Um moderno herói antigo
Rivakah Schärf Kluger
Este texto faz parte do livro "O Significado Arquetípico de Gilgamesh" de Rivakah Schärf Kluger. Agradecemos a Paulus Editora pela permissão de reproduzirmos este capítulo aqui na Rubedo. Conheça mais sobre este e outros livros da Paulus acessando a Revista de Literatura.
1. Os mitos são "assunto da alma"
A Epopéia de Gilgamesh, obra-prima da literatura mundial, é considerada uma das mais antigas epopéias do mundo. Ela é chamada epopéia, porém, como veremos, trata-se realmente de um mito. Para poder compreender um mito, a meu ver, é necessário ter um ponto de vista histórico a partir de duas perspectivas, por assim dizer, uma perspectiva exterior e uma perspectiva interior. A perspectiva exterior diz respeito à necessidade de compreender a forma histórica em que aparecem os arquétipos, o fundo histórico ao qual está relacionado o mito - em nosso caso, a cultura e a religião babilônica. O aspecto interior se refere aos problemas essenciais do tempo, com os quais essa época específica se envolveu conscientemente, ou nos quais a mesma época estava inconscientemente envolvida. Embora esta seja tarefa principalmente científica, acredito que, não obstante isso, se trata de um assunto de necessidade imediata para podermos entender esses documentos humanos em relação à nossa própria vida, pois todas as épocas históricas vivem em nós, e nós não podemos realmente nos entender a não ser que conheçamos as nossas próprias raízes espirituais.
Que época particular e que conteúdos espirituais em nós pelo inconsciente é, até certo ponto, questão de destino individual. Uma vez que a cultura ocidental se baseia em grande parte no judaísmo e no cristianismo, a cultura babilônica como uma de suas raízes pode ser considerada um interesse psicológico imediato para todos nós. Os arquétipos residem em seu domínio, além do tempo e do espaço. Isto constrói a ponte do entendimento entre os homens de todas as eras, e torna possível perceber que nós mesmos, com nossos problemas essenciais, estamos ligados inseparavelmente à continuidade dos problemas eternos da humanidade, como os mesmos são visualizados nos mitos. Mas a forma em que aparecem os mitos, a sua roupagem, por assim dizer, depende das condições históricas: os símbolos em que aparecem se alteram. No ser humano, essas mudanças correspondem ao desenvolvimento da consciência humana. No desenvolvimento de meu trabalho em torno deste tema significativamente rico, esta conexão se projetou cada vez mais em minha mente, de modo que eu desejaria defini-la como a idéia fundamental, como o ponto de partida da minha tentativa de explicar este mito.
Foi somente em 1872 que os estudiosos pela primeira vez se conscientizaram deste mito, quando o assirólogo inglês George Smith publicou "O relato caldeu do dilúvio", como ele intitulou sua tradução da décima segunda tabuleta da epopéia. Escavações feitas em Kouyunjik, a antiga Nínive, desenterraram muitos fragmentos, que foram em seguida enviados para o Museu Britânico de Londres. Descobertas posteriores, naquela região e em outros lugares, chamaram a atenção dos estudiosos na Europa e na América. Gilgamesh, Rei de Uruk - a Erech bíblica - foi pela primeira vez identificado com o caçador Nimrod, a cujo domínio, segundo o Gênesis 10.10, pertencia Erech (Arac). Somente depois é que se tornou claro, através das descobertas de material sumério mais antigo, que não se tratava exatamente disso. Como demonstrou o sumeriólogo americano Samuel Noah Kramer, a epopéia contém e combina elementos de mitos sumérios anteriores, que integram o material anterior isolado num único bloco. Os fragmentos sumérios mais antigos, descobertos nas cidades da Mesopotâmia de Nippur, Kish e Ur, remontam ao quarto milênio a.C.. O nome Gilgamesh mostrou ser sumério, e não semita. Os sumérios eram os mais antigos habitantes da Mesopotâmia que conhecemos. Até agora, sua linguagem não foi vinculada a nenhuma outra. Eles foram os inventores da escrita cuneiforme (em forma de cunha), que foi assumida pelos seus sucessores, os babilônios e os assírios, juntamente com toda a cultura suméria. Mas esses dois povos imprimiram na cultura suméria a sua própria marca particular, e as concepções semitas típicas foram igualmente inseridas na Epopéia de Gilgamesh.
A epopéia como tal é criação dos babilônios semitas, e os seus primeiros fragmentos pertencem aos assim denominado período babilônico antigo, isto é, durante a dinastia de Hamurabi, na primeira metade do segundo milênio a.C. Mas esta versão babilônica é muito fragmentária. Felizmente, cópias posteriores e elaborações ulteriores desses fragmentos foram encontradas nas escavações efutuadas em Nínive, na biblioteca de Assurbanipal, o último grande rei assírio, que reinou no 7º século a.C. A versão mais recente está escrita em doze tabuletas de argila e é o resultado de pelo menos 1.800 a 2.000 anos de trabalho sobre a epopéia.
Fragmentos posteriores a partir de então vieram à luz, os quais encerram valiosas adições ao texto danificado e incompleto. Entre os mesmos, encontram-se também translações para o idioma hitita e hurriano. Um fragmento acadiano datado em torno do 14º século a.C. também foi encontrado em Meggido, Canaã, consequentemente, anterior à colonização israelita nesta área. Essas descobertas mostram como estava difundida a Epopéia de Gilgamesh, desde o sul da Babilônia até a Ásia Menor, e em que alta estima a mesma era tida.
Podemos supor que, da mesma forma como outros mitos e lendas populares, a Epopéia de Gilgamesh foi originalmente transmitida aos povos por via oral, recitada por rápsodos, como está indicado pelo seu estilo e pelas suas freqüentes passagens repetitivas, que imprimiam a mensagem na alma dos diferentes povos, onde a mesma passou por desenvolvimento e por transformações posteriores.
Exatamente que fontes particulares foram coletadas, e de que forma, não me parece ser mera questão casual. O autor ou os autores desta composição devem ter tido a sensação de que isto fazia sentido, como fizeram aqueles que a aceitaram dessa forma através de séculos. O fator combinante pode ser encontrado no incosnciente criativo daqueles que trouxeram os materiais diferentes em conexão uns com os outros. Assim, buscar uma interpretação psicológica desta epopéia antiga, tão plena de significado, parece ser um empreendimento justificado. Os mitos são "assunto da alma", assim como os sonhos, e requerem interpretação simbólica e uma tradução.
A partir da descoberta de Jung do inconsciente coletivo e de seus conteúdos, os arquétipos (as formas típicas básicas do pensamento e sentimentos humanos e as reações subjacentes e determinantes da variedade ilimitada de experiências individuais), uma nova luz incidiu na essência dos mitos. Ao descobrir motivos mitológicos que emergem dos sonhos do homem moderno, Jung reconheceu que os mitos, da mesma forma que os sonhos, são manifestações do inconsciente. Tornou-se evidente, na prática, que apresentar paralelismos mitológicos como uma amplificação de sonhos arquetípicos não só aprofunda o entendimento desses últimos, mas também leva a um entendimento psicológico mais profundo do mito. A sua obra que abriu caminho neste sentido, Symbols of Transformation (Símbolos de Transformação), lançou os fundamentos para um campo mais vasto na pesquisa psicológica sobre os mitos e a sua relevância para o homem moderno.
A partir da descoberta de Jung do inconsciente coletivo e de seus conteúdos, os arquétipos (as formas típicas básicas do pensamento e sentimentos humanos e as reações subjacentes e determinantes da variedade ilimitada de experiências individuais), uma nova luz incidiu na essência dos mitos. Ao descobrir motivos mitológicos que emergem dos sonhos do homem moderno, Jung reconheceu que os mitos, da mesma forma que os sonhos, são manifestações do inconsciente. Tornou-se evidente, na prática, que apresentar paralelismos mitológicos como uma amplificação de sonhos arquetípicos não só aprofunda o entendimento desses últimos, mas também leva a um entendimento psicológico mais profundo do mito. A sua obra que abriu caminho neste sentido, Symbols of Transformation (Símbolos de Transformação), lançou os fundamentos para um campo mais vasto na pesquisa psicológica sobre os mitos e a sua relevância para o homem moderno.
2. Os mitos e o crescimento da consciência humana
Quanto à sua origem, da mesma forma como os sonhos, os mitos são expressões espontâneas do inconsciente. Como demonstrou Jung, da mesma forma como os sonhos estão relacionados, numa forma compensatória, ao estado atual da consciência do indivíduo, assim também os mitos, podemos presumir, estão relacionados ao estado coletivo da consciência de determinada era da história. Poderíamos presumir que seja o ego coletivo da tribo ou daquele povo, isto é, as crenças e as atitudes sustentadas em comum, a consciência coletiva. Entretanto, isto leva a outra questão, que é importante para a interpretação de um mito assumido como sonho coletivo: não existe ego individual ao qual se possa apelar para associações que ajudem a estabelecer um contexto em que ocorre o sonho. Como podemos interpretar um mito sem o aspecto particular de referência que temos para os sonhos individuais na pessoa daquele que sonha? Neste caso, o único contexto disponível é a cultura daquela época em que surgiu e foi avaliado o mito. Os mitos, por conseguinte, são como reflexões ou imagens de espelho de certas situações culturais da humanidade, e, assim como grandes sonhos arquetípicos individuais, eles contêm intuições e previsões profundas de desenvolvimentos posteriores, e, assim, eles podem ser considerados marcos miliários no desenvolvimento da consciência humana.
Quando interpretamos um sonho individual, podemos olhar para as figuras que nele ocorrem (além da figura do próprio indivíduo que sonha, que geralmente representa seu ego) sob o aspecto do seu assim denominado significado objetivo ou subjetivo, este último referindo-se ao aspecto interior e em grande parte inconsciente da personalidade daquele que sonha. Quanto mais coletivo e arquetípico o sonho, tanto mais se insinua o nível subjetivo da interpretação. Isto vale ainda mais para o caso do sonho, no qual, para começar, não existe um ego individual de um sonhador ao qual se referir. Mas existem indivíduos, divinos e humanos, que aparecem e agem no mito, e os mesmos podem ser interpretados como aspectos da totalidade projetada da psique humana, seja ela individual ou transmitida pela comunidade, a coletiva. No caso do mito do herói, em particular, existe um caráter, o herói, que é o autor numa seqüência contínua de eventos. O herói pode, portanto, ser considerado a previsão de um desenvolvimento da consciência do ego, e a sua atuação no mito, uma indicação do processo de movimento rumo à totalidade que está implícita e inata na psique; no indivíduo, o processo de individuação. Esta é, aparentemente, a razão porque os sonhos arquetípicos ocorrem com freqüência em momentos cruciais de nossa vida, em estados de transição. Mitos antigos podem então tornar-se não apenas amplificações valiosas para tais sonhos, mas a própria chave para a sua interpretação. Pois nós, consciente ou inconscientemente, estamos vivendo ou sendo vividos por padrões arquetípicos, e são as imagens mitológicas as que geralmente estão por trás das experiências mais profundas de significado em nossa vida.
Não parece ser mero acaso o fato de que, nos tempo modernos, tenham-se multiplicado publicações em torno da Epopéia de Gilgamesh, não só no campo da assiriologia, mas também nas obras poéticas, nas composições literárias e nas representações artísticas. É como se o nosso tempo tivesse que encontrar o seu próprio entendimento de buscar o significado ou o lugar específico da nossa própria era histórica, no processo de uma amplificação crescente da consciência, que é o sentido último e a meta última do mito. Como afirmou Jung em sua introdução à "Psicologia do arquétipo infantil" (part. 267):
"... nunca podemos legitimamente nos desligar dos nossos fundamentos arquetípicos, a não ser que estejamos preparados para pagar o preço de uma neurose, assim como não podemos nos desfazer do nosso corpo e dos seus órgãos sem cometer o suicídio. Se não podemos negar os arquétipos ou, de outra forma, neutralizá-los, nos defrontamos, em cada novo estágio de diferenciação da consciência à qual chega a civilização, com a tarefa de encontrar uma nova interpretação apropriada para esta etapa, a fim de conectar a vida do passado que ainda existe em nós com a vida do presente, que ameaça fugir da mesma. Se esta união não se realiza, surge uma espécie de consciência sem raízes, não mais orientada para o passado, consciência que sucumbe impotente a toda forma de sugestões e, na prática, é susceptível a uma epidemia psíquica."
"... nunca podemos legitimamente nos desligar dos nossos fundamentos arquetípicos, a não ser que estejamos preparados para pagar o preço de uma neurose, assim como não podemos nos desfazer do nosso corpo e dos seus órgãos sem cometer o suicídio. Se não podemos negar os arquétipos ou, de outra forma, neutralizá-los, nos defrontamos, em cada novo estágio de diferenciação da consciência à qual chega a civilização, com a tarefa de encontrar uma nova interpretação apropriada para esta etapa, a fim de conectar a vida do passado que ainda existe em nós com a vida do presente, que ameaça fugir da mesma. Se esta união não se realiza, surge uma espécie de consciência sem raízes, não mais orientada para o passado, consciência que sucumbe impotente a toda forma de sugestões e, na prática, é susceptível a uma epidemia psíquica."
Até que ponto "a vida do passado ainda existe em nós", iremos descobrir à medida que continuarmos a nossa investigação psicológica da Epopéia de Gilgamesh. Por causa do estado fracionado e danificado das tabuletas, o texto apresenta muitas lacunas, o que deixa muitas questões em aberto, cuja solução precisa aguardar a descoberta dos fragmentos adicionais da epopéia. Mas o fascínio exercido pela Epopéia de Gilgamesh, radicado em sua profundeza psicológica, supera todos esses obstáculos. Ele requer apenas a fantasia e a intuição para preencher essas lacunas, pois subsistiu um texto suficiente para imprimir sentido de continuidade significativa aos acontecimentos da história e da totalidade de um processo interior por trás do mito.
Ao trabalhar com o material, fiz uso de todas as traduções disponíveis em alemão, francês, holandês e, em inglês, da tradução poética em hexâmetro inglês de R. Campbell Thompson, da tradução E. A. Speiser, em Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (textos antigos do Oriente Próximo relativos ao Antigo testamento) e The Gilgamesh Epic and the Old Testament Parallels (A Epopéia de Gilgamesh e paralelismos do Antigo testamento), de Alexander Heidel. Este último é o texto que irei seguir em grande parte. Heidel apresenta boa e ampla introdução ao texto, e introduz na íntegra o paralelismo da Antiga Babilônia e os textos hititas, onde aparecem lacunas na versão padronizada. Não concordo com suas idéias a respeito dos paralelismos do Antigo Testamento, e esta parte foi de modo geral criticada, porém, quanto ao texto e à sua publicação, ambos são considerados de boa qualidade, muito bem processados e confiáveis.
Lamento dizer que meu estudo sobre a linguagem acadiana e sobre os escritos cuneiformes não tenha avançado o suficiente para me possibilitar basear minha pesquisa sobre o texto original. Considero também que tenho passado por alto alguns fatos psicológicos que poderiam ter-se revelado apenas para alguém que possui conhecimento mais profundo sobre a linguagem. Devo, portanto, pedir a indulgência do leitor a esse respeito. Entretanto, o número relativamente elevado de traduções cientificamente valorizadas parece ter-me garantido a tentativa para uma explicação psicológica.
O nascimento de Gilgamesh: http://www.youtube.com/watch?v=Id4OqTbYNns
Fonte: Revista de Literatura
Autor: Rivkah Schärf Kluger
Imagens: Internet
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