A mitificação das sociedades secretas vem sendo mais ressaltada pela mídia do que a explicação dos enigmas que as rondam
Marco Morel
A indústria do mistério se destaca nas bancas de jornal, telas de computadores e televisões, vitrines de livrarias, painéis de propaganda e nos mais variados meios de (in)comunicação. Espalha-se por toda parte, nas mesas de cabeceira, nas horas de lazer, nas conversas em família ou no ambiente de trabalho.
Em que se baseia esta ampla engrenagem de escala mundial? Mistério, místico, mito, mitificação, mistificação, mitologia. Fabuloso, fábula. História, histórias, estórias. Segredo, sagrado. Palavras fortes com fronteiras fracas e definições difusas são ingredientes de um fenômeno que seduz multidões e fatura incontáveis milhões por meio de narrativas que mobilizam corações e mentes. Como os monstros das culturas antigas, tal indústria se alimenta de anseios ancestrais, desejos atuais e insegurança diante do futuro. O sucesso destas imagens e palavras desafia o pensamento crítico contemporâneo e, particularmente, os historiadores profissionais.
Apontada frequentemente como a mais misteriosa, a maçonaria, entretanto, não é secreta (exceto em momentos de intensa repressão). Mas, sim, discreta, como afirmam seus membros. Os rituais é que são reservados apenas aos “iniciados”: podem ocorrer reuniões às escondidas, mas nem por isso superpoderosas a ponto de controlarem os destinos do mundo. No Brasil existiam publicações assumidamente maçônicas já na primeira metade do século XIX, quando o tema passou a ser tratado abertamente pela imprensa. Desde o pioneiro Hipólito da Costa no Correio Braziliense (1808 – 1822), a maçonaria era referida em centenas de publicações. E várias das entidades, desde então, têm endereço conhecido, placa na porta e publicações periódicas com nomes e fotos de seus membros. Basta dar uma busca na Internet. Além disso, nem todo agrupamento clandestino é maçônico.
Já no século XVIII, a Encyclopédie francesa (obra matriz da racionalismo moderno) afirmava que uma das mais fecundas fontes de fábulas é “a ignorância em história e cronologia”. Pode parecer caricato agitar num mesmo coquetel o Paraíso, Templo de Salomão, Ordem Rosa Cruz, maçonaria, Ordem dos Templários, Egito Antigo, gênios da música clássica, personalidades da política mundial, Profetas do Aleijadinho, Tiradentes, Leonardo da Vinci, imperialismo norte-americano e autoritarismo soviético, entre outros temas e personagens. Lembra vagamente carros alegóricos de escolas de samba. Na verdade, trata-se de uma receita eficiente na arte de convencer e... vender.
“Nesta obra, iremos relatar de que forma as chamadas ‘sociedades secretas’ se apoderaram do direito de ditar as regras e objetivos da humanidade. Veremos também a participação de algumas delas nos momentos decisivos da história, além de suas ambições sem precedentes perante o desejo de chegar ao poder a qualquer custo”.
É o que promete, sem muita modéstia e sob um logotipo imitando carimbo confidencial, a publicação Sociedades Secretas, da Editora Escala, que retoma a lista dos grupos “misteriosos” acrescentando outros itens à receita, como a heresia dos cátaros medievais, os carbonários do século XIX e, é claro, a maçonaria, alcunhada de “sindicato (sic) de pedreiros da Idade Média” que “se tornou a sociedade secreta mais influente de todos os tempos”, detentora dos “segredos dos mestres”. Nunca se viu tanto segredo alardeado pelas mídias – o “coquetel” parece uma bebida que só aumenta a sede.
Também interessante é o pequeno texto introdutório do nº 20 da revista Leituras da História, assinado pela editora Sílvia Haidar. “Quem nunca riu ou até mesmo se deixou levar por uma boa teoria da conspiração?”, lança, num ameno desafio. Para adiante encaixar: “Agora imagine quanto pano para manga não rende uma sociedade secreta suspeita de controlar economia e política mundiais”. A editora tem razão, rende mesmo – e não só pano para mangas.
Sociedade de pedreiros da Idade Média |
Em artigo de autoria de Cíntia C. da Silva na revista Aventuras na História, da Editora Abril, surfamos na onda dos grandes enigmas da humanidade:
“Rituais estranhos e códigos que os integrantes devem levar para o túmulo fazem parte das organizações mais misteriosas do mundo. Conheça as principais. A trama de O Código Da Vinci, o maior sucesso editorial dos últimos anos, foi toda construída a partir da fascinante ideia de que sociedades secretas não só existem como podem mudar o rumo dos acontecimentos e da história como a conhecemos hoje. Algumas dessas sociedades ocultas, como o Priorado de Sião e o Opus Dei, têm papel de destaque na aventura descrita pelo escritor americano Dan Brown. (...) Essas sociedades também seriam responsáveis por planos conspiratórios que teriam um único objetivo final: dominar o mundo”.
O domínio do mundo soa como samba de uma nota só, ainda que prudentemente os verbos se conjuguem no condicional. Saltando sobre as poças de séculos e até milênios, o mesmo texto trata do “grego Pitágoras, que viveu entre 580 e 500 a.C., fundou sua própria sociedade secreta ao retornar do Egito.”. E vai até a “Skull and Bones – sociedade da qual faria parte o presidente americano George W. Bush”, cruzando com outros grupos ou entidades pelo meio do caminho. A forma maçônica contemporânea surgiu na Inglaterra no século XVIII e expandiu-se rapidamente por vários países. Ficaria até difícil contar os elos perdidos... “Para os que estão de fora, o real poder e a influência dessas organizações são tão nebulosos quanto essas instituições em si. Nesse terreno, o que não falta é especulação”. Acertada conclusão da redatora.
E as sete supostas profecias dos maias que teriam previsto o fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012? O curioso é que a maioria das publicações não parece levar o assunto a sério. A revista Veja procurou desmistificar o tema, produzindo matéria significativamente intitulada “O fim do mundo em 2012”, que começa da seguinte forma:
Mestres e Avatares |
Profecias Maia |
“Os planetas, as estrelas, o calendário maia e, é claro, uma superprodução de Hollywood reavivam a ideia aterrorizante do apocalipse e levantam uma questão: por que continuamos a acreditar em profecias finalistas apesar de todas elas terem fracassado redondamente?”
Uma das respostas poderia vir com outra pergunta: por que insistir num tema assumidamente inverossímil? A onda maia, se assim podemos chamar, resulta também de uma divulgação midiática, superficial e bombástica de complexas tradições indígenas, manipuladas e retiradas de seu contexto, buscando impressionar e atrair o consumidor-leitor tocado por inquietações num mundo em crise de valores.
Enfim, não poderiam faltar figuras com aguçado senso de oportunidade, como o empresário Jack Dowd, de Iowa (EUA), que resolveu vender passagens só de ida para outros planetas, fornecendo, inclusive, novo passaporte, a quem deseja fugir do anunciado cataclismo. Afirmando tratar-se, inicialmente, de uma brincadeira, para que se oferecessem presentes a amigos como piada, ele garantiu ter se surpreendido com a aceitação do produto. Como dizia o humorista Aparício Torelly (1895-1971), apelidado Barão de Itararé, o mundo dos vivos é cada vez mais governado pelos mais vivos.
Calendário Maia |
O ingrediente principal de todas estas receitas (que procuram desvendar o que estaria oculto, alardeando aos quatro ventos) é a maçonaria. “A francomaçonaria, mais conhecida como maçonaria, é uma das sociedades secretas mais antigas do mundo. Seus rituais são envoltos em mistérios e cerimônias que, para muitos, podem parecer estranhos e até aterradores. Ao longo da História, muitos líderes e figuras públicas aceitaram abertamente integrar a fraternidade dos maçons, abrindo brechas para que os amantes de teorias conspiratórias especulassem sobre a origem e influências desta sociedade secreta”. Lemos assim um resumo lapidar da insistente versão midiática sobre tal agremiação, obra do Discovery Chanel, que exibiu um programa autointitulado científico em torno do tema, para em seguida vendê-lo em DVD.
Discutir se as maçonarias agiram de forma poderosa e camuflada sobre os destinos humanos é resvalar para um falso problema. O que está em jogo é a própria maneira de compreender a história. Afirmar um elo contínuo (mantido de forma oculta) e linear numa instituição (que seria a mesma) entre épocas milenares é, no mínimo, arriscado. Símbolos como triângulos, alegorias de animais, desenhos de sol e olhos em destaque são universais – fazem parte das maçonarias como de outras manifestações da vida coletiva e da cultura humana.
Maçons ilustres |
Não existiu, nem existe, apenas uma maçonaria, centro possante, aglutinador e atemporal, mas, sim, diversas organizações maçônicas ao longo do tempo. A maçonaria é mais uma forma de organização – ritos e símbolos em diversos locais e épocas – do que uma entidade monolítica e coerente.
Logo, é compreensível constatar que nunca se formulou uma ideologia maçônica coesa, mas, sim, um conjunto de valores e símbolos. A diversidade histórica dificulta a tarefa de demarcar o campo ideológico maçônico. Apesar de ter como alvo a Perfeição Universal, a história dos maçons é repleta de atitudes típicas da condição humana: solidariedade e traição, acordos e desavenças, esperanças e frustrações, relacionando-se com as ideologias de cada época. Durante a campanha abolicionista (1880-1888) no Brasil, por exemplo, havia pedreiros-livres contra e a favor da escravidão.
D. Pedro I - cognome: Guatimozin
Os “Grandes Personagens” compõem outro ingrediente do atrativo maçônico. Em cada país aparecem nomes expressivos da cultura e da política, alguns comprovadamente maçons, outros nem tanto. No caso do Brasil, por exemplo, a trajetória maçônica de D. Pedro I foi ao mesmo tempo fugaz e fulminante. O jovem monarca passou bem rápido de “profano” a Grão-Mestre. Em 2 de agosto de 1822, o ainda príncipe regente Pedro foi acolhido pelo Grande Oriente do Brasil como simples iniciante, no primeiro grau, por iniciativa do Grão-Mestre José Bonifácio. Na reunião seguinte, três dias depois, passou para o grau de mestre. E na sessão de 4 de outubro, ausente, aliás, Bonifácio, D. Pedro foi aclamado Grão-Mestre, galgando assim em dois meses todos os degraus da Perfeição Universal – oito dias antes de sua aclamação pública como imperador do Brasil. Entretanto, dezessete dias depois de ascender a Grão-Mestre, D. Pedro I proibiu por escrito as atividades maçônicas, reprimindo esta instituição no país recém-independente. Curioso Pai-Fundador.
A maioria dos maçons não é composta de pessoas famosas. Paradoxalmente, tal perfil gera uma atitude no sentido oposto. Supervalorizar, à maneira típica do século XIX, o papel dos “Grandes Vultos” e dos complôs é deixar de lado complexidades das situações e dos fatores sociais, além de ocultar (aí sim) conjuntos expressivos de agentes históricos, ainda que não famosos, que integram as sociedades e as lutas de cada tempo. Nada mais atraente, sob esse ponto de vista, do que “escolher” antepassados ilustres. A identificação com estes pode ser gratificante, ainda mais em tempos nos quais as celebridades equivalem, na cultura de massa, a deuses encarnados.
Grão-Mestre José Bonifácio |
Ao contrário da compreensão mais comum, mito não quer dizer mentira, mas, sim, um conjunto de narrativas de forte conteúdo simbólico. Mais do que desacreditar de tais símbolos, é importante tentar compreender o chão de onde se sonha. A ponte imaginária entre o passado e o presente pode servir como sal da vida: ajuda a dar sentido maior a um cotidiano muitas vezes sem graça, atravessado de frustrações, angústias e problemas que o racionalismo não consegue resolver (e até pode torná-los insuportáveis).
Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto) criou o Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá) para expressar as situações que presenciava durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Hoje, talvez ele tivesse que mudar a sigla para englobar a humanidade. Afinal, o que se apreende diante de tantas coloridas e enfáticas publicações, em papel ou pelas telas, alardeando explicação e descoberta dos mistérios? Ficamos realmente integrados ao segredo? E qual segredo? Quanto mais revelado, mais o mistério atrai e se retrai. Mais se consome sem que desapareça a fome. No sentido básico, segredo remete a uma verdade oculta. Há que buscá-la, ou seja, alardeá-la. A crise de valores, os riscos ambientais, a escalada de violência, enfim, sinceras inquietações e (des)esperanças de milhões de habitantes do planeta servem, entre outras consequências, para aumentar o faturamento da indústria cultural, cujas produções parecem mais empenhadas em realimentar do que em explicar o claro enigma.
Marco Morel é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coautor de O poder da maçonaria – a história de uma sociedade secreta no Brasil (Nova Fronteira, 2008).
- BARATA, Alexandre M. Luzes e sombras. A ação da maçonaria brasileira (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp/Fapesp, 1999.
- BARATA, Alexandre M. Maçonaria, Sociabilidade Ilustrada e Independência do Brasil (1790-1822). São Paulo/Juiz de Fora: Annablume/EDUFJF/Fapesp, 2006.
- CARVALHO, William Almeida de A. Maçonaria no Brasil: Análise da produção científica universitária.
Imagens: Internet
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