Por Fabiano Onça
Do alto da serra, os olhos do conquistador espanhol Vasco Núñez de Balboa miravam o que nenhum outro europeu vira antes. Ele acabara de fazer uma grande descoberta, a maior desde que Cristóvão Colombo chegara à América, 21 anos antes. Tamanho feito não foi capaz, porém, de salvar sua vida. Em 15 de janeiro de 1519, Balboa foi decapitado em praça pública, julgado traidor da causa espanhola. Não que ele tivesse sido apanhado de surpresa. Naquela terra recém-descoberta, onde o ouro e as pedras preciosas surgiam em quantidades absurdas mas a lei da Espanha falhava, a sobrevivência de um homem era feita de força bruta e astúcia. Vasco possuía ambas as qualidades. Foi por causa delas que virou herói. Mas também por causa delas perdeu a vida.
Quando foi condenado à morte, Vasco tinha por volta de 44 anos. Ele nascera provavelmente em 1475, em Jerez de los Caballeros, Extremadura, no sudoeste da Espanha. Seu pai, Nuño Arias de Balboa, era, ao menos no nome, um hidalgo, um nobre, descendente dos antigos senhores do castelo de Balboa, que ficava na região. Na prática, isso não significava muito para o então pequeno Vasco. Suas chances de conseguir qualquer herança do pai eram remotas, já que era o terceiro de uma família de quatro filhos homens. Sua melhor opção era pôr-se a serviço de outros nobres de maior importância. Foi assim que, durante os primeiros anos de sua adolescência, Vasco tornou-se pajem e escudeiro de dom Pedro de Portocarrero, senhor de Moguer. Com ele, Vasco aprendeu a manejar a espada. E, mais importante, teve acesso às notícias fantásticas que chegavam das descobertas marítimas.
Em 1500, a Espanha vivia uma febre de conquistas que só se aplacaria após quase dois séculos. Ela começara em 1492 com Colombo, que, patrocinado pelos reis espanhóis, revolucionara o conhecimento geográfico da época. As expedições posteriores, tendo por base a ilha de Hispaniola (atuais República Dominicana e Haiti), no Caribe, onde Colombo fundou as primeiras colônias, trouxeram mais notícias espantosas. Para além das ilhas de Cuba, existiriam ainda mais terras. A expectativa da coroa espanhola com as novas possessões era enorme.
Por isso, em 1494, a Espanha firmou, sob o patrocínio da Igreja, o famoso Tratado de Tordesilhas – na prática, um freio contra Portugal, o único possível país em condições de explorar as novas terras. Os portugueses haviam conseguido em 1488 contornar a África com Bartolomeu Dias e, novamente em 1500, partiam com uma frota para, ao que tudo indica, apossar-se das terras que já sabiam que existiam no Novo Mundo.
Naquele 1500, enquanto borbulhavam as histórias sobre o Novo Mundo, Vasco, cedendo aos impulsos aventureiros e valendo-se da influência de seu amo, conseguiu uma vaga na expedição do explorador Rodrigo de Bastidas. Um ano depois, a frota partiu do porto de Cádiz com duas embarcações principais (dois navios menores seguiram no ano seguinte) com a missão de mapear o então desconhecido litoral dos atuais Panamá e Colômbia. Vasco tinha cerca de 25 anos.
De gaiato no navio
A expedição de Rodrigo de Bastidas permaneceu ao longo do atual litoral colombiano por quase dois anos. Durante esse tempo, Vasco de Balboa tomou contato com a realidade do Novo Mundo. E aprendeu a regra para os aventureiros espanhóis que exploravam as riquezas da região: o conquistador, na prática, era livre para pilhar o que quisesse – pedras preciosas, ouro, pau-brasil – desde que, ao fim da aventura, deixasse um quinto do que tivesse encontrado junto aos fiscais do Tesouro espanhol. Em 1502, Bastidas encerrou a aventura com seus navios abarrotados de ouro e, depois de pagar o que devia à coroa, ainda foi agraciado com uma pensão vitalícia sobre a renda de algumas das terras recém-descobertas.
Vasco, como membro da tripulação, também recebeu sua parte de ouro, suficiente para comprar uma pequena propriedade em Hispaniola. Ali, tentou ganhar a vida cultivando grãos e criando porcos por sete anos. Mas a única coisa que conseguiu reunir após esse tempo foram dívidas. Os credores se impacientavam. E Vasco não tinha onde cair morto.
Em 1509, outra expedição espanhola, comandada por Martin Fernandez de Enciso, um figurão da corte, aportou na ilha de Hispaniola. Enciso havia fundado um povoado onde hoje se encontra a cidade colombiana de Cartagena das Índias. Mas o povoado estava sob duro ataque dos indígenas da região. Enciso deixara alguns soldados defendendo o local, sob o comando de um tal Francisco Pizarro, e voltou às pressas para Hispaniola em busca de reforços. Para Vasco, a oportunidade de se mandar dali havia surgido. Ele se infiltrou dentro de um dos barcos enfiado num barril – e ainda deu um jeito de levar seu inseparável cachorro, Leoncico. O truque foi percebido apenas em alto-mar. Ao saber do penetra, Enciso ameaçou deixá-lo numa ilha deserta. Entretanto, Vasco de Balboa tinha um trunfo: ele conhecia a região para onde o barco ia, pois a primeira expedição de que participara, oito anos antes, havia explorado aquela área.
Após o golpe, o poder
Os barcos chegaram a tempo de resgatar Pizarro e seus homens, mas não conseguiram evitar a destruição do povoado. Àquela altura, um mês após seu embarque, Vasco, com seu natural carisma, conquistara a simpatia da tripulação. Por outro lado, Fernandez de Enciso colecionava inimigos graças à teimosia em tentar reerguer o assentamento, cujo resultado foram apenas mais batalhas contra os belicosos indígenas.
Vasco de Balboa então convenceu Enciso de que havia um lugar melhor para criar um novo povoado, uma região ao norte, com a terra mais fértil e índios menos agressivos. A viagem para a atual região de Daren, no Panamá, levou alguns meses. Lá, a verdade era menos glamurosa. Logo na praia, os espanhóis tiveram que lutar com o cacique Cémaco, chefe local, e seus 500 homens. Conta-se que Vasco teria feito uma promessa à Virgen de La Antigua. Se os espanhóis vencessem, o povoado ganharia o nome da santa. Eles venceram. E, no local, em setembro de 1510, Balboa, Enciso e os sobreviventes fundaram o povoado europeu mais antigo do continente: Santa María de La Antigua de Darién.
A essa altura, Vasco de Balboa havia consolidado de vez sua liderança junto aos soldados, enquanto o comandante oficial continuava criando inimizades, especialmente depois de ele ter ficado com grande parte da pilhagem nas terras do cacique Cémaco. Era hora de Vasco dar o bote: ele conseguiu que Enciso perdesse o cargo alegando que o poder deste só era válido nas terras mais ao sul, e não lá onde se encontravam agora. O pequeno povoado de Santa María elegeu então Martin Samudio e Vasco Núñez de Balboa como alcaides no primeiro conselho municipal das Américas.
Entretanto, quando o governador da região de Veragua, Diego de Nicuesa, ficou sabendo da malandragem de Balboa, tomou um navio e foi para a vila. Queria desfazer tudo e levar o aventureiro preso. Mas Balboa soube disso e insuflou a população contra o governador. Quando ele chegou, em 1º de março de 1511, foi preso por uma multidão de colonos enfurecidos, que o colocaram, ao lado de seus 11 homens, num bote caindo aos pedaços em alto-mar. Ninguém nunca mais ouviu falar da desafortunada autoridade.
O ouro do mar do Sul
Não foi difícil para Balboa convencer as autoridades espanholas a nomeá-lo governador, afinal Nicuesa estava desaparecido e faltava gente capacitada no Novo Mundo. Seu primeiro ato no poder foi orquestrar o julgamento de Fernandez de Enciso, que foi sentenciado à prisão e teve suas riquezas confiscadas – mas dois anos depois foi exilado para a Espanha.
Vasco de Balboa estava livre para fazer o que sabia melhor: conquistar terras, escravizar índios e, mais que tudo, acumular ouro. Certa vez, numa conversa com Panquiaco, filho do cacique Comagre, ouviu pela primeira vez sobre o tal mar do Sul. De acordo com uma carta que Balboa enviou para os reis espanhóis Fernando de Castela e Isabel de Aragão, o índio teria dito: “Se vocês têm tanta fome de ouro que não se importam de sair de suas terras para assolar a terra dos outros, eu vou lhes mostrar uma província que saciará seu apetite”. Panquiaco discorreu sobre as prodigiosas terras a sudoeste, que davam para o mar do Sul. Nelas, o povo teria tanto ouro que pratos e talheres eram feitos do metal.
Durante muito tempo, Vasco de Balboa tentou convencer o rei a patrocinar sua expedição para o tal mar. Como não obteve sucesso, decidiu partir por sua conta em 1º de setembro de 1513. Levava 190 soldados, alguns guias nativos e uma matilha de cães treinados – Leoncico entre eles. Ao norte, conseguiu com o cacique Careta o apoio de mais mil guerreiros. A expedição então mergulhou na selva fechada. “Algumas vezes eles tinham que avançar através de uma barreira de árvores que se enroscavam umas às outras, outras vezes tinham que cruzar lagos, onde homens e bestas de carga pereciam miseravelmente; então, repentinamente, uma elevação abrupta apresentava-se perante eles; no topo, um profundo e assustador precipício se formava diante dos pés”, escreveu o historiador Manuel José Quintana em Vidas de Españoles Célebres (inédito em português). “E, acima de tudo, existia ainda a falta de provisões, que, junto a um estado de ansiedade e constante perigo, era mais que suficiente para quebrar a força de um homem e deprimir sua mente.”
No caminho, deparou com tribos hostis, onde foi recebido a flechadas. Conforme vencia as batalhas, incorporava os índios derrotados à expedição. Entretanto, muitos dos espanhóis ficaram feridos ou exaustos. Vasco decidiu deixar o grosso de seus soldados descansando na aldeia do cacique Cuarecuá e continuou com 67 homens. Seguindo o rio Chucunaque, caminhou por toda a manhã do dia 25 de setembro, escalando uma cadeia de montanhas. Por volta do meio-dia, do alto da serra, viu o tão sonhado mar.
O historiador Francisco López de Gómara (1511-1566), que escreveu a obra-base Historia General de las Índias (sem versão em português), conta que Balboa, mostrando o mar a seus companheiros, disse-lhes: “Vejam aqui, amigos meus, o que tanto desejávamos! Com o favor de Cristo, seremos os mais ricos espanhóis que estas terras jamais viram; faremos o maior serviço ao nosso rei que nenhum vassalo jamais prestou ao seu senhor; e teremos o orgulho e prazer de, tudo quanto por aqui se descobrir e conquistar, converter à nossa fé católica!”
Frente ao oceano, escreveu Balboa ao rei, as pessoas ficaram muito alegres. O capelão da expedição, Andrés de Vera, teria cantado o hino litúrgico Te Deum, abençoando o momento. “Segundo a definição de descobrimento, porém, é inexato afirmar que os europeus descobriram o Pacífico”, diz a historiadora Marta Herrera Angel, da Universidad de los Andes, na Colômbia. “O mais exato é dizer que a população nativa da área levou os europeus a verem o Pacífico. Isso porque a costa pacífica já era densamente povoada e o oceano, navegado milênios antes.”
Nas ilhas próximas, Balboa encontrou pérolas e ouro, muito ouro. Quando voltou para Santa María, em 19 de janeiro de 1514, declarou uma fortuna de 100 mil dobrões em ouro, algo equivalente a 34 milhões de reais atuais. Mas nem tudo continuaria bem. Seu antigo desafeto Fernandez de Enciso disseminara duras acusações contra Vasco na corte, incluindo sua ligação com o sumiço do antigo governador Diogo de Nicuesa. Os reis designaram um novo governador para o lugar de Vasco, o nobre Pedro Árias de Ávila, ou Pedrarias D’Ávila – graças a seu apetite por pedras preciosas.
Balboa ainda tentou outras expedições frustradas antes de ir novamente para o mar do Sul, em 1517. Lá, construiu navios e singrou por cerca de 70 quilômetros, cartografando a costa. Mas voltou ao receber algumas cartas de Pedrarias, requisitando sua presença imediata em Santa María. Foi preso por soldados comandados por seu velho conhecido Francisco Pizarro, acusado de alta traição à Espanha por tentar construir um reino para si no mar do Sul. Foi julgado culpado em janeiro de 1519 e condenado à morte. Até o último momento, Balboa clamou por inocência. Em vão. Ao ser decapitado, sua cabeça não se separou do corpo logo no primeiro golpe. O carrasco teve de dar mais duas machadadas para cumprir a sentença.
O reconhecimento de seu feito – que influenciou gerações de desbravadores do Pacífico, como Fernão de Magalhães e Francis Drake – só ocorreu muitos séculos depois. No Panamá, hoje, a mais alta honraria do país é a medalha Vasco Núñez de Balboa. A moeda local também se chama balboa e, desde 1903, mantém paridade de 1 para 1 com o dólar. Até na Lua nosso herói ganhou honraria póstuma: uma cratera batizada com seu sobrenome.
O matador de incas
Conquistador do Peru, Pizarro traiu o amigo Balboa para ganhar poder
Um dos primeiros espanhóis a empreender a conquista do continente americano, Francisco Pizarro é mais conhecido por suas sangrentas campanhas contra o Império Inca, na atual região do Peru, Equador e Colômbia. Mas Pizarro começou sua carreira na América como um mero soldado, mais tarde integrante da expedição de Vasco de Balboa que localizou o atual oceano Pacífico – ele era um dos 67 soldados que foram com Balboa até o fim da expedição. Suas campanhas posteriores contra os incas, iniciadas em 1523, só ocorreram por causa de um favor concedido pelo então governador da região do Panamá, Pedrarias D’Ávila. Foi ele quem, em 1519, outorgou a Pizarro o título de alcaide (espécie de prefeito) da recém-fundada cidade do Panamá. Mas o favor tinha um preço. Em troca do cargo, Pizarro deveria trazer preso o antigo colega Vasco de Balboa. Entrega feita, o título foi concedido. E graças à traição (e ao dinheiro que o título de alcaide lhe conferia) Francisco Pizarro angariou os fundos necessários para suas expedições posteriores, que o tornariam escandalosamente rico. Pizarro morreu em Lima, no Peru, em 1541, aos 65 anos, por vingança. Em suas campanhas, ele havia batido de frente com outro conquistador, Diego de Almagro. Em 1538, numa disputa entre os dois pelo poder na recém-fundada Lima, Pizarro matou Almagro. Três anos depois, partidários do filho de Almagro invadiram o palácio de Pizarro em Lima e o assassinaram.
Água de batismo
Em carta para o rei, Balboa usa a palavra "pacífico" para descrever o mar
Vasco de Balboa, como os demais aventureiros que vieram para a América sob a tutela da monarquia espanhola, manteve correspondência com o rei Fernando de Aragão e com a rainha Isabel de Castela. Na primeira carta, escrita em 20 de janeiro de 1513, queria convencer o rei da Espanha a investir em sua expedição ao mar do Sul e enviar pelo menos 500 homens da ilha de Hispaniola para acompanhá-lo. Para isso, aguça a cobiça do monarca, enumerando as riquezas da terra. E afirma que as águas do tal mar eram pacíficas. Foi justamente por causa das águas que os espanhóis julgaram mais calmas que as do oceano Atântico que o Pacífico foi assim batizado. Isso, porém, aconteceu alguns anos depois de sua descoberta pelos europeus: foi em 1520, após a expedição do português Fernão de Magalhães, que atravessou suas águas pela primeira vez.
Saiba mais
LIVRO
Vidas de Españoles Célebres, Manuel José Quintana, Espasa Calpe, 1966
Escrito pelo historiador espanhol do século 19, relata as descobertas de Vasco de Balboa, Francisco Pizarro, Américo Vespúcio e outros conquistadores.
SITE
www.mgar.net/docs/balboa.htm Em espanhol, dá acesso às cartas escritas por Vasco de Balboa sobre sua expedição.
Fonte: http://historia.abril.com.br/
Autor: Fabiano Onça
Imagens: Internet
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