíssimos cirurgiões-barbeiros, o que restava à população era rezar e isolar os doentes.

Foi apenas no século XVIII que se vislumbrou o que seria a solução para impedir o avanço da varíola. As pistas foram dadas pelos próprios doentes — as pessoas que conseguiam sobreviver ficavam imunes à moléstia, ou seja, não a contraíam novamente.

Imunização. Essa era a chave que a varíola oferecia em meio aos seus flagelos para se evitarem tantas mortes. E quem percebeu isso não foi um cientista ou médico da época (séc. XVIII), mas uma dama inglesa que havia sobrevivido à terrível doença: lady Mary Montagu. Esposa do embaixador inglês no Oriente, ela observou como os povos orientais faziam para evitar a varíola. Era o começo da primeira vitória do homem sobre uma epidemia.

O que lady Mary percebeu e depois levou para a Europa foi o método de inoculação, que consistia em pegar um pouco de material de dentro das feridas dos enfermos que estavam em convalescença e inseri-lo, através de um pequeno corte, em pessoas sadias, especialmente crianças. Assim, o indivíduo acabava tendo uma forma “branda” de varíola e não ficava mais doente.

A inoculação também ficou conhecida como “variolização” e se tornou moda entre as classes mais abastadas. Tanto reis como burgueses faziam seus filhos serem inoculados para que sobrevivessem a futuras epidemias. Esse método também chegou ao Brasil, de dois modos bem distintos: por intermédio de médicos e cirurgiões-barbeiros e pelos curandeiros africanos. Os primeiros queriam popularizar a prática para tentar diminuir o número de mortes em caso de epidemias, mas não conseguiram. Assim, ao ver um estilete , a maioria dos brasileiros fugia por medo.

Já a variolização feita pelos africanos tinha um caráter ritualístico. Para estes, o mal devia ser combatido com o mal. Ao inocular as pessoas, os curandeiros buscavam o poder do orixá das epidemias, Obaluaiê.

Epidemias nas missões jesuíticas




Na atual fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, ocupada pelas Missões no século XVII, as doenças do branco eram usadas para convencer os indígenas do poder do Deus católico.

por Jean Baptista

- "Padre, padre, um dos nossos está com a cara toda pintada de vermelho”, disse o índio de uma Missão jesuíta tão logo o padre saiu do claustro, ainda pela manhã. O religioso estremeceu: “Fui correndo ver o que era, já pensando na peste”. Corria o século XVII na região onde hoje fica a tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.Ao chegar à pequena choça indígena, instalada próximo do povoado, ao padre não restaram dúvidas de que se tratava de varíola, doença que lhe rendia profundas preocupações. Ele tinha viva na memória a experiência de surtos anteriores: era preciso reagir rapidamente para tentar salvar o corpo dos índios enfermos, ainda que com baixa chance de vitória.Mas, pensou o cura, também era o momento propício para fazer semear a mística do salvamento pelo Deus único do catolicismo. Ou seja, de aplicar seu apostolado para que os indígenas compreendessem que o Altíssimo ansiava pela alma de cada silvícola, podendo oferecer em troca uma vida longa e saudável.Correspondência, livros de catequese, sermões e outros registros datados dos séculos XVII e XVIII revelam o trabalho dos jesuítas da Província Eclesiástica do Paraguai, atualmente parte do território da Argentina, do Paraguai e do Brasil. Eles tentaram implantar entre os indígenas abrigados nos povoados missionais (Guarani, Jê e Pampianos) noções de pecado, culpa e castigo. E a ação nefasta de doenças epidêmicas teve sua valia nesse esforço catequista.

“Os deuses ameríndios são mais fracos que o Deus verdadeiro” – eis o princípio da argumentação de missionários ativos na América colonial quando o assunto era varíola, sarampo ou gripe, doenças européias contra as quais os indígenas não possuíam defesas biológicas. Assim, os religiosos apresentavam-se aos nativos como representantes de uma vontade divina que, quando contrariada, não se fazia de rogada e enviava enfermidades a uma comunidade.A estratégia religiosa tinha conexões com o que os nativos entendiam por doenças. Eles, de fato, eram inclinados a interpretá-las como manifestações do desgosto dos deuses diante do comportamento da humanidade. Muitas vezes, os silvícolas consideravam os surtos, as epidemias e as doenças individuais como o resultado de um “embruxamento”, vindo de algum indivíduo poderoso.Ao acenar com a chave do controle das epidemias, os missionários se tornavam legítimos feiticeiros entre os indígenas. Tão logo uma epidemia abatia um povoado, uma série de medidas relacionadas à vida e espiritualidade era tomada, para tentar efetivar o processo de conversão dos nativos.A modalidade do “praguejamento missionário” fundamentado em pestes visava, sobretudo, os índios que já haviam recebido a “boa nova” e, mesmo assim, seguiam com uma “vida pagã”. Na perspectiva jesuítica, o preço dessa opção era cobrado, em primeiro lugar, nas matas ao redor dos povoados missionais. Nelas se espalhava uma infinidade de cadáveres e moribundos provenientes de grupos devastados pelos surtos. Mas igualmente órfãos, mulheres e velhos desamparados – potenciais novas “ovelhas” para o rebanho dos padres.

MUSEU DO NOVO MUNDO, LA ROCHELLE



Também nas matas moravam os xamãs, os indivíduos com poderes e funções espirituais entre os grupos sacerdotais dos indígenas. Eles foram descritos na documentação católica da época como diabólicos opositores do projeto missional. Não por acaso, os religiosos diziam que a mata habitada por xamãs era a incubadora das epidemias. A guerra de poder entre padres e os tais “ministros do demônio” era explícita e rendeu relatos pitorescos, como o episódio que envolveu o padre jesuíta Mola, fundador da Missão de San Carlos, no atual território brasileiro.Mola enfrentou um poderoso feiticeiro que se proclamava o “senhor das pestes e das enfermidades”, causa de profundo assombro na comunidade. O feiticeiro, contudo, acabou “provando de seu próprio veneno e caiu doente”. Os índios, então, zombaram dele: como poderia ser o senhor das enfermidades se não conseguiu se defender da epidemia? Já os xamãs que aceitavam a conversão ao catolicismo – de preferência em praça pública – podiam obter a remissão de seus pecados e o perdão do Deus dos brancos. De modo geral, graças ao auxílio pestilento, os missionários conseguiam sobrepujar os adversários na disputa pela liderança espiritual dos nativos. No interior dos povoados, a realidade também era dramática. Apesar das instalações hospitalares, as epidemias afetavam drasticamente os censos anuais. Adultos eram presas fáceis, mas a mortandade atingia mais as crianças das Missões.

Relatos dos missionários explicitam as idéias de então. A salvação física de uma criança, durante epidemias, só se dava mediante intercessão divina – o veículo da bênção poderia ser um elemento da medicina mágica administrada por jesuítas e seus enfermeiros ou, especialmente, a interferência dos santos, capazes de aplacar a cólera divina.Certa feita, um povoado foi quase extinto por uma epidemia. Entre seus habitantes, havia uma menina de 10 anos que costumava ajoelhar-se todos os dias aos pés de uma imagem de Maria, a quem destinava rezas e pedidos. Em outra Missão, dois pequenos irmãos, de 5 e 7 anos, foram vistos caminhando em direção à igreja do povoado, mortificando-se com açoites e implorando a complacência de santa Ana. As três crianças – e outras com vivências semelhantes – teriam se salvado, de acordo com registros dos religiosos. Chamados pelos indígenas de marangatu (os bem-aventurados), os santos se assemelhavam aos heróis xamânicos dotados de poderes de cura. Só que os santos, segundo os padres, cobravam um preço diferente para conceder graças: desejavam humilhações, resignações, missas, confissões, conversões e novenas. Apesar de muitos indígenas terem seguido essas recomendações, a preferência por cantos, danças e oferendas de alimentos era majoritária. De todo modo, os padres ensinavam que os marangatu ofereciam a imunidade por meio de intervenções notáveis. Um bom exemplo eram as supostas aparições de santo Ignácio, fundador da Companhia de Jesus, em tempos de epidemia. O santo costumava “aparecer” aos doentes de um modo aterrador: demonstrando sua irritação com os homens.

Sobre isso, eis o relato de um jesuíta: “O santo apareceu no sonho de um enfermo, ralhou com ele asperamente pelo pecado que havia cometido e deu-lhe bofetadas para que lhe servissem de memória”. A outra pessoa enferma, uma índia com difteria, santo Ignácio também providenciou em sonho uma reprimenda: “Vocês comem de maneira desenfreada tudo o que encontram pela frente! Por isso estão enfermos!”. Palavra do santo...Mesmo opressoras, as intervenções podiam resultar em medidas salutares, algumas capazes de salvar a vida dos que demonstravam alinhamento à moral pregada nas Missões. Assim, a religiosidade ameríndia, que via nos sonhos a possibilidade de encontrar explicações e curas para problemas terrenos, dialogava de perto com percepções ocidentais.A banalização da morte, ilustrada pela existência de covas comuns durante epidemias, no período de 1630 a 1730, deu origem a outro fenômeno: um intenso, criativo e imprevisível debate entre padres e índios sobre o destino dos mortos.Os jesuítas tentavam difundir a sua “geografia do além”, segundo a lógica ocidental, assim como suas idéias sobre as relações entre os vivos e os mortos. Já os nativos trataram de construir um “além-morte” singular. Não raro, relatavam aos jesuítas que, em sonho, haviam estado num inferno habitado por onças, corujas e serpentes. Ou no paraíso, ao lado de resplandecentes anjos de asas vermelhas, em terras de alimento abundante onde se cantava, dançava e se mantinha morfologia social experimentada na vida terrena.Como se vê, o cenário pintado pelos missionários correspondia à tentativa de sobrepujar as percepções da cultura indígena. A lógica deles era objetiva: tempo de epidemia, tempo de dar combate ao diabo, ou seja, de eliminar o que não era cristão. Entretanto, a necessidade de convívio levou jesuítas e sul-ameríndios a dialogar sobre as representações em circulação e a experimentar aproximações e distanciamentos em prol da sobrevivência do projeto missional.Padres e nativos geraram, com isso, uma religiosidade que, ao fim, não era nem jesuítica nem indígena, mas sim um conjunto de crenças relacionadas, aplicável unicamente no solo das incríveis.

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